sábado, 29 de outubro de 2011

Georgesattva!


ALL THINGS MUST PASS
George Harrison e a beleza do efêmero

"Christianity will go. It will vanish and shrink. (...) We are more popular than Jesus now; I don't know which will go first -- rock'n'roll or Christianity. Jesus was all right, but his disciples were thick and ordinary. It's them twisting it that ruins it for me."
JOHN LENNON
em entrevista de 1965 à repórter londrina
Maureen Cleave, do Evening Standard, 

Os Beatles, se tornaram-se mais uma lenda do que uma banda, foi por terem sido objeto de tão massiva e intensa devoção coletiva. Conquistaram o amor das massas, despertaram fanatismos extremados, ganharam apóstolos entusiásticos, foram elevados à condição de deuses terrenos... A beatlemania representou quase que a emergência espontânea de um novo culto - e não muito bem-visto por aqueles que insistem em depreciar todos os amores terrestres, tão perdidos que estão em  celestes idolatrias...

Em abril de 1966, a revista TIME publicava a explosiva matéria-de-capa de John T. Elson em que a pergunta "Deus está morto?" era investigada à luz do conflito-de-gerações escancarado pelas pesquisas estatísticas: 90% dos pais e avós norte-americanos ainda julgavam que a religião era de importância central para a vida humana, enquanto somente 40% dos jovens responderam afirmativamente à esta enquete.

O Movimento Hippie e sua nascente ação em prol da emancipação sexual, comportamental e política ascendia como uma força que varria da Cultura a figura daquele Deus pintudo, autoritário e vingativo que age através de dilúvios, pede que pais sacrifiquem seus próprios filhos, dizima com fogo Sodomas e Gomorras...

 Os hippies insurgiam-se, com altas doses de hedonismo pagão e psicodelia mística, contra uma religião ascética e repressora que aparecia então, para multidões de jovens - fossem existencialistas, beatniks, reichianos, budistas... - como caduca e obsoleta.

 Timothy Leary, Krishnamurti, Herman Hesse, Osho, Hendrix: eis os novos gurus de um movimento nascente e efervescente. Não se vêem muitos crucifixos decorando o pescoço daqueles que estiveram em Woodstock ou que atravessaram a América em busões coloridos, celebrando a viagem da vida nas estradas do ácido à maneira dos Merry Pranksters de Ken Kesey...

Após milênios de culto ao sofrimento e ao martírio - Richard Dawkins comenta com sagacidade que idolatrar uma cruz, instrumento de pena capital e tortura, equivale a carregar uma cadeira-elétrica em miniatura pendendo do pescoço... - chegava a hora de outro culto: à paz, ao amor, à fraternidade, à música, à criatividade, à curiosidade, à experimentação, aos deleites terrenos... À liberdade.

"Os Beatles são mais populares entre os jovens que Jesus Cristo", soltou John Lennon um dia, expressando simultaneamente sua audaz profecia (quase nietzschiana) quanto ao futuro do cristianismo: ele iria encolher e se desvanecer, e talvez o rock'n'roll fosse sobreviver à sua morte. Declarações de uma coragem admirável! E que Lennon soltou sem imaginar que, nos EUA, os católicos fundamentalistas e a Ku Klux Klan logo iriam re-acender as fogueiras da Inquisição e condenar os álbuns dos Beatles a virar cinzas. Nada ofende e revolta mais um xiita do que a verdade.


Uma das peculiaridades históricas dos Beatles, me parece, está no fato de que pelo menos dois deles - Lennon e Harrison - tinham visões bem críticas em relação ao monoteísmo que a velha geração continuava a propugnar para a nova. Quiseram ser agentes de uma renovação religiosa, no caso de Harrison, e de um re-despertar do ativismo político e da rebeldia comportamental, no caso de Lennon. Me parece que a decisão de parar de tocar ao vivo, no auge da  Beatlemania, tamanho era o bafáfá e a barulheira gerada por um esquadrão de pré-adolescentes histericamente idolatrantes, tem a ver com a busca de outros caminhos que não aqueles da adoração descerebrada e servil.

O excelente documentário de Martin Scorcese revela, por exemplo, um George Harrison que descobriu muito cedo na vida aquelas supostas maravilhas com que sonha todo garoto que quer ser um rock'n'roll star. Ainda com vinte e poucos anos, George e o resto dos Fab Four já tinham rios de dinheiro, multidões de fãs ensandencidos, carrões luxuosos em mansões aristocráticas, destaque constante na mídia, paparicação sem fim. O que descobrem, no entanto, é uma sensaboria ou um amargor por trás dessa riqueza material e exposição midiática. Possuir uma montanha de ouro e ter aparecido na capa de mais de 100 revistas não impede ninguém de morrer. E desse mundo nada se leva.

Numa espécie de re-encenação sessentista do drama 2.500 anos mais antigo do príncipe Gautama (recomendadíssimo, aliás, o magistral romance Sidarta, do Herman Hesse), que abandona seu palácio de conforto e luxo e começa a vagar pelo mundo em busca da Iluminação, aprendendo com ermitões, maltrapilhos e bodhisattvas, George Harrison também descobre a "insubstancialidade" das posses materiais ("all things must pass...") e procura abrir uma nova senda espiritual para si mesmo - utilizando como aliados, é claro, o Hare Krishna, a meditação, os mantras, a música e o LSD.

Hare Krishna, Hare Krishna, Krishna Krishna, Hare Hare,
Hare Rama, Hare Rama, Rama Rama, Hare Hare...

