segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Entrevista com CONTRACONDUTAS DA AIDS

Realizamos uma entrevista com o coletivo Contracondutas da Aids. Ou seria uma plataforma de autoria múltipla? Uma multidão? Bem, o leitor poderá averiguar isso e tirar suas próprias conclusões já na primeira pergunta. Na sua página no Facebook e no seu blog, os divíduos que compõem as Contracondutas tentam fazer uma arqueologia/genealogia do dispositivo da Aids, tentam averiguar como a Aids pôde se produzir como um discurso de verdade, capaz de fazer os “homossexuais” desempenharem o papel de um “agressor biológico” específico, hipostasiado em “doença-vírus-identitária”. Eles lançam luz sobre a aliança entre saber médico e governamentalidade responsável pela gênese desse dispositivo e sobre a exploração capitalista dos corpos, assignados ou não como aidéticos, “uma mais-valia da carne, da carne humana”, vinculada à crescente medicalização da vida. “[…] na era da “Aids de Controle”, que sucedeu a da “Aids Disciplinar”, a intenção não é mais eliminar uma parte da população para servir, entre outras coisas, de exemplo de como não se comportar, mas, sim, de manter um controle identificatório e médico sobre os corpos e a vida, manter certo número de indivíduos disponíveis como cobaias da tecnociência capitalista e o poder médico como soberano da vida”, eles nos dizem. Passemos à entrevista.

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Depredando o Orelhão. Quem são vocês? Um coletivo, uma plataforma múltipla de autoria… uma multidão? Como se dá a escrita? Quais as potências que vocês percebem na escrita?

Contracondutas da Aids. Essa pergunta, ao mesmo tempo banal e previsível, trai a obviedade esperada, por ser uma tentativa de delimitar de antemão uma identidade que nunca esgotaria o que tanto pode ser um conjunto de “singularidades somáticas” quanto a expressão unívoca que aqui se materializa. Nos faz lembrar das manifestações de junho/julho de 2013, quando representantes da sociedade de controle expressaram com certo pesar que não sabiam como negociar com xs manifestantes, uma vez que essxs não possuíam carro de som, umx líder e uma pauta. Em todo caso, permitam-nos citar umx dxs manifestantes que, ao ser questionadx por sua identidade, disse: “Anote aí: sou ninguém.” Mas, para ir mais diretamente ao ponto, podemos ser todas essas coisas, somos um devir sempre minoritário, nas margens micropolíticas do que se tem pensado quando o assunto é Aids. Se surgiram tantas possibilidades nessa pergunta, isso é um excelente sinal. Também poderíamos dizer: somos um vírus que se multiplica sem nunca poder ser encontrado, pois no momento em que foi localizado, já mudou sua forma, somos uma cepa resistente aos anti-retrovirais dos aparatos identificadores da biopolítica. Sobre essa questão de como se dá a escrita, gostamos de pensar que não temos a menor ideia. Não que não haja um tipo de metodologia ou direção para onde caminhamos. Mas como essa pergunta acompanha a questão da identidade, poderíamos afirmar que se trata tanto de espectros que habitam as falas e escrituras – fantasmas silenciados que finalmente resolveram cintilar na sombra que há por trás dessas versões aparentemente neutras e transparentes das teorias “oficialistas” – quanto de uma série de associações e mutações que se dão quando as diferentes contracondutas se intersectam. A escrita é esse nó entre o que apenas chega como um eco e esses vultos que tentamos com muita dificuldade distinguir nas profundezas violentas onde repousam inquietas as vozes interditadas pelo discurso hegemônico. A potência está justamente na resistência à assimilação, tanto acadêmica quanto epistêmica, está na força do grito que não foi calado. Para nós, se trata de manter uma superfície incorporal, a potência de uma presença descarnada, trincar de forma irreparável a superfície insidiosamente coesa do pensamento médico-estatal, a potência que tem gênese unicamente no corpo desconhecido.

D. O que é a Aids? Qual a novidade da versão “adquirida” da síndrome da imunodeficiência? De que formas a Aids vem sendo usada como meio de controle? Quem é atingidx por esse controle e quem o pratica?

