Como Leonard Cohen antes dela, Patti Smith foi o tipo de artista que teve uma carreira literária respeitável antes de tentar a sorte na música. Mas, enquanto Cohen abraçou uma sonoridade folk misteriosa, soturna e mística, Patti aderiu ao rock and roll de garagem e se tornou uma explosão elétrica de poesia violenta nos primórdios do punk rock. “Patti Smith é uma bem educada mulher americana, ela conhece a Bíblia e os poetas franceses, mas ela essencialmente está enraizada no rock and roll: é ele sua verdadeira cultura. É uma cultura física centrada em fugir de casa e começar a exploração sexual, os shows de rock e as inúmeras noites-sem-dormir, drogas e poesia, ruas e porões, guitarras e sonhos...” (Assante)
A moça, que já tinha sido pintora e dramaturga antes de querer ser uma rock and roll star, narrou em 1973 o impacto que teve em sua vida o fato de ter visto, quando criança, os Rolling Stones no Ed Sullivan Show: “Aquilo não era música do garotinho da mamãe”, comentou ela. “Amor cego pelo meu pai foi a primeira coisa que sacrifiquei pelo Mick Jagger!" Antes dos Stones, ela já tinha amado Little Richards e as Ronettes; e tinha venerado também com paixão selvagem um adolescente francês do século 19 que ela injetaria nas veias da música: Arthur Rimbaud.
Depois de mudar para uma Nova York borbulhante em 1967, indo morar no célebre Chelsea Hotel (onde Sid Vicious daria a facada fatal em sua namorada groupie Nancy Spungen), virou amiga do pessoal do Television, viu o Velvet Underground nascer, se integrou nos experimentos de Andy Warhol e conheceu seu amigo Robert Mapplethorpe, que se tornou seu fotógrafo oficial.
Começou a declamar poesia com fundo musical já em 1971, meia dúzia de anos antes de se tornar uma das figuras cult mais peculiares da cena que rodeava o CBGBs. Estando no camarote de uma cultura rock cheia de acontecimentos, escreveu como crítica musical para revistas como Creem e Rolling Stone. Publicou Seventh Heaven, primeiro livrinho de poesias, e começou a fazer leituras em igrejas na Baixa Manhattan. Logo o amigo e crítico de rock Lenny Kaye (editor da coleta Nuggets) começou a acompanhá-la com uma guitarra – a junção de rock e poesia começava a dar forma ao que viria a ser o The Patti Smith Group. Em 1974 já lançava seu primeiro single independente, que continha uma versão de “Hey Joe” de Jimi Hendrix e a incrível revolta poética de “Piss Factory”.
Produzido por John Cale, Horses, o disco de estréia de Patti Smith, vinha recheado de frescor e originalidade – era uma das primeiras vezes na história que o mundo via surgir uma garota tão ousada, original e arrojada, que vinha para reescrever para sempre as regras sobre o que as mulheres podiam ou não fazer no rock. Debbie Harrie, Courney Love, PJ Harvey, AniDiFranco e Liz Phair, sem falar no movimento riot grrrl inteiro, são discípulas que devem honras às realizações dessa grande iconoclasta. “A vocalista combinou o poder da florescente cena punk de Nova York com as narrativas aventureiras dos poetas beat de São Francisco, criando um som verdadeiramente único e cuja influência viria a ser notada em grupos como os Talking Heads ou R.E.M.” (1000 Discos Para Ouvir Antes de Morrer)
E a moça não tinha medo da polêmica. O primeiro verso do disco fez história: sob um pianinho suave, ela canta: “Jesus morreu pelos pecados de alguém, mas não pelos meus” – como um pequeno Nietzsche que diz “não, obrigado!” à culpa cristã que os padres tentam nos inculcar. Assante chama isso de “a couldn’t-care-less and sibylline declaration of war, in the snake-like style The Stones used in “Sympathy for the Devil”. Depois “Gloria” explode para um épico rocker que presta tributo ao Them de Van Morrison. Duas músicas épicas de 10 minutos de duração – “Birdland” e “Land” – demonstram o radicalismo da abordagem lírica de Patti Smith, já que ela declama de modo entusiástico e um tanto surrealista seus versos frequemente nonsense ou contendo imagens de difícil interpretação, quase como se estivesse pintando um retrato semelhante às Iluminuras rimbaudianas enquanto uma banda de rock come solta lá atrás...