John Lennon busca outro caminho, decerto, mas que têm suas similaridades com o de George no quesito "busca de um estilo-de-vida alternativo". Em sua carreira-solo, quando ele e Yoko Ono estão profundamente engajados contra a Guerra do Vietnã, na lista negra da CIA e do FBI, conclamando as multidões a cantarem em coro nas praças públicas os "hinos" pacifistas "Give Peace a Chance" e "Power to The People", John Lennon remete frequentemente a um mundo sem religião como irredutivelmente ligado à sua Utopia. "Imagine there's no heaven. It's easy if you try. No hell below us. Above us only sky....".

Atacando ao mesmo tempo o patriotismo imperialista, que tinha atulhado a Europa de cadáveres nas duas Grandes Guerras Mundiais, e a religião imperante na vida destes povos que foram capazes de tão obscenas barbaridades ("Imagine there's no countries. It isn't hard to do. Nothing to kill or die for. And no religion too..."), Lennon sonha com um planeta sem fronteiras onde imperasse a fraternidade universal: "a brotherhood of Man".

"You may say I'm a dreamer. But I'm not the only one."

Em "God", canção de Plastic One Band, escancara sua descrença num grande rol de "recusas" à idolatria. Deus não existe, a não ser como um "conceito através do qual medimos nossa dor". Quando Mark David Chapman descarregou seu .38 pra cima de John Lennon, em 1980, nenhum deus interviu para assisti-lo neste momento de tamanha urgência. Nenhum anjo-da-guarda se materializou e lançou-se às balas para pará-las. Enquanto Lennon sangrava até a morte na calçada, não imagino-o olhando para os céus em sua agonia com um olhar de pedinte e perguntando-se "ó Deus, por que me abandonaste?" Lennon já tinha abandonado a fé há muito tempo, e era plenamente consciente disso. Lúcido, sabia que nada vêm de graça, nem da graça (o céu está vazio: above us only sky), e que tudo de bom neste planeta precisa ser construído, exigido, vencido através do combate. E que no final tudo que nos espera é o túmulo e o amor daqueles que sobrevivem a nós.


George Harrison dá outra resposta a seu "dilema" religioso, à sua necessidade de encontrar uma alternativa ao cristianismo-que-virou-ruína: George volta-se para a Índia, amiga-se com Ravi Shankar (o tocador de cítara e mestre de meditação...), e ensimesma-se numa trip contemplativa. Adere aos mantras do Hare Krishna, à contemplação espantada e risonha das belezas naturais, ao cultivo de seu jardim florido... Hippie-búdico-makulelê em busca de paz-de-espírito.

 "Ele era uma pessoa muito SENSUAL", conta às câmeras de Martin Scorcese sua esposa-por-30-anos, Olivia, explicando na sequência que por "sensualidade" quer dizer: um anseio para que tudo que a língua toque tenha um sabor marcado, um desejo de que as flores tenham aromas e sejam coloridas e vistosas, uma capacidade de "êxtase" diante de experiências aparentemente tão triviais quanto sentir a brisa que nos roça a pele do rosto...

Ao invés da aceitação sem questionamento de dogmas papagueados por figuras de autoridade, George Harrison, seguindo os conselhos tanto dos gurus indianos quanto do LSD, preferiu a experiência direta, ir em busca da verdade por si próprio, com as próprias pernas, sem aceitar conclusões alheias impostas do alto de um altar. Quis uma verdade que suas mãos pudessem tocar, seus olhos pudessem ver, seus poros pudessem sentir. Uma verdade na qual ele podia inclusive intervir - como fazia com estas encantadoras e encantatórias notas que arranca de sua guitarra. "While my guitar gently weeps..." Um artista cheio de doçura e sabedoria que tentava injetar beleza no mundo e nos convidava a fraternalmente contemplá-la. Foi ao deleitoso contato de sua consciência com o cosmos ao seu redor, em meio ao êxtase quimicamente induzido pelo ácido lisérgico ou à beatitude alcançada através da meditação mântrica, que chamou de "My Sweet Lord" e celebrou em infindos aleluias...

O problema é que seu "anseio por espiritualidade" estava sendo constantemente frustrado pelas intromissões às vezes brutais da materialidade. Lá está George Harrison, sonhando em viver com suas cítaras, sonhando em viver tocando ukelele na grama na posição de lótus com os camaradas, tentando levar uma vida inteiramente imersa nos deleites da música, da amizade, da meditação... e para rasgar este quadro idílico vem um assassinato psicopata que o esfaqueia e, na sequência, a galope, o ataque fulminante do câncer que o mataria. A arte de "viver no mundo material" - Living in the Material World, aliás, foi um título muito feliz que Scorcese encontrou para o sua biografia filmada... - equivale a uma gangorra entre deleites e frustrações: o êxtase das trips, sejam musicais ou lisérgicas, caceteado pela chatice aporrinhante do Taxman que vem colher impostos...

George compôs algumas das mais belas canções dos Beatles ("Here Comes The Sun", "While My Guitar Gently Weeps", "Love You To", "Within You Without You"), inserindo na estética beatle os pendores orientalistas e mântricos que ajudaram a banda transcender tão profundamente o entretenimento de massas e consumarem obras-de-arte tão imorredouras quanto Revolver, Sgt. Peppers, Abbey Road... Deu à luz àquela que Frank Sinatra considerava uma das canções de amor mais bonitas já compostas: "Something" (dedicada a Pattie Boyd, sua primeira esposa, que depois casaria com Eric Clapton). Foi um dos primeiros artistas do primeiro escalão a engajar-se politicamente, seja nos protestos contra a matança yankee no Vietnã, seja como fez durante a Guerra Índia-Paquistão, em 1971, organizando o histórico show beneficiente  Concert For Bangladesh.