C. Bem, essas são justamente as perguntas que em grande parte resumem o trabalho que tentamos realizar. Talvez seja certo afirmar que estamos mais interessadxs em pensar o que não é a Aids em vez de tentar decifrar um enigma. É preciso ser escorregadio e misterioso como a própria doença, se quisermos jogar esse jogo. A palavra talvez não seja “novidade” (aliás, quem gosta de novidade?). Novidades são apenas lampejos que desaparecem no calar das noites, duram exatamente o momento que um novo raio leva para cair. Ao contrário, diríamos que não há absolutamente nada de novo no que fazemos, a não ser que estamos muito mais interessadxs em ouvir os ecos que há tempos viajam no vácuo que permeia os discursos infinitamente quebráveis da teoria oficialista. Mas não apenas isto, pois diferenciamos bem este trabalho que associamos com uma forma dissidente de saber da Aids (saber que fascina, pois é antes de tudo uma “verdade”, verdade que se materializa no corpo, que persiste na resistência política à bionorma), que cuida exatamente de mergulhar nos interstícios abismais que existem na aparente obviedade do vírus. É bem verdade que talvez esse tema tenha estado repousando como umx vampirx que desperta depois de trezentos anos, tentando dar sentido à realidade que já x abandonou. Sobre ser atingidx, certamente podemos pensar em termos de estilhaços de uma bomba atômica que inicialmente atinge um grande número de pessoas que morrem instantaneamente, mas há sempre a radiação que afeta a todxs, em menor ou maior quantidade. É nesse momento radioativo da Aids que talvez nos encontramos, momento aparentemente calmo em sua superfície, mas que repousa num turbilhão de fatos mal construídos, meias-verdades, uma dor que não tem forma e se volatiza, se adapta e se recria, uma metáfora performativa que cria o que descreve.

D. Diz Deleuze: “Entre o poder e o saber, há diferença de natureza, heterogeneidade; mas há também pressuposição recíproca e capturas mútuas e há, enfim, primado de um sobre o outro.” E ainda: “[…] segundo Foucault, tudo é prática; mas a prática do poder permanece irredutível a toda prática do saber. Para marcar essa diferença de natureza, dirá Foucault que o poder remete a uma ‘microfísica’”, a “[…] uma dimensão do pensamento irredutível ao saber: ligações móveis e não-localizáveis.” E, contudo, nas palavras de Foucault, “entre técnicas de saber e estratégias de poder, nenhuma exterioridade, ainda que cada uma tenha seu papel específico e que se articulem entre si, a partir de suas diferenças.” Vocês se propõem analisar os poderes e os saberes cujo cruzamento produz o dispositivo da AIDS. Que poderes e que saberes são esses? Quais as diferenças de natureza, as pressuposições recíprocas e as capturas mútuas existentes entre eles? Há algum primado de uns sobre os outros?

C. Entendemos perfeitamente o que diz Deleuze nessa sua gentil citação, especialmente se pensarmos que no caso da Aids foi preciso uma cumplicidade entre o aparato estatal e o saber médico, exatamente essa heterogeneidade e pressuposição mútua de que fala Deleuze, ou ao menos é isso que percebemos. Começamos nossas reflexões a partir do discurso da secretária de saúde estadunidense na época do governo Reagan, Margareth Hecler, que acompanhada do “descobridor” do vírus, Robert Gallo, numa aliança entre saber médico e governamentalidade, estabelece uma estratégia que só muito tempo depois revelaria suas reais dimensões. O que complica essa questão de saber e poder é que, ao menos no caso da Aids, esse saber é intrínseco ao Estado, pois como é sabido, não houve, por exemplo, publicação de artigos comprovando a tese de Gallo antes da conferência em que Hecler, em nome do governo estadunidense (e, portanto, do Estado), dita o que funcionará como mecanismo legitimador de um saber que é médico e, a princípio, nada teria que ver com a secretária de saúde. O que queremos dizer é que a “verdade” foi capturada pelos organismos governamentais, sequestrada das lentes dxs cientistas e pasteurizada num discurso absolutamente poroso. Portanto, é menos uma questão de comprovação e legitimidade do que da violência e arbitrariedade de um “método” não mais empírico, não mais da ordem dos discursos científicos, mas do controle biopolítico.

