domingo, 16 de março de 2008

:: os 10 melhores dos anos 60...- #05 ::

[5º]

VAN MORRISON
Astral Weeks
(1968)



MYSTIC RIVER OF SOUND
- por Eduardo Carli de Moraes -


Chega a ser inacreditável que tamanha obra-prima tenha nascido da alma de um jovem irlandês intratável de apenas 23 anos de idade – o garoto prodígio que demonstrou, no correr dos anos, ser uma promessa plenamente cumprida, Mr. Van Morrison... Famoso por seu temperamento arisco, por sua postura de “eremita”, por suas raríssimas entrevistas concedidas e pelas enrascadas em que entra tentando explicar o sentido das próprias letras, o cara, com a discrição que lhe é própria, marcou época na música da 2a metade do século passado como poucos. “Sua influência entre os cantores-compositores de rock não tem rival algum a não ser aquele outro gênio legendário, Bob Dylan“, sugere a Enciclopédia do Rock da Rolling Stone, que comenta ainda que ecos de sua poesia vigorosa e seu estilo vocal fervoroso e apaixonado podem-se ouvir em ícones posteriores que vão de Bruce Springsteen a Elvis Costello, “enquanto a incansável musa do artista irlandês manteve-o prolífico e interessante até os anos 90”. Beck e Jeff Buckley são outros dos graúdos que nunca esconderam o quanto o estilo vocal de Morrison os influenciou como cantores.

Van Morrison, nascido em Belfast, Irlanda do Norte, em 1945, tornou-se uma das figuras cult mais fascinantes da história do rock. Difícil achar que rótulo se enquadra melhor a ele, que era ao mesmo tempo um cantor folk, um potente berrador de blues, um aficcionado pelo jazz, além de ter um background musical lotado de canções folclóricas irlandesas e temas gospel. Antes de Astral Weeks, primeiro álbum clássico de Van Morrison, e o maior de todos eles (apesar de ser uma boa briga contra Moondance pelo título de Disco Mais Perfeito...), Van Morrison estava longe de se um desconhecido. Morrison já tocava com bandas irlandesas desde sua adolescência e já tinha começado a marcar a história da música pop com sua primeira banda de power-blues, o Them. E já havia composto dois singles de sucesso – “Gloria” e “Brown Eyed Girl”.

Mas nada preparava o mundo para a chegada deste álbum, que se tornaria objeto de culto através de todas as décadas que seguiram (e seguirão...) e é até hoje considerado por críticos de renome uma das maiores obras-primas da história do rock. Morrison o gravou em 2 dias apenas, acompanhado por numerosos músicos de jazz a quem dava instruções mínimas, deixando-os entregues a improvisos tipicamente jazzísticos.

Astral Weeks é um daqueles itens de culto intenso principalmente por parte dos críticos de rock e demais entendidos, enquanto o público em geral, muitas vezes, desconhece qualquer outro Morrison que não seja o mais famoso deles – Jim, do The Doors, que obviamente não tem nenhum parentesco com seu xará-de-sobrenome Van. O grande Lester Bangs, por exemplo, chegou ao ponto de, numa frase bombástica muito própria sua, chamar Astral Weeks de “o disco de rock mais importante na minha vida até hoje” (era 1979), e, após comentários auto-biográficos sobre um certo período de fossa que estava passando, arrematou com ótimas percepções sobre o álbum:

“...ele [Astral Weeks] assumiu na época a importância de um farol, uma luz nas praias longínquas das trevas; e mais, era uma prova de que havia ainda algo a ser expressado artisticamente além de niilismo e destruição. (...) Parecia que o sujeito que compôs Astral Weeks sofria de uma dor terrível, uma dor que os discos anteriores de Van Morrison haviam apenas sugerido; mas, como os últimos álbuns do Velvet Underground, havia um elemento redentor na escuridão reinante, uma compaixão suprema pelo sofrimento dos outros e um raio de pura beleza e estupefação mística envolvendo o coração da obra.” (Reações Psicóticas, pg. 22).

Outro excelente crítico musical, o inglês Simon Reynolds, comenta que “o álbum é uma visão, tanto exultante quanto atormentada, do paraíso perdido e talvez, só talvez, reencontrado”.