Seu All Things Must Pass, que considero não somente um dos melhores álbuns-solo já gravados por um ex-Beatle, mas um dos ápices da música popular britânica em todos os tempos, merece um artigo à parte, que tentasse a tarefa impossível de pôr em palavras tanto de inefável que ali se manifesta... Para não me alongar demais nesta "trip", adiciono somente que George Harrison, o mais contemplativo e meditativo dos Beatles, parece-me ser aquele que buscou no Oriente um caminho mais sábio e mais doce em relação às manias ocidentais do individualismo, da ganância, da vaidade, do show-bizz espetaculoso e alienante. Para muita gente que não via mais graça nem verdade em missa, hóstia e papagueações sobre Pecado Original e Culpa, forneceu um outro modelo de espiritualidade, bem mais próxima do hinduísmo, do budismo e do taoísmo do que dos monoteísmos ocidentais. Sua passagem pelo mundo material foi decerto luminosa. E deixou atrás de si muitos humanos profundamente saudosos de seu amor e de sua amizade, multidões de encantados com sua música. Em sua jornada, buscou encontrar o êxtase na contemplação das belezas efêmeras de todas estas coisas que necessariamente vão passar. Sua obra e sua mensagem, mantidas vivas por nós que o admiramos, ainda não passou - e oxalá não passará!


"Isn't it a pity
Isn't it a shame
How we break each other's hearts
And cause each other pain?

How we take each other's love
Without thinking anymore.
Forgetting to give back
Isn't it a pity?

Some things take so long
But how do I explain
When not too many people
Can see we're all the same

And because of all their tears
Their eyes can't hope to see
The beauty that surrounds them...
Isn't it a pity?"

ALL THINGS MUST PASS (1970) . CD 01 . CD 02

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Noitada Monstro com Damn Laser Vampires (RS) - 28/10


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>>> É hoje! Damn Laser Vampires e Bang Bang Babies na Noitada Monstro especial de Halloween: lá no Metrópolis Retrô, rua 83, a partir das 22h, 15 mangos, Goiânia Punk-Polka City. Bóra?!?

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

“O acaso é uma empresa para a qual tudo conspira.”


“considerações necessárias
é preciso tirar a poesia da clausura dos concursos, das gaiolas do acaso, do exílio das gavetas, trazê-la para o sabor do consumo rápido e fácil, envolvê-la de popularidade, sem o vulgarismo perigoso do que é descartável, mas também sem a absurda pretensão do que se quer eterno. 
poesia para fazer rir e refletir, evoluir e incomodar, propor e decompor. poesia para os botecos, para os gabinetes, para as praças, para os salões de festas, para os mocambos, para as favelas, estúdios, vídeo clipes e palanques.
 poesia sem medo, poesia sem trauma, poesia-pão, poesia-sim, poesia-não. pois ia ousar um dia popularizar a poesia.
 viva a poesia viva!”

Descobri há pouco, através da dica certeira do Dieguito, a obra do poeta goiano Pio Vargas (1964-1991). Morto em 1991, aos 26, de uma overdose de cocaína, foi "celebrado" por ninguém menos que Paulo Leminski, que sobre ele escreveu:

Leminski
“Pio Vargas tem um “eu” coletivo tão forte que chego a vê-lo muitos. De sua poesia consigo extrair a certeza do que digo, insistente: há uma geração recente que usa e abusa da modernidade, fazendo dela o principal elemento a interferir na criação. Este Pio Vargas me trouxe uma poesia fascinante que não se atrela a falsos modelos de invenção, mas flutua, inventiva, com os mais amplos e possíveis signos do fazer poético.” >>> LEMINSKI

Conta-se sobre sua vida "meteórica" que foi "esgotada na vida boêmia de Goiânia. Ali crepitou nas casas noturnas, principalmente onde reinasse a efervescência cultural." Para quem quiser saber mais, Edival Lourenço, em matéria na revista Bula, revela mais detalhes sobre o amigo. Na sequência, deixo com vocês o belo poema DESPERTÁCULO (belo neologismo que acasalou em êxtase verbal o DESPERTAR e o ESPETÁCULO...), um dos meus prediletos:
Des­per­tá­cu­lo
Es­tou pron­to
pa­ra a guer­ra que en­con­tro
quan­do acor­do:
 
bo­tei vi­gia nos sen­ti­dos
e ilu­di com com­pri­mi­dos
ou­tros se­res a meu bor­do.
Aban­do­nei o ví­cio
de es­tar sem­pre
a so­le­trar ru­í­nas,
dei li­ber­da­de a meus de­ten­tos
mi­nha pres­sa di­lu­iu nos pas­sos len­tos
e ras­guei
meu ca­len­dá­rio de ro­ti­nas.
In­ver­ti a or­dem.
Já não saio por aí
a de­vo­rar com­pro­mis­sos,
to­mei pos­se no go­ver­no de mim mes­mo
e der­ro­tei os meus omis­sos.
 
Ven­ci a ba­ta­lha
de ter que es­tar sem­pre por per­to,
às ve­zes voo pa­ra den­tro
do meu so­nho a céu aber­to.
 
Es­tou pron­to:
eu já con­cor­do
com a guer­ra que en­con­tro
quan­do acor­do.
PIO VARGAS 


[+ POESIA:] JOSÉ PAULO PAES 
("A posse é-me aventura sem sentido. Só compreendo o pão se divido.")