D. Na Insurreição dos Saberes Sujeitados, percebemos dois grandes movimentos: o primeiro é o reposicionamento político marcado pela mudança do nome que designa o blog e a página que vocês mantêm no Facebook; o segundo é a apreciação das relações de poder-saber da Universidade. Falem-nos desses movimentos.

C. Não que tenhamos esgotado esse assunto, mas falamos bastante disso no último texto. Mas pensando nas pessoas que não o leram e tentando resumir de forma pouco satisfatória (recomendamos que leiam), digamos que essas questões se colocaram como entraves que incomodavam e impediam que avançássemos sem deixar rastros perigosos. No caso da mudança de Dissidentes para Contracondutas foi algo que nos incomodou muito, especialmente após alguns contatos diretos com pessoas que se colocam diretamente como representantes de um movimento dissidente da Aids. Nesse sentido, a necessidade de nos diferenciar foi tanto ética quanto epistemológica, uma vez que não falamos desde esse lugar da dissidência, em grande parte marcados por uma recusa absoluta do poder médico, ado Biopanóptico, recusa em tomar medicamentos e ataques veementes ao corpo médico hegemônico. Não diremos que se resume a isso, mas, antes, esses são traços constituintes de um corpo dissidente que tomou para si a responsabilidade de aprender e lidar com o próprio corpo, que rompeu a colonização do corpo e da subjetividade empreendida por um saber que até então reinou absoluto sobre xs indivíduxs e singularidades. Nesse sentido, não há força mais provocativa e subversiva que a dissidência. Nosso trabalho, no entanto, é diferente, é uma dissidência também, sem dúvida, mas que avança em outras frentes, que utiliza e utilizará o saber produzido pela dissidência (não apenas dxs próprixs sujeitxs localizadxs pelo Biopanóptico, como também do corpo médico dissidente), mas que investiga outras questões de cunho histórico, filosófico e sociológico, especialmente as ligações da Aids com questões de governamentalidade. De forma bastante reduzida, diríamos que a razão foi essa, diferenciar mantendo ao mesmo tempo um vínculo crucial. Quanto à Universidade, enfim, é uma instituição longe da neutralidade (no sentido dos vínculos com políticas governamentais e mesmo de investimentos privados que de uma forma ou de outra funcionam direcionando as pesquisas), seus efeitos na legitimação do saber são insidiosos, para dizer o mínimo, as relações hierárquicas são mecanismos violentos de silenciamento e coerção, seu saber limitado e recortado em compartimentos mofados que não mais consegue fazer uma apreensão imanente de um acontecimento ou fenômeno – no caso da Aids, um acontecimento que está longe de se resumir às lentes dos microscópios da biotecnologia. Por essas razões, sentimos necessidade de minar esse espaço, abrir trincheiras e radicalizar na estratégia de publicação e divulgação. Não temos tempo para perder com Lattes e orientadorxs chatxs, incompetentes e conservadorxs, não temos energia e sangue para doar a essa instituição.


D. É possível falar de um processo de medicalização da vida? Se sim, em que consiste esse processo? Há algum marco inicial para ele? Como ele se conecta ao heterocapitalismo? Quais seus efeitos (disciplinares, regulamentadores, etc.) sobre os corpos e as subjetividades?


