quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

:: shake you and your fossils out ::


:: ANTI-TERRORISMO LÍRICO ::

- Sobre os escombros do World Trade Center, o Sleater-Kinney ergue um colossal edifício punk celebrando o questionamento e o direito à discórdia nos EUA da paranóia e da patriotada -

“Are we innocent, the paragons of good?
Is our guilt erased by the pain that we've endured?”

"COMBAT ROCK"



One Beat, o magnum opus do Sleater-Kinney e um dos álbuns de rock mais estupendos da década passada, foi composto e gravado pouco depois do atentado às Torres Gêmeas. Tanto que alguns críticos o consideraram como um dos primeiros álbuns que sintetizam e exploram o novo zeitgeist americano, especialmente pelas canções de protesto e comentário social que o disco carrega. Pode ser enquadrado na onda de álbuns pós-11 de Setembro que retrataram os EUA após o baque, como fez Bruce Springsteen com seu The Rising e Tori Amos com seu Scarlet's Walk, ambos de 2002 (e que já foram alvo até de um estudo acadêmico).

Se Spike Lee, em seu A Última Noite, foi o primeiro a registrar no cinema o cenário de Manhattan dominado pela ausência das torres, colorido pelos melancólicos holofotes azuis de uma cidade tomada pelo blues, o Sleater-Kinney foi a primeira banda de rock a cometer uma obra-de-arte contundente sobre a realidade sócio-política peçonhenta da nova década, parida em meio ao sangue e aos escombros.

Este é também o primeiro disco que Corin Tucker gravou depois de ter se tornado mãe - tanto que o tema da maternidade é explorado, com excelentes efeitos, em canções como "Far Away" e "Sympathy". One Beat ganha outra dimensão se for ouvido com isto em mente: é um álbum nascido da alma de uma mamãe-punk que vê seu país entrando numa era de instabilidade política extrema: ela vê a pátria-mãe atacada por fanáticos religiosos, testemunha seus "símbolos de poder" sendo reduzidos a ruínas e a "máquina de guerra" bushiana preparando-se para ir se vingar (e surrupiar um pouquinho de petróleo, é claro!) no Oriente Médio.


Por isso a "esfera pessoal" acaba tão penetrada pela "esfera política". Jenniffer Kelly, da revista Splendid, destaca que este álbum “excelente” é uma lição de que “o pessoal é político" e "o político é pessoal". Pois Corin Tucker (gtr/vox), Carrie Browstein (gtr/vox) e Janet Weiss (bateria), que integram o power-trio, são brilhantes nesta mescla entre o indivual e o coletivo neste punhado inesquecível de canções. One Beat, apesar de não ser um disco conceitual, é perpassado pela angústia e a indignação de uma mãe que mostra-se preocupada com o futuro de sua criança em meio a uma conjuntura global tão desastrosa e cheia de perigos. E Corin Tucker, cantando (lindamente) sobre suas aflições, batalhas e alegrias, conquista neste disco um vocal comovente e catártico, sem perder nem um grão do punch.

Aqui Corin e sua trupe, em seu disco mais ferozmente político (mas que não é por isso menos divertido), aparece vociferando com um ímpeto inaudito: como se ela tomasse maior consciência do mundo (e suas sangrentas intrigas geopolíticas) agora que uma criança sua vive nele. A vontade transformadora e crítica se intensifica, como se ela não quisesse legar aos filhotes um mundo cheio de Georges Bush, Bin Ladens e outros genocidas...

“Now all that's on the surface are bloody arms and oil fields”, cantam as meninas já nas primeiras estrofes do álbum. Esta situação trash – em que sangue e petróleo mesclam-se em sombria poesia, de modo semelhante à trama do Sangue Negro de Paul Thomas Anderson (aliás um dos mais geniais filmes da década) - fixa o clima emocional do disco. Mas o Sleater-Kinney não é da turma da paranóia nem do derrotismo. Pelo contrário!

“Far Away” é a primeira das canções que trata explicitamente do 11 de Setembro. Mas o clima aqui é mais de crônica do que de batalha (como se tornará em “Combat Rock”, canção muito bem batizada). “Far Away” descreve uma mãe cuidando de sua criança no sofá quando recebe um telefonema que informa da catástrofe em Manhattan: “Turn on the TV / Watch the world explode in flames / And don't leave the house!”. Aí está resumida a experiência que tiveram milhões de americanos naquela manhã de terça-feira onde foram despertados do pseudo-ídilio do american-way-of-life pelo alarme aflitivo da CNN Breaking News, que trazia, em clima de pesadelo, a notícia literalmente bombástica: "America Under Attack".

Mesmo aqueles que não tinham parentes dentro do WTC devem ter se perguntado com aflição: estará começando a Terceira Guerra Mundial? O Império Americano começa a ruir? Este é só o começo de um banho de cabeças inocentes que vão rolar para agradar a Alá? Será este o pior momento possível para trazer crianças a este mundo e a este país?

Corin descreve a sensação de ter o coração ferido (“the heart is hit”) pelos acontecimentos numa “cidade distante” mas que sente “tão próxima” (“in a city far away... but it feels so close!”). Como se tivesse composto ainda sob o impacto da tragédia sobre as retinas, descreve a bravura dos homens simples que arregaçaram as mangas para “darem suas vidas” enquanto o presidente se escondia (“the president hides while working men rush in to give ther lives”).


Pode-se até ler aqui uma pontinha de patriotismo que se assemelha àquele vinculado pelos filmes que louvam a audácia e a generosidade dos bombeiros e homens-de-resgate que, naquele dia, meteram-se em meio dos escombros, à caça de sobreviventes, muitas vezes não retornando vivos... Mas One Beat não é nada ingênuo, nem adere à patriotada ideológica, soando muito mais autêntico e questionador do que uma obra como o Torres Gêmeas de Oliver Stone.

“Combat Rock”, cujo título ecoa um álbum tardio do Clash, traz o Sleater pondo o dedo na ferida americana e provando que esta não é uma banda patriótica, que vai cair de joelhos aos pés das pulsões bélicas de George W. Bush e lamentar ingenuamente a pobre vítima americana judiada pelo sadismo grotesco do Islã... Pelo contrário: “Combat Rock” vem para reclamar o direito à discordância e à voz dissidente. “Dissent's not treason, but they talk like it's the same / Those who disagree are afraid to show their face” [Discordância não é traição, mas falam como se fosse o mesmo / Aqueles que discordam têm medo de mostrar a cara] - canta Corin Tucker, de modo truncado, como se suas palavras de discórdia saíssem com dificuldade da garganta, como se sua língua estivesse ameaçada de amputação pelas autoridades (e como se, ainda assim, ela não se acovardasse e não se calasse).

Ela afirma-se, sem medo, cônscia de que discordar não é trair e que ser patriota não é ser uma ovelha que segue cegamente o que manda