Blurring Boundaries >>> Beck em 5 Álbuns Essenciais


"Initially pegged as something as a voice of a generation when “Loser” turned into a smash crossover success, Beck did wind up crystallizing much of the post-modern ruckus of the ‘90s alternative explosion, but in unexpected ways. Based in the underground anti-folk and noise-rock worlds, Beck encompassed all manners of modern music, drawing in hip-hop, blues, trash-rock, pop, soul, lounge music…pretty much any found sound or vinyl dug up from a dusty crate, blurring boundaries and encapsulating how ‘90s hipsters looked toward the future by foraging through the past." - STEPHEN THOMAS ERLEWINE (AMG)


Vocês sabem o que dizem sobre David Bowie: que ele é um camaleão humano, capaz de assumir as mais diversas colorações da escala cromática, experimentando com mais estilos que a mais eclética das orquestras, encarnando mais personas que o Johnny Depp... Suas metamorfoses incluem pit-stops no folk lisérgico regado à androginia de Hunky Dory, o glam-rock sci-fi grandiloquente de Ziggy Stardust, passando pela garageira proto-punk dum Alladin Sane, pelo experimentalismo sombrio e ambient da Trilogia de Berlim, sem citar mais uma dúzia de transmutações...

O caso de Beck Hansen me parece similar: este camaleãozinho consegue se camuflar detrás das mais diversas máscaras, e não somente em fases sucessivas de sua carreira, mas frequentemente no transcurso de um mesmo álbum. Beck é um emblema da música pop nos 90 por apostar numa Estética do Liquidificador que dá primazia à diversidade em relação à unidade - sintoma das transformações trazidas pela Cultura Digital (interconexão cada vez mais intensa de elementos díspares) para a composição musical. Talvez seja sintoma de "pós-modernismo", esquizofrenia, perene crise de identidade. Talvez seja um ímpeto aventureiro de quem deseja sempre explorar novos horizontes. Talvez tudo isso junto.

Beck fez de tudo e mais um pouco. Fez rap de branquelo que, como o dos Beastie Boys, trabalha com a técnica metralhadora-giratória-de-referências - como se a composição fosse composta não por versos mas por links. Fez umas funkeiras que beiram o James Brown e o Sly & the Family Stone, como as bomba-pista "Sexxx Laws" e "Mixed Bizness", do altamente festeiro Midnight Vultures. Fez também uns folks introspectivos e melancólicos que remetem a Nick Drake, especialmente no Sea Change, álbum do coração partido e das lágrimas solitárias. Ainda teve a manha de flertar com a música brasileira da Tropicália, de tentar tornar-se o novo Bob Dylan com as letras hieroglifo de Mutations, tudo enquanto sonhava com aquele corte-de-cabelo do-capeta.

A obra de Beck é vasta, irregular, cheia de seus altos-e-baixos. Mas é algo a se explorar com paciência, sem medo dos labirintos e dos versos non-sense, ainda que beire o impossível compreender por inteiro a salada-de-frutas com cogumelos alucinógenos que ele prepara para nosso delirante paladar.

 Aí vão, pois, os 5 álbuns de Beck prediletos de nós aqui do Depredando.

Aprecie sem moderação!




1998 - Mutations

1996 - Odelay

2002 - Sea Change

1999 - Midnite Vultures

1994 - Mellow Gold

domingo, 23 de outubro de 2011

Aimee Mann

"Aimee Mann has always been known for her clever, literate, and dryly witty takes on emotional sabotage and self-destruction. Though happily married to Michael Penn, her fascination continues with 'the freaks who could never love anyone.' With a songcraft often compared with the Beatles and Badfinger, Mann frequently pairs the bleakest of poetry with soaring, infectious melodies." - http://www.aimeemann.com

Bachelor Nº 2 (2000)
http://www.mediafire.com/?ho77ppqdljyf9yq

Magnolia Original Soundtrack (1999)
http://www.mediafire.com/?c2mizxwd03jva2v

I'm With Stupid (1995)
http://www.mediafire.com/?icg6xdzewz3e7od

Whatever (1993)
http://www.mediafire.com/?jfti28jftktqrrp

sábado, 22 de outubro de 2011

Alvin Youngblood Hart (o blueseiro-rasta!)



Big Mama's Door - 1996 - download

Os clipes de Paul Thomas Anderson e Fiona Apple


Que P.T. Anderson seja um dos mais brilhantes cineastas americanos vivos é contestado por poucos. Na ilustre companhia de Fincher, Nolan e Aronofsky, Anderson é um daqueles raros artistas capazes de encantar as massas sem perder o respeito dos críticos, uma proeza "spielberguiana" de que poucos podem se orgulhar. Depois de cravar um par de clássicos já inscritos na história do cinema noventista em seu currículo (Boogie Nights e Magnolia), depois de atingir dimensões kubrickianas em Sangue Negro, e depois de provar que é um "maestro de atores" tão mágico que é capaz de extrair interpretações memoráveis até dum Adam Sandler (Punch-Drunk Love), Paul Thomas Anderson é decerto uma das mentes mais admiráveis hoje em ação na sétima arte.

Que Fiona Apple seja, de outro lado, uma das compositoras e intérpretes mais talentosas e adoráveis que surgiram nos anos 90 também é difícil de contestar - considerando a complexidade lírica, a autenticidade expressiva, a "aventurosidade" experimental e a ousadia confessional que fazem de Tidal, When The Pawn e Extraordinary Machine alguns dos melhores álbuns criados por uma cantora-compositora nas últimas décadas. Quando "estourou" em 1996 com o clipe-pólvora de "Criminal", carro-chefe do álbum que consagraria a menina-prodígio de 17 anos de idade como um fenômeno capaz de vender mais de 2 milhões e 700 mil cópias (segundo a RIAA), Fiona Apple já demonstrava que conhecia o potencial "visual" de sua música e que prometia dar ao mundo alguns clipes tão deslumbrantes quanto aqueles que Michel Gondry fez para Björk.