Apesar de ser uma artista de ultra-vanguarda, perita em artes plásticas e literatura, que realizava em suas palavras um mundo poético extremamente idiossincrático, Patti Smith tinha também dentro de si uma garotinha bêbada de sonhos em relação à glória no mundo pop. Dizem que Patti Smith tencionava “agarrar a coroa que lentamente ia deslizando da cabeça dos Stones, que nem Iggy Pop nem Lou Reed haviam conseguido agarrar com vigor suficiente. O único pretendente, como Patti Smith disse a William Burroughs em 1979, era o Bowie, mas ele não era americano” (ASSANTE).
Ela só explodiria nas paradas em 1978, com o hit “Because the Night” (composto em conjunto com Bruce Springsteen), do brilhante álbum Easter. Mas aí, depois de ter influenciado o movimento punk e ter se tornado uma grande rock star, “começou a perceber que o rock não era o paraíso mas o inferno – era corrupto, mercenário e impuro como o resto do mundo. O rock não ia aperfeiçoar o mundo – iria somente explorá-lo para faturar dólares.” Casou-se com o já falecido guitarrista do MC5, Fred “Sonic” Smith, com quem teve dois filhos, e pareceu ter substituído o sonho do rock and roll por um sonho mais modesto de recolhimento familiar e cautelosas ressurreições, sempre com álbuns muito relevantes.
“Desde então ela tem sido uma presença discreta e alerta na cultura rock, desprovida da antiga vociferação e excessos, mas igualmente fascinante e misteriosa – e ainda hoje misturando rock, poesia, espiritualidade e esperança.” (ASSANTE) Patti Smith, essa gênia borbulhante, autêntica heroína do rock and roll, parecia afim de ser um Rimbaud de saias cantando numa banda de punk rock, ou uma poetisa beat decadente dançando ao som selvagem da guitarra elétrica... Usando de maneirismos vocais tirados de Jim Morrison, Mick Jagger, Iggy Pop e Tom Verlaine, Patti entregava uma performance intensa e memorável. Como comenta Mark Paytress, "Patti Smith e seu grupo reescreveram o livro de regras do rock and roll através de uma abordagem artística de vanguarda do garage rock". Ainda hoje, falta o devido reconhecimento à genialidade do legado desta poetisa beat que, abraçando o rock and roll numa comunhão cheia de amor e fúria, acabou transformando-o para sempre com sua poesia e sua ampla visão.
1975 - "HORSES"
“A debut album instantly compared to all the great rock’n’roll debut LPs, it fused art and energy in a way that was virtually incomprehensible in rock’s otherwise bloated and increasingly superfluous mid-Seventies. Six months later, Smith’s self-styled “three-chord rock merged with the power of the word” rolled into London, where a thrill-starved minority was eager to catch at first-hand what had been happening in New York clubs such as CBGB’s and Max’s Kansas City. High on rebellion, higher still on rock’n’roll mythology, Patti Smith was the one who stopped the rot. Misleadingly described as ‘the new Bruce Springsteen’, this electrifying performer, who packet out The Roadhouse on two consecutive nights, was a far more incendiary figure. Spearheading what she called ‘the fight against fat and Roman satisfaction’, Patti was lean and mean, her pasty complexion, sunken cheeks and fabulously androgynous look signifying something different altogether. (...) Future members of all-women punk bands the Slits and The Raincoats first crossed paths at Patti’s Roundhouse gigs.” – I WAS THERE, de Mark Paytress.
"piss factory":
"horses" + "hey joe":
"horses" + "hey joe":
lendo poesia:
c/ a criançada:
3 comentários:
Porra, que texto maravilhoso, e que homenagem a esta maravilhosa cantora. Só mesmo agradecendo por todos estes discos que ela lançou e você postou aqui. Maravilha.
Valeu ae, Carlos Alberto! Sempre massa saber que as matérias por aqui estão sendo lidas e curtidas e que a música aqui partilhada... maravilha.
Um abraço e volte sempre!
Os links estão todos exluidos, podes repostar?
Postar um comentário