C. Até para quem é leigx nesse campo da epistemologia médica é fácil notar que da Coca-Cola e da aspirina ao coquetel, perdemos completamente a relação que no passado parece ter existido com Gaia, com nosso próprio corpo. Podemos ver essa relação ainda muito presente, por exemplo, no que resta das populações indígenas. Ao menor sinal de dor, rapidamente recorremos a um fármaco, sem atentar para como funciona nosso organismo, que tipo de comida é mais saudável e nos faz sentir melhor, etc. Somos condicionadxs a comer o que as grandes corporações querem, em especial as da indústria da carne, que ainda são o carro-chefe. Claro, sabemos que nem todo mundo pode escolher o que comer ou ter acesso a um tipo de conhecimento que permita escolher melhor, saber o que é melhor. Mas é justamente aí onde percebemos a medicalização da vida, porque já parece bem evidente que a indústria médico-farmacêutica depende das doenças que essa dieta empurrada goela abaixo causa nas populações. Portanto, a medicalização está visceralmente conectada à causa, que talvez seja ela própria em doses menores e formulações levemente diferenciadas. A margarina que quase toda a população usa tem apenas uma molécula que a diferencia da estrutura molecular do plástico. Comemos plástico saborizado. Seguramente foi no pós-guerra que houve uma enorme difusão de medicamentos que na verdade surgiram tanto de experimentos quanto de drogas feitas para os soldados. A cocaína em sua forma mais atual é derivada de uma tecnologia militar, pelo menos se estivermos de acordo com o que autorxs como Preciado já disseram. A ritalina parece atuar no cérebro de crianças de forma muito parecida com a cocaína. É importante dizer, com Foucault, que o problema não são as drogas em si, o problema é que não nos chegam drogas boas, de qualidade, que possibilitem a ampliação de potências, etc., como ocorria nas décadas de 50, 60 e 70. Drogas legalizadas, como, por exemplo, as pílulas anticoncepcionais, são mecanismos altamente reguladores e prescritivos do gênero e do comportamento “femininos”, como bem mostrou Preciado. Em relação a Aids, temos um fenômeno que merece ser acompanhado de perto que é chamado PrEP, “Profilaxia Pré-exposição”, indicada em contextos de possível risco. Já está sendo sugerida a utilização compulsória desse medicamento por “homossexuais” – identidade obsoleta que está diretamente relacionada com a Aids, tendo sido assimilada pelo corpo social a partir da emergência da Aids. Acreditamos que isso responde um pouco à última questão, sobre a maneira pela qual uma identidade, uma subjetividade é acionada e mesmo produzida a partir de um medicamento ou enfermidade.


D. Quais as condições de possibilidade ou as bases (epistêmicas, políticas, etc.) para uma teoria descolonial da Aids?


C. Parece estar implícito nessa pergunta que o que fazemos não é algo descolonial, e isso talvez se dê por uma interpretação unilateral do que seja uma teoria descolonial. Como parece impossível entrar em terreno minado sem explodir alguma bomba, permitam-nos simplesmente dizer que estamos ansiosxs para ler algo desse gênero, uma teoria essencialmente des-colonial da Aids, adoraríamos ver algo escrito em tupi-guarani sobre Aids, com certeza teríamos muito a aprender… A partir do momento em que nos vemos de certa forma submetidxs a um conjunto de regras ou diretrizes para que o conteúdo seja digno de ser considerado descolonial, essa designação não mais nos interessa. Claro que estamos apenas chamando atenção para o fato de que a própria “teoria descolonial” está longe de ser algo homogêneo, e mesmo entre alguns nomes mais notórios desse metiê, não há um consenso. Mignolo e Dussel pensam a modernidade como colonialidade em si e propõem não bem uma hermenêutica descolonial, mas, antes, um “giro” descolonial que implicaria um descentramento do ocidente como destino histórico e genealógico. Ora, isso pode estar muito bem em outros campos, e vemos com bons olhos esse giro, que consideramos essencial. Mas, no que diz respeito à Aids e suas implicações, diríamos estar num movimento muito inicial, ao menos no Brasil, para que pudéssemos falar a partir de uma cosmologia indígena, por exemplo, sobre Aids, o que certamente seria bastante interessante. Em todo caso, nos reservamos uma tarefa que não necessariamente exclui conceitos e teorias oriundas do Ocidente, especialmente os elaborados por Foucault, Donna Haraway, Preciado, Butler, etc., que, como sabemos, não são necessariamente descoloniais, nos moldes desse novo cânone. Estamos muito no início de um processo que se arrasta e sofre mutações a cada segundo e especialmente permitimo-nos nos enganar, sim, mas não a esse respeito, não na tentativa de funcionar com base em um conjunto de pressupostos descolonias, se quiserem, que nos permitiria “criar” algo completamente novo, descoladxs da colonialidade do poder, para usar o conceito específico. Tanto estamos a par disso que na postagem anterior, A Insurreição dos Saberes Sujeitados, dedicamos um trecho específico a isso, inclusive por termos interlocutorxs que chamaram atenção a esse respeito. Lá explicamos mais pormenorizadamente as limitações de tal empreendimento, com o qual, desde o início, jamais nos comprometemos. Lógico, é perfeitamente possível pensar a Aids através de outros conceitos, outras bases epistemológicas, podemos pensar a Aids desde já a partir do entendimento de que ela é uma tecnologia imperialista e colonizadora, não sem razão enfatizamos repetidas vezes a “colonização dos sujeitos”, da colonização das subjetividades por meio dessa ferramenta colonial. Para o momento, recusamos a tarefa de “criar” uma teoria, de forma alguma é o que pensamos fazer. Em termos de gestos, em termos de práticas, lutar contra o poder médico é em si um gesto descolonial, usem a teoria que quiserem, recusar esse destino reservado pelo discurso médico é descolonial, produzir um saber-poder, um tipo de conhecimento marginal, com as cicatrizes do bisturi do biopoder, é descolonial. Portanto, resumindo, teríamos que diferenciar a priori uma prática política que inclui necessariamente a produção ou não de uma teoria e algo que seria como certa hermenêutica, uma polícia descolonialista que filtraria o que é colonial ou não de acordo com alguns pressupostos.