A "dobradinha" video-clíptica entre Fiona e P.T. Anderson, que chegaram a namorar por um tempo, têm quatro contribuições de encher os olhos. Mais ou menos na época em que apresentava a um público mais vasto outra cantora-e-compositora de muita expressão (Aimee Mann, catapultada para um sucesso mais amplo por sua trilha de Magnolia), Paul Thomas Anderson assumiu a direção de vários clipes do 2º álbum de Fiona Apple: a violenta e rancorosa "Limp", que contêm alguns dos versos mais inesquecíveis que ela já cometeu ("You fondle my trigger then you blame my gun..."); a galopante e audaz "Fast As You Can" e o belíssimo lamento de desconsolo e carência "Paper Bag" ("Honey I don't feel so good, don't feel justified... Come on put a little love here in my void...").

Além disso, dirigiu em classudo preto-e-branco a versão de Apple para "Across The Universe", dos Beatles, num clipe em que ela mantêm-se em estado de serenidade quase búdica, imperturbável em sua "meditação" com fones-de-ouvido, enquanto um pandemônio de destruição ruge ao seu redor.

São clipes que valem muito a pena serem assistidos e que revelam dois artistas autênticos que, na época de mais intensa colaboração e apaixonamento, além do vínculo afetivo e da cama compartilhada, uniram simbioticamente suas visões nestas pequenas pérolas do video-clipe. Um viva pra eles!



quinta-feira, 20 de outubro de 2011

"A People's History of American Empire", by Howard Zinn


“To be hopeful in bad times is not just foolishly romantic. It is based on the fact that human history is a history not only of cruelty, but also of compassion, sacrifice, courage, kindness.
What we choose to emphasize in this complex history will determine our lives. If we see only the worst, it destroys our capacity to do something. If we remember those times and places—and there are so many—where people have behaved magnificently, this gives us the energy to act, and at least the possibility of sending this spinning top of a world in a different direction.
And if we do act, in however small a way, we don’t have to wait for some grand utopian future. The future is an infinite succession of presents, and to live now as we think human beings should live, in defiance of all that is bad around us, is itself a marvelous victory.”
Howard Zinn

domingo, 16 de outubro de 2011

<<< Paulo Freire (1921-1997), o Andarilho da Utopia (épico radiofônico) >>>


:: PAULO FREIRE, Andarilho da Utopia
http://www.rnw.nl/portugues/radioprogramme/paulo-freire-o-andarilho-da-utopia

"A Unesco constata a existência de 700 milhões de adultos que não sabem ler nem escrever. Para o Fundo das Nações Unidas para a Educação, esta é uma situação que tem implicações potencialmente explosivas para a paz e prosperidade mundiais.

A utopia de Paulo Freire é uma das esperanças do mundo para reverter esta situação. A crença de Paulo Freire na força do diálogo como ferramenta essencial de transformação de homens e mulheres por meio da educação, traduz o desejo da Radio Nederland de se aproximar ainda mais de suas parceiras no Brasil, através de projetos especiais, que visam sobretudo o desenvolvimento humano.

O especial 'Paulo Freire, Andarilho da Utopia', é dividido em cinco blocos e traz depoimentos de colaboradores, familiares e do próprio Paulo Freire. Da segunda metade da década de 40 à morte de Paulo Freire em 1997, a série retrata não apenas a vida do educador brasileiro, mas também mostra o Brasil dos últimos 50 anos. As inúmeras inserções de sons de época situam o ouvinte em vários momentos da recente história do Brasil.

Rádio cinematográfica

André Barbosa, diretor geral deste especial, quis realizar o que chama de 'Rádio Cinematográfica', introduzindo no documentário mecanismos utilizados nos filmes de ficção. Enriquecem a produção a trilha sonora de Homero Lotito e a participação da dupla de sertanejos nordestinos, Sebastião e José Francisco, que trabalhou com o educador brasileiro no momento em que este era Secretário de Educação da cidade de São Paulo.

O especial 'Paulo Freire, Andarilho da Utopia' tem a locução de André Barbosa e Telma Feher e foi desenvolvido em parceria com a Criar - Assessoria de Comunicação de São Paulo, com o apoio da Universidade de São Paulo e do Instituto Paulo Freire, entre outras instituições.

Este foi o primeiro projeto em regime de co-produção que a Radio Nederland realizou com uma instituição brasileira e foi lançado em 1999."


"Eu recuso qualquer posição fatalista diante da história e dos fatos. Não aceito, por exemplo, expressões como 'é uma pena que haja tantos brasileiros morrendo de fome, mas, afinal, a realidade é essa mesma...' Não! Eu recuso como falsa e como ideológica essa afirmação! Nenhuma realidade é 'assim mesma'. Toda realidade está aí submetida à possibilidade de nossa intervenção nela. (...) Uma das preocupações minhas, uma das razões de minha luta e minha presença no mundo, é a de contribuir como educador... para que se vá além da passividade através de posturas rebeldes e criticamente transformadoras do mundo."




PAULO FREIREAndarilho da Utopia
(Rádio Nederlands + Instituto Paulo Freire)


- 74 min. CD-RIP. Mp3 de 320kps -

terça-feira, 11 de outubro de 2011

<<< Depredando, a Mixtape - volume IX - Messin' With The Blues >>>

O blues é mais que um gênero musical: é um estado de espírito. Não é preciso ter vivido às margens do Mississipi ou ter penado nas plantações da colônia inglesa na América para compreender o queixume dos blueseiros. A melancolia não tem dono. Somos todos, vez ou outra, suas vítimas. A idéia desta nova mixtape Messin' With The Blues é dar um passeio por artistas que não costumam ser rotulados e classificados dentro do blues, mas que compuseram flertes e tributos a ele, ou que "brincaram" com ele, ou que o re-interpretaram em outra chave, outro ritmo, outra época...

