terça-feira, 1 de março de 2011

:: Miles Davis, Get Up With It (1974) ::


                    por Eduardo Giannetti (*)


A vida oprime, o som liberta. Se o homem selvagem é potencialmente um civilizado, o civilizado é potencialmente um selvagem (no melhor e no pior sentido do termo). Get Up With It escancara a jaula em que nos meteu o processo civilizatório e celebra o Caliban terrível e maravilhoso que nos habita em segredo. Dionísio rex. Tomo um trago e me entrego sem reservas ou falso pudor ao banquete orgiástico de faixas como "Calypso Frelimo", "Maysha", "Red China Blues" e "Rated X". Ao ouvi-las, é como se adentrasse numa selva luxuriante de sons lascivos, néctares dissonantes e ritmos dissolutos. Sou um tigre doméstico retornando à floresta.

O canibal-libertino, precariamente adestrado, de volta à ecopsicologia do ambiente ancestral. Miles Davis faz o animal humano pular fora do cárcere de si mesmo e o põe em contato com as forças primordiais do universo. Como um pajé antiiluminista, ele oficia o espocar do caos no cosmos - a irrupção de impulsos longamente negados e suspensos em meio ao minueto tépido do viver civilizado.



Que algum tipo de música seja capaz de corromper a moral ou subverter a ordem, não creio. Mas que o "perigo" tenha assombrado toda uma tradição de filósofos e teólogos, não há como duvidar. Platão, nas Leis, propôs a proibição de certas escalas e ritmos musicais devido a sua perturbadora sensualidade; Agostinho, nas Confissões, discorre sobre os "prazeres do ouvido" e se penitencia por sua irrefreável propensão ao "pecado da lascívia musical"; Calvino alerta os amantes da música contra os perigos do caos, da volúpia e da efeminação que ela suscita; Descartes temia que a música pudesse provocar uma sobreexcitação da imaginação; Adorno viu na ascensão do jazz americano no pós-guerra um sintoma de regressão psíquica e uma "capitulação diante da barbárie". O que me intriga e diverte nisso tudo é imaginar como teriam reagido esses veneráveis sábios, guardiões autoproclamados da razão e da virtude, diante da saturnália afro-dionisíaca da fusion de Miles. They hadn't seen nothing yet!


in: Ilha Deserta. Publifolha. Pg. 69-71.


MILES DAVIS Get Up With It [256kps+encarte]
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* Eduardo Giannetti, um dos pensadores brazucas que o Depredando mais curte e recomenda, é autor de ótimos livros como Vícios privados, benefícios públicos?, Auto-Engano, O Valor do Amanhã e Felicidade. Recentemente, lançou seu primeiro romance, A Ilusão da Alma. Todos publicados pela Companhia das Letras. Corram atrás que vale muito a pena!

Um comentário:

pitera disse...

caralho, miles é todas essas palavras bem colocadas e muito mais...
É magia. uma ponte entre extereorização e interiorização, situada num espaço que transcende as delimitações da lógica e seus pilares colossais....
o som de miles é espiritual, assim como ele proferira: "a música é espírito e o espiritual, e sentimento".
gosto das palavras aqui colocadas, creio que caminharam num sentido mais que interessante, mais do que contar a história de Miles ou dizer algumas coisas sobre sua música, o post mostra de fato o que é ser um artista.
Genial Edu!
to pra escrever uma crítica do On the Corner, em que a trupe faz reverberar um paganismo musicado que é demais! mas ainda não saiu da idéia. No momento estou lendo a autobiografia e desenvolvendo um livro em forma de poesia visual em homenagem ao grande Miles Davis. O post veio a calhar, creio que ajudará muito!
grande abraço!