D. Em La droga Género, lemos: “El éxito de la tecnociencia contemporánea es transformar nuestra depresión en Prozac, nuestra masculinidad en testosterona, nuestra erección en Viagra, nuestra fertilidad/esterilidad en píldora anticonceptiva, nuestro sida en triterapia. Sin que sea posible saber qué viene antes, si la depresión o el Prozac, si el Viagra o la erección, si la testosterona o la masculinidad, si la píldora o la maternidad, si la triterapia o el sida. Esta producción en auto-feedback es la propia del poder farmacopornográfico en el cual vivimos hoy en día.” O que é esse poder farmacopornográfico e como ele se relaciona com o dispositivo da Aids? Qual o papel da indústria farmacêutica nesse dispositivo?


C. Poder farmacopornográfico é um conceito de Beatriz Preciado bastante apropriado para pensarmos o papel que essas drogas têm como dispositivos reguladores e prescritivos da subjetividade e para problematizarmos a exploração capitalista sobre os corpos, uma mais-valia da carne, da carne humana. Por outro lado, esse conceito já foi criticado pela forma universalizante e totalizante em que é usado. Em todo caso, essa citação nos interessa por um possível desdobramento que nos seria útil, possibilitando evidenciar ou enfatizar o efeito de captura dessas tanatotecnologias chamadas “coquetéis” e o fato de que o próprio coquetel (de acordo com nossas fontes médico-epistêmicas laterais) é o que engendra a doença. Essa é uma das vertentes bastante difundidas entre xs dissidentes da Aids.
Responder de fato a essa pergunta levaria, pelo menos, umas 50 páginas, é um dos tópicos que merecerão uma atenção especial. Contudo, há algumas coisas que podem desde já ser mencionadas e que não constituem mais um segredo. Por exemplo, o fato de o AZT ser uma medicação quimioterápica de forma alguma indicada para atacar um vírus. Sabemos que, na verdade, por ser uma medicação que destrói as células, qualquer pessoa saudável que fizer um tratamento com AZT, consumindo quantidades nocivas todos os dias (sabemos que quimioterapias são feitas em intervalos de tempo consideráveis entre uma sessão e outra), poderá notar uma série de transformações em seu corpo parecidas com “os sintomas da Aids”: perda de peso, diarreias (essa medicação arruína a flora intestinal completamente), destruição do sistema imunológico de modo que doenças oportunistas surgirão, etc. Hoje, na era da “Aids de Controle”, que sucedeu a da “Aids Disciplinar”, a intenção não é mais eliminar uma parte da população para servir, entre outras coisas, de exemplo de como não se comportar, mas, sim, de manter um controle identificatório e médico sobre os corpos e a vida, manter certo número de indivíduos disponíveis como cobaias da tecnociência capitalista e o poder médico como soberano da vida. No futuro, ao tratar desse tópico, esperamos também poder abordar as formas pelas quais se dão os mecanismos de teste e comprovação da “eficácia” de medicamentos, questão por si só bastante perturbadora.