Começamos a jornada com um dos maiores trompetistas da história do jazz, o incomparável Miles Davis, que no clássico Get Up With It (1974), já esmiuçado por Eduardo Gianetti, compôs um belo "Blues da China Comunista", com harmônica chorando e tudo. Na sequência, John Lennon mostra que mesmo antes de sua carreira-solo, tão repleta de canções angustiadas e angustiantes, já tingia certas canções do Beatles com um blues quase suicida: "Yes, I'm lonely, wanna die / If I ain't dead already, you know the reason why...", canta John em "Yer Blues", do White Album.

Já Tom Waits encarna o loser de boteco que solta uivos na madrugada em "Fumblin' With the Blues": "It's hard to win when you always lose". E a diva do R&B Esther Phillips entoa na sequência o dolorido "Black-Eye Blues", uma canção que parece um curta de Spike Lee e retrata o lamento de uma mulher vítima de violência doméstica: "Preciso de uma vacinação", canta Esther, "contra o blues do olho-roxo".

Depois, é hora de uma melancolia mais noventista e grungy tomar espaço, primeiro com o Afghan Whigs ("You can fuck my body, babe, but please don't fuck my mind", canta Greg Dulli, sexy como sempre, em "Neglected") e depois com Chris Cornell (que, numa canção de amor das mais belas de sua carreira, diz à sua amada: "Só te amo quando estou down / Mas mantenha em mente: / Estou down o tempo inteiro").

Artistas mais vinculados ao folk e ao country - como Lucinda Williams, Tim Hardin, Wilco e Bob Dylan - também não deixam de flertar com o blues em vários momentos de suas respectivas carreiras, o que justifica sua presença aqui com canções que versam sobre "acordar sentindo-se velho" e trens que causam prantos. Como não poderia deixar de ser, a "fitinha" também dá espaço para artistas profundamente influenciados pelo blues, como Creedence Clearwater Revival, The Kinks e Jimi Hendrix, e aqueles que lá nos primórdios marcaram a história do gênero, como a fabulosa Bessie Smith, primeira imperatriz do Blues.


O falecido Elliott Smith, um dos maiores talentos da música americana no pós-Jeff Buckley, também demonstra quão sublime pode tornar-se um lamento musicado na linda "Junk Bond Trader". E, convenhamos, só quem manja muito de tristeza pode suicidar-se com uma facada no coração, como fez Elliott anos atrás, mutilando seus fiéis cultuadores (há boatos, porém, de que a misteriosa morte possa ter sido homicídio, como sugere a matéria no Guardian...)

 E para não dizerem que blues só tem a ver com soturna gravidade, aí estão os sempre irreverentes Mutantes para provar o contrário: "Meu Refrigerador Não Funciona", do clássico A Divina Comédia (1970), é uma espécie de blues-paródia, em que a intensidade da performance constrasta com a "mundanidade" do tema: eis um queixume altamente dramático sobre uma grande desgraça que aflige a condição humana, isto é, cerveja esquentando quando a geladeira pifa. Rita Lee nunca foi tão Janis Joplin. E o blues nunca foi tão feliz.



16 tracks in playlist, average track length: 3:58
Playlist length: 1 hour, 3 minutes, 40 seconds

[download gratuito]

01 - Miles Davis - Red China Blues (4:09)
02 - The Beatles - Yer Blues (3:57)
03 - Tom Waits - Fumblin' With the Blues (3:02)
04 - Esther Phillips - Black Eyed Blues (6:10)
05 - Afghan Whigs - Neglected (4:01)
06 - Chris Cornell - When I'm Down (4:20)
07 - Tim Hardin - How Long (2:54)
08 - Wilco - When You Wake up Feeling Old (3:55)
09 - Lucinda Williams - Can't Let Go (3:28)
10 - Bob Dylan - It Takes A Lot To Laugh, It Takes a Train to Cry (4:09)
11 - The Kinks - Little Miss Queen Of Darkness (3:16)
12 - Elliott Smith - Junk Bond Trader (3:49)
13 - Creedence Clearwater Revival - Before You Accuse Me (3:26)
14 - Jimi Hendrix - Red House (3:43)
15 - Os Mutantes - Meu Refrigerador Não Funciona (6:22)
16 - Bessie Smith - After You've Gone (2:59)

[+] mixtape número 8 (clash, stones, hendrix, ccr, karen o, black mountain...)

domingo, 9 de outubro de 2011

:: L'Homme Revolté! (Albert Camus) ::



“A revolta nasce do espetáculo da desrazão diante de uma condição injusta e incompreensível. Mas seu ímpeto cego reivindica a ordem no meio do caos e a unidade no próprio seio daquilo que foge e desaparece. A revolta clama, ela exige, ela quer que o escândalo termine e que se fixe finalmente aquilo que até então se escrevia sem trégua sobre o mar. Sua preocupação é transformar. (…) Que é um homem revoltado? Um homem que diz não. Mas, se ele recusa, não renuncia: é também um homem que diz sim, desde o seu primeiro movimento. Um escravo, que recebeu ordens durante toda a sua vida, julga subitamente inaceitável um novo comando. Qual é o significado deste ‘não’?

