segunda-feira, 3 de outubro de 2011

<<< The Blues: The Voice of the Opressed >>>


blues é mais do que um gênero musical: é sobretudo um estado de espírito. É o modo que encontrou para se expressar e se tornar criador o negro afro-americano, oprimido nas lavouras, penando de Sol a Sol para encher de bufunfa os bolsos dos "donos" das plantações. "This land is our land!", protesta através dos séculos Woody Guthrie, precursor de Bob Dylan, aquele que costumava dizer de seu violão que "esta máquina mata fascistas". Lembrar das contradições brutais de classe e do escancarado racismo persecutório dos colonos brancos é sempre útil quando queremos ouvir um velho blues ou folk com consciência da realidade que os produziu e de quais são as feridas exorcizadas por estes cantares.

Quando John Steinbeck descreve, em As Vinhas Da Ira, a epopéia camponesa durante a Grande Depressão (1929-1933), com a migração em massa dos camponeses (okies) rumo à Terra Prometida da Califórnia, não se esquece de colocar a música como pano-de-fundo desta extenuante jornada: a família Joad, e todos os que compartilham com ela o destino de camponeses depauperados e forçados ao exílio, encontram na cantoria coletiva uma das maiores colas sociais que cimentam sua solidariedade. Uma solidariedade que é absolutamente vital, caso queiram sobreviver à insensatez de um sistema econômico grotesco que concentra todas as riquezas nas mãos de banqueiros, latifundiários e políticos que reinam, meros gatos-pingados, sobre multidões de miséraveis.

 Nas bordas da Rodovia 66, que atravessa os EUA quase de Costa a Costa, os okies errantes, aos farrapos, mas fortalecidos na união e na revolta, entoam suas canções: lembrar destas cenas sempre me enche o coração de afeição por este lindo livro (dos melhores já escritos por um norte-americano, com certeza!). Steinbeck, em As Vinhas da Ira, quando nos põe no epicentro pulsante dos acampamentos camponeses destes ciganos utópicos e proto-hippies cobertos de feridas e fadiga, pinta um belo quadro de uma comunidade onde o canto solidariza e a música reúne. A melodia é a carrasca da solidão, e o ritmo o verdugo da passividade, da preguiça, da resignação. É como se dissessem: "Reivindicamos uma sociedade onde a música e a poesia não sejam malquistas, perseguidas, proibidas!" (Como na infame República Ideal de Platão, este exilador dos lirismos e condenador dos inocentes e potentes deleites sensórios!) "Que a música seja laço, vínculo, celebração!" 

O blues e o folk, quando nascem, são legítimas emanações do sentimento popular, encarnações artísticas da voz das massas: os oprimidos, por esta via, fazem ser ouvido seus lamentos ao mesmo tempo que celebram sua identidade. "I've got the blues", desde os primórdios, com Robert Johnson ou Leadbelly, se traduz por um certo desconforto íntimo, uma pedra no sapato da alma. Mas não há nada de suicida nem auto-destrutivo neste pesadume interno que apelidou-se de "blues": ele serve muito mais como uma espécie de combustível onde pode-se acender a fogueira da catarse. Cantar a dor é meio para vencê-la: os blueseiros, os folkeiros que protestam, também conhecem, e com um conhecimento visceral, a realidade do "quem canta seus males espanta". O blues seria terrível se não se tornasse música. Mas o que era melancolia e angústia transfigura-se em Beleza nesta passagem da dor inexpressa à dor ritmada e melodizada.

Quem tem o blues tem razões de lamento, tem pesadumes e amargores que lhe pesam na alma, amargando-a. Mas também o poder de transformá-los - amargumes, feridas, mágoas... - em algo Belo, em algo que desperte empatia, compaixão, solidariedade. Pois o blues é muito mais do que simples expressão do sofrimento, muito mais do que um mero queixume de reclamão ou de choramingas: é algo que serve para transfigurar o padecer através do expressar de modo que surge algo de sublime das próprias vísceras da dor. Uma obra nasceu: um sentimento compartilhado por muitos ganhou uma encarnação concreta que talvez sobreviva à morte daquele que a criou. É o caso destes blues, cantados pelos mortos mas que soam tão vivos, e que ouço com tanto prazer e fascinação: Bessie Smith, Son House, Leadbelly, Big Bill Broonzy, Robert Johnson, Lightining Hopkins, Muddy Waters... 

É a beleza que se tira das feridas, ao cantá-las, que está no âmago da fascinação que esta música causa. Se tivermos a História na memória (onde mais ela sobreviveria senão no palco da lembrança voluntária?), sua "aura" não se perde, mesmo na "era da reprodutibilidade técnica" de que nos fala Walter Benjamin. Os blues têm algo de intemporal pois os afetos que os animam não saíram de moda - como as multilionárias vendas massivas de Prozac e outros reguladores químicos do ânimo nos atestam. Ainda sofre-se um bocado, neste mundo, e as causas mudaram só um pouco: a concentração de capital, a exploração do trabalho e a opressão contra a expressão artística que empodera as massas prosseguem dando as cartas nesta nossa cultura gerida por Hollywood, Wall Street, FMI e Banco Mundial.

Prosseguimos tendo razão de sobra para sentir por dentro o pesadume do blues: mais de 1.000.000.000 de pessoas subnutridas, contorcendo-se na terrível cotidianidade da fome, enquanto certos endinheiradoss graúdos se entopem de caviar e indigestão - enquanto marcha adiante a suicida mescla de mega-corporações, especulação financeira e emissões de gases tóxicos para a atmosfera. Aqueles que um dia lamentaram-se e protestaram contra os opressores, reivindicando o reconhecimento de sua dignidade e seu potencial de criação de Beleza, podem ser nossos camaradas aqui-e-agora: gera-se uma comunidade de sofrentes (e lutadores!) que se estende de nós, aqui no presente, e engloba lá atrás os sofrentes de outrora, num abraço entre vivos e mortos.



Bessie Smith, "the Empress of the Blues", 1924
Ouça: Mama's Got The Blues (1925-1933)


Woody Guthrie: "esta máquina mata fascistas"

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