D. Foucault nos adverte: “[…] contra as usurpações da mecânica disciplinar, contra essa ascensão de um poder que é vinculado ao saber científico, nós nos encontramos atualmente numa situação tal que o único recurso existente, aparentemente sólido, é precisamente o recurso ou a volta a um direito organizado em torno da soberania, articulado sobre esse velho princípio”, “[…] a uma certa teoria da soberania, que seria a teoria dos direitos soberanos do indivíduo […]”. Em que sentido os corpos são plataformas políticas? Como podemos resistir à medicalização geral do comportamento, das condutas, dos discursos, dos desejos, etc., sem recairmos, por exemplo, na teoria dos direitos soberanos do indivíduo? Quais as linhas de fuga, particularmente para aquelxs que foram localizadxs pelo Biopanóptico e assinaladxs como aidéticxs?


C. Foucault se referia em grande parte aos valores e princípios que estão vinculados a um ideal burguês, princípios que emergem com a revolução burguesa: toda essa lógica de “Direitos”, “Direitos humanos”, “Todos somos iguais perante a lei”, é uma ideal que vem do Iluminismo. Sabemos como esse mecanismo que prega uma igualdade jurídica e legalista é traiçoeiro. Por exemplo, quando Chomsky, no debate que teve com Foucault, argumenta em favor de uma sociedade anarcosindicalista e prega ideais como Justiça e Bondade, Foucault lhe recorda, não sem certa violência que advém do deslocamento do óbvio, que esses são valores formados dentro e por uma sociedade de classes, são valores burgueses que precisam ser destruídos, ou que, de qualquer maneira, ao reivindicarmos justiça e “direitos”, no mínimo devemos ter consciência das implicações que há nesse exercício de liberdade e justiça. É uma questão que se complica ainda mais quando reivindicamos, por exemplo, a criminalização da homofobia ou mesmo o famoso “matrimônio igualitário”. Não estamos dizendo que as pessoas não devem se casar, mas questionando que valores estamos reproduzindo, que moral está por trás de um casal higienizado e monogâmico que acabou de dar entrada nos papéis para adotar uma criança? Que mecanismos traiçoeiros reativamos ao fazer funcionar mais e melhor o aparato jurídico-estatal, ao pedirmos mais polícia? Talvez seja nesse sentido que devemos exercer uma violência contra o óbvio ou, mais exatamente, contra isso que de tão óbvio não aparece. Não há resposta para isso, porque qualquer um que arriscar prescrever uma fórmula de como agir politicamente se compromete com uma forma de fascismo, malgrado a revolução “comunista-socialista”. Por exemplo, uma situação especialmente vinculada ao poder médico é o controle sobre o gênero, um termo mais específico cunhado pelas pessoas trans é o de Cissexismo, termo de uma importância política cortante. Com ele, se denuncia não apenas o heterossexismo, mas a imposição de um gênero que seja inteligível independente da prática sexual, que corresponda ao que a medicina e a psiquiatria impõem como inteligível. Nos damos conta de que através de um mecanismo médico-legal, um controle vertical e implacável se dá desde o nível mais molecular até o mais molar. Em outras palavras, com a patologização das identidades trans*, se cria um mecanismo médico-jurídico que patologiza de “baixo para cima”, ou seja, com esse mesmo mecanismo pode-se classificar, desde a mais tenra infância, um comportamento que se desvia da norma como patológico. Ainda assim, não podemos dizer que se perde completamente o potencial político ao se aceitar os termos médicos. Essa é uma questão que não concerne a não ser a quem vive na pele esse embate político. Contudo, há que se averiguar como esses controles que se dão na medida que se reivindica um direito, uma benesse do Estado. Se há esse controle e vigilância