Significa, por exemplo, ‘as coisas já duraram demais’, ‘até aí, sim; a partir daí, não’; ‘assim já é demais’, e, ainda, ‘há um limite que você quer ultrapassar’. (…) Encontra-se a mesma idéia de limite no sentimento do revoltado de que o outro ‘exagera’, que estende o seu direito além de uma fronteira a partir da qual um outro direito o enfrenta e o delimita. Desta forma, o movimento de revolta apóia-se ao mesmo tempo na recusa categórica de uma intromissão julgada intolerável e na certeza confusa de um direito efetivo ou, mais exatamente, na impressão do revoltado de que ele ‘tem o direito de…’. A revolta não ocorre sem o sentimento de que, de alguma forma e em algum lugar, se tem razão. (…) Ele [o revoltado] demonstra, com obstinação, que traz em si algo que ‘vale a pena’ e que deve ser levado em conta. De certa maneira, ele contrapõe à ordem que o oprime uma espécie de direito de não ser oprimido além daquilo que pode admitir.

O revoltado, no sentido etimológico, é alguém que se rebela. Caminhava sob o chicote do senhor, agora o enfrenta. Contrapõe o que é preferível ao que não o é. Nem todo valor acarreta a revolta, mas todo movimento de revolta invoca tacitamente um valor. (…) Segundo os bons autores, o valor ‘representa, na maioria das vezes, uma passagem do fato ao direito, do desejado ao desejável (em geral, por meio do geralmente desejado)’ (Lalande, Vocabulário Filosófico). A revolta passa do ‘seria necessário que assim fosse’ ao ‘quero que assim seja’, mas talvez, mais ainda, a essa noção de superação do indivíduo para um bem doravante comum. O surgimento do Tudo ou Nada mostra que a revolta, contrariamente à voz corrente, e apesar de oriunda daquilo que o homem tem de mais estritamente individual, questiona a própria noção de indivíduo. Se com efeito o indivíduo aceita morrer, e morre quando surge a ocasião, no movimento de sua revolta, ele mostra com isso que se sacrifica em prol de um bem que julga transcender o seu próprio destino.”


* * * *

“A revolta não nasce, única e obrigatoriamente, entre os oprimidos, podendo também nascer do espetáculo da opressão cuja vítima é um outro. Existe portanto, neste caso, identificação com outro indivíduo. E é necessário deixar claro que não se trata de uma identificação psicológica, subterfúgio pelo qual o indivíduo sentiria na imaginação que é a ele que se dirige a ofensa. Pode ocorrer, pelo contrário, que não se consiga ver infligir a outros ofensas que nós mesmos temos sofrido sem revolta. Os suicídios de protesto, no cárcere, entre os terroristas russos cujos companheiros eram chicoteados ilustram esse grande movimento. Não se trata tampouco do sentimento da comunhão de interesses. Na verdade, podemos achar revoltante a injustiça imposta a homens que consideramos adversários. (…) Na revolta, o homem se transcende no outro.

Nunca é demais insistir na afirmação apaixonada subjacente ao movimento de revolta e que o distingue do ressentimento. Aparentemente negativa, já que nada cria, a revolta é profundamente positiva, porque revela aquilo que no homem sempre deve ser defendido. (…) Um escravo grego, um vassalo, um condottiere do Renascimento, um burguês parisiente da Regência, um intelectual russo de 1900 e um operário contemporâneo, mesmo divergindo quanto às razões da revolta, concordariam, sem dúvida, quanto à sua legitimidade.

Poder-se-ia ainda ser mais explícito e observar, com Scheler, que o espírito de revolta dificilmente se exprime nas sociedades em que as desigualdades são muito grandes (regime hindu de castas) ou, pelo contrário, naquelas em que a igualdade é absoluta (certas sociedades primitivas). Em sociedade, o espírito de revolta só é possível em grupos nos quais uma igualdade teórica encontra grandes desigualdades de fato. (…) A revolta é o ato do homem informado, que tem consciência de seus direitos. Mas nada nos autoriza a dizer que se trata apenas dos direitos do indivíduo. Pelo contrário, parece que, pela solidariedade, trata-se de uma consciência cada vez mais ampla que a espécie humana toma de si mesma ao longo de sua aventura.

O homem revoltado é o homem situado antes ou depois do sagrado e dedicado a reivindicar uma ordem humana em que todas as respostas sejam humanas, isto é, formuladas racionalmente. A partir desse momento, qualquer pergunta, qualquer palavra é revolta, enquanto, no mundo do sagrado, toda palavra é ação de graças. (…) A atualidade do problema da revolta depende apenas do fato de sociedades inteiras desejarem manter hoje em dia uma distância em relação ao sagrado. Vivemos em uma sociedade dessacralizada. (…) A história atual, por suas contestações, obriga-nos a dizer que a revolta é uma das dimensões essenciais do homem. Ela é a nossa realidade histórica. (…) Longe do sagrado e de seus valores absolutos, pode-se encontrar uma regra de conduta? Esta é a pergunta formulada pela revolta.

Na experiência do absurdo, o sofrimento é individual. A partir do momento da revolta, ele ganha a consciência de ser coletivo, é a aventura de todos. (…) O mal que apenas um homem sentia torna-se peste coletiva. Na nossa provação diária, a revolta desempenha o mesmo papel que o cogito na ordem do pensamento: ela é a primeira evidência. Mas essa evidência tira o indivíduo de sua solidão. Ela é um território comum que fundamenta o primeiro valor dos homens. Eu me revolto, logo existimos.”

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

<<< The Blues: The Voice of the Opressed >>>


blues é mais do que um gênero musical: é sobretudo um estado de espírito. É o modo que encontrou para se expressar e se tornar criador o negro afro-americano, oprimido nas lavouras, penando de Sol a Sol para encher de bufunfa os bolsos dos "donos" das plantações. "This land is our land!", protesta através dos séculos Woody Guthrie, precursor de Bob Dylan, aquele que costumava dizer de seu violão que "esta máquina mata fascistas". Lembrar das contradições brutais de classe e do escancarado racismo persecutório dos colonos brancos é sempre útil quando queremos ouvir um velho blues ou folk com consciência da realidade que os produziu e de quais são as feridas exorcizadas por estes cantares.