“De todos os artistas a emergir da era psicodélica e de seu legado, Van Morrison e o Pink Floyd são os mais fixados na nostalgia do Éden. (...) Suas canções reiteram de maneira obsessiva imagens árcades: ‘a criança virgem descalça’; vagar por jardins opalescenetes de chuva nevoenta; saciar uma alma sedenta com água pura da nascente; estar envolto na ‘tranquilidade do silêncio’... E, assim como a poesia de Morrison exalta iridescência e fluidez, sua voz e música personificam tais qualidades. Seu vocal scat-soul é um riacho de fala ininteligível; a música é uma corrente borbulhante, repleta de curvas folk, jazz, blues e soul, cheia de espirais e redemoinhos, cintilizações e manchas solares sob os cílios.” (in: Beijar o Céu)

Essa “saudade do Éden” fica clara no ambiente emocional que besunta todo Astral Weeks (“o reconhecimento da inalterável falta de um lar e a luta contra isso” é a essência do melhor trabalho de Van Morrison, diz M. Mark). Poucos momentos são mais emblemáticos disto do que quando Van canta: “i’m nothing but a stranger in this world / i’ve got a home on high...”. A mistura da melancolia por não ser nada nesse mundo a não ser um estranho, e a esperança radiosa do reencontro futuro de um Lar, é o que torna essa canção – e o álbum em geral... – um originalíssimo e estranho mélange de tristeza e luz, de angústia e radiação, algo que nos sentiríamos tentados a chamar, usando a expressão de Victor Hugo, de melancolia feliz...

Simon Reynolds, grande intérprete da obra, nota, por exemplo, que “em ‘Beside You’ Morrison deseja ansiosamente a proximidade absoluta, o êxtase sem estranhamento da intimidade pura, que talvez só seja experimentado mesmo no peito materno ou na suspensão envolvente do útero. Ele anseia ‘nunca, nunca se perguntar por quê’ e voltar ao reino de onde dúvida e medo foram banidos”.

Astral Weeks é uma das obras mais profundamente espirituais já a dar o ar de suas graças no reino vastíssimo disso que chamamos de “música pop”. Dentre os álbuns clássicos dos anos 60, este é o que se encontra mais distante do espírito da cultura de massas e da reprodutibilidade técnica espantosa que é marca da indústria fonográfica na época. Apesar de ser possível, como tentou fazer o Lester Bangs, sugerir que Astral Weeks é também o produto de uma era (a ressaca que chega batendo forte depois da orgia prolongada dos anos 60), o disco é frequente e insistentemente descrito com o adjetivo, extremamente adequado, de atemporal.

As “preocupações espirituais” de Van Morrison sempre estiveram em primeiríssimo plano em sua carreira, relegando todo o resto a um status secundário. Fama, grana e groupies nunca pareceram dizer muita coisa para ele. Valia muito mais a pena “esquadrinhar o trabalho de místicos, videntes e poetas em busca de pistas” que apontassem para o tal do Éden perdido – como nota muito bem Simon Reynolds. Em suas músicas o ouvimos sailing into the mystic e “procurando por algum tipo de fé que lhe permita sentir-se em paz onde estiver”.

Essas temáticas ditas “místicas” não estão presentes somente neste álbum, mas impregnam e atravessam toda a discografia do cantor no anos 70, como comenta Simon Reynolds: “Seus álbuns de meados dos anos 70 são atormentados por um sonho com a Caledônia, ‘uma terra antiga, que soa como um lar para ele, uma terra onde seus ancestrais começaram tudo de novo e onde gaitas de fole deram à luz o blues’, nas palavras de M. Mark. A Caledônia tem a mesma função mística na cosmologia de Morrison que Sião ou a Áfria tem para os rastafáris ou a ‘velha terra dourada’ tem para a Incredible String Band: é um reino afortunado, onde a inimizade foi abolida e todos os homens são irmãos.”

O sucesso comercial não veio, até porque Astral Weeks era um disco excessivamente contemplativo, intenso e original para que pudesse ser tocado para vastas multidões (com exceção de canções mais palatáveis e radiáveis como “Sweet Thing” e “The Way Young Lovers Do”). Mas a gravadora Warner sempre considerou Van Morrison como um artista de longo prazo, que teria uma longa carreira ao invés de um compositor de singles explosivos. Era apenas o começo de uma brilhante, longa e prolífica carreira com um disco impressionista, fascinante, hipnótico, mesmerizing...

Mais que um disco, Astral Weeks é quase um documento de uma viagem mística, de uma jornada astral em domínios bem acima da terra... O som que faz uma alma em peregrinação por vários estágios do espírito, buscando a salvação, penando e gemendo por ela... O que faz com que Astral Weeks seja um álbum tão especial, tão peculiar e tão atemporal na história da música é essa espécie de halo de luz que parece circundá-lo. Se um disco pudesse ser um anjo com uma auréola dourada reluzente sobre a cabeça, esse disco seria Astral Weeks.

DOWNLOAD (mp3 de 192kps - 74 MB - 8 músicas):
http://www.mediafire.com/?3zygianrva5

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