sobre o gênero, a sexualidade e o corpo, fica bem mais fácil entender de que forma o corpo é político e de que forma o simples fato de resistirmos às normas de gênero e à cisnorma é ato de pura violência contra essa norma, contra o controle sobre a vida. Precisamos resgatar essa ideia de violência, de sermos implacáveis, uma vez que nos chega violentamente esse controle sobre a vida, sobre quem somos, como devemos nos vestir, transar, sonhar. E acreditamos que toda essa fluidez identitária que existe hoje de forma um pouco mais rígida, especialmente na sigla LGBT, em grande medida não existiria sem o advento da Aids. Aliás, aproveitando o ensejo, nosso grande motivador é justamente a identidade atribuída à doença, é o que argumentamos desde o início. A Aids só pôde existir mediante a captura dxs sujeitxs identificadxs como responsáveis, o alarme só foi possível ao se acionar a abjeção dessxs sujeitxs como âncora, como suporte. Se hoje sabemos que não existe tal identidade, ou seja, não existe essx sujeitx homossexual (o que existe são fluxos de desejo, normas respeitadas e recusadas em menor ou maior escala), o que sobra dessa verdade, quem responsabilizaremos? Independentemente dessas especulações, o que mostramos e tentamos mostrar, entre outras coisas, é que essas identidades, essas siglas surgiram com o advento da Aids, são um produto do poder e do controle. Em fins da década de 60 e ao longo da década de 70, esses termos sequer haviam saído ainda dos manuais médicos. Claro que a dicotomia bicha/bofe, etc., existia, mas o que vemos hoje, pessoas que reivindicam sua heterossexualidade, isso jamais teria havido sem o aparecimento de todo esse aparato regulador de subjetividades “adquirido”. Quanto às linhas de fuga, acreditamos iniciar seus traçados, resistindo de formas muitas vezes fracassadas à formatação do pensar, a todas essas cadeias que paralisam e sufocam tudo que pode existir de perigoso no exercício do pensar. Não arriscaríamos dizer o que devem ou não fazer as pessoas, mas gostamos do exemplo dxs dissidentes da Aids que, de certa forma, tomaram de volta para si o saber sobre seus corpos, que investigam, resistem, criam outras estratégias. Gostaríamos de conseguir esse efeito em outras frentes, associando-nos, por exemplo, a outras plataformas de pensamento que sejam sujas e perigosas, infectando o chão esterilizado das publicações “legítimas”.

D. O que podemos esperar do próximo capítulo?

C. Não recordamos em que momento decidimos que chamaríamos de capítulo, pois isso remete sempre a um livro. Obviamente, bem poderia ser isso, mas não temos ainda os meios necessários para oficializar o que sem problemas se transformaria num livro. Enfim, se trata de pesquisas, experimentos, provocações que gostamos de dividir especialmente com gente perigosa. Não nos interessa publicar no Qualis A, não nos interessa ser citadxs em trabalhos exclusivamente universitários. O que nos interessa é infectar com o vírus da rebeldia, vírus incurável e extremamente contagioso. E é essa forma mais eficiente e estratégica de publicação que um meio virtual e fluido permite. Dito isso, podemos afirmar que nos sentimos mais livres para caminhar um pouco mais em direção aos circuitos intocados dos conceitos médicos, do Olimpo da microbiologia, dxs deusxs do saber absoluto sobre a origem e fim da vida. Com o teatro encenado por Margareth Heckler e Robert Gallo, uma nova forma de empiria surgiu (ou, pelo menos, a antiga foi implodida). São questões que nos interessam certamente, pois, para nós, a Aids nunca é um fato isolado, é uma engrenagem que faz funcionar melhor todo o aparato de poder e controle do heterocapitalismo, e por isso a chamamos de Biopanóptico. Enfim, o corpo é um campo de batalhas.