Quando John Steinbeck descreve, em As Vinhas Da Ira, a epopéia camponesa durante a Grande Depressão (1929-1933), com a migração em massa dos camponeses (okies) rumo à Terra Prometida da Califórnia, não se esquece de colocar a música como pano-de-fundo desta extenuante jornada: a família Joad, e todos os que compartilham com ela o destino de camponeses depauperados e forçados ao exílio, encontram na cantoria coletiva uma das maiores colas sociais que cimentam sua solidariedade. Uma solidariedade que é absolutamente vital, caso queiram sobreviver à insensatez de um sistema econômico grotesco que concentra todas as riquezas nas mãos de banqueiros, latifundiários e políticos que reinam, meros gatos-pingados, sobre multidões de miséraveis.

 Nas bordas da Rodovia 66, que atravessa os EUA quase de Costa a Costa, os okies errantes, aos farrapos, mas fortalecidos na união e na revolta, entoam suas canções: lembrar destas cenas sempre me enche o coração de afeição por este lindo livro (dos melhores já escritos por um norte-americano, com certeza!). Steinbeck, em As Vinhas da Ira, quando nos põe no epicentro pulsante dos acampamentos camponeses destes ciganos utópicos e proto-hippies cobertos de feridas e fadiga, pinta um belo quadro de uma comunidade onde o canto solidariza e a música reúne. A melodia é a carrasca da solidão, e o ritmo o verdugo da passividade, da preguiça, da resignação. É como se dissessem: "Reivindicamos uma sociedade onde a música e a poesia não sejam malquistas, perseguidas, proibidas!" (Como na infame República Ideal de Platão, este exilador dos lirismos e condenador dos inocentes e potentes deleites sensórios!) "Que a música seja laço, vínculo, celebração!" 

O blues e o folk, quando nascem, são legítimas emanações do sentimento popular, encarnações artísticas da voz das massas: os oprimidos, por esta via, fazem ser ouvido seus lamentos ao mesmo tempo que celebram sua identidade. "I've got the blues", desde os primórdios, com Robert Johnson ou Leadbelly, se traduz por um certo desconforto íntimo, uma pedra no sapato da alma. Mas não há nada de suicida nem auto-destrutivo neste pesadume interno que apelidou-se de "blues": ele serve muito mais como uma espécie de combustível onde pode-se acender a fogueira da catarse. Cantar a dor é meio para vencê-la: os blueseiros, os folkeiros que protestam, também conhecem, e com um conhecimento visceral, a realidade do "quem canta seus males espanta". O blues seria terrível se não se tornasse música. Mas o que era melancolia e angústia transfigura-se em Beleza nesta passagem da dor inexpressa à dor ritmada e melodizada.

Quem tem o blues tem razões de lamento, tem pesadumes e amargores que lhe pesam na alma, amargando-a. Mas também o poder de transformá-los - amargumes, feridas, mágoas... - em algo Belo, em algo que desperte empatia, compaixão, solidariedade. Pois o blues é muito mais do que simples expressão do sofrimento, muito mais do que um mero queixume de reclamão ou de choramingas: é algo que serve para transfigurar o padecer através do expressar de modo que surge algo de sublime das próprias vísceras da dor. Uma obra nasceu: um sentimento compartilhado por muitos ganhou uma encarnação concreta que talvez sobreviva à morte daquele que a criou. É o caso destes blues, cantados pelos mortos mas que soam tão vivos, e que ouço com tanto prazer e fascinação: Bessie Smith, Son House, Leadbelly, Big Bill Broonzy, Robert Johnson, Lightining Hopkins, Muddy Waters... 

É a beleza que se tira das feridas, ao cantá-las, que está no âmago da fascinação que esta música causa. Se tivermos a História na memória (onde mais ela sobreviveria senão no palco da lembrança voluntária?), sua "aura" não se perde, mesmo na "era da reprodutibilidade técnica" de que nos fala Walter Benjamin. Os blues têm algo de intemporal pois os afetos que os animam não saíram de moda - como as multilionárias vendas massivas de Prozac e outros reguladores químicos do ânimo nos atestam. Ainda sofre-se um bocado, neste mundo, e as causas mudaram só um pouco: a concentração de capital, a exploração do trabalho e a opressão contra a expressão artística que empodera as massas prosseguem dando as cartas nesta nossa cultura gerida por Hollywood, Wall Street, FMI e Banco Mundial.

Prosseguimos tendo razão de sobra para sentir por dentro o pesadume do blues: mais de 1.000.000.000 de pessoas subnutridas, contorcendo-se na terrível cotidianidade da fome, enquanto certos endinheiradoss graúdos se entopem de caviar e indigestão - enquanto marcha adiante a suicida mescla de mega-corporações, especulação financeira e emissões de gases tóxicos para a atmosfera. Aqueles que um dia lamentaram-se e protestaram contra os opressores, reivindicando o reconhecimento de sua dignidade e seu potencial de criação de Beleza, podem ser nossos camaradas aqui-e-agora: gera-se uma comunidade de sofrentes (e lutadores!) que se estende de nós, aqui no presente, e engloba lá atrás os sofrentes de outrora, num abraço entre vivos e mortos.



Bessie Smith, "the Empress of the Blues", 1924
Ouça: Mama's Got The Blues (1925-1933)


Woody Guthrie: "esta máquina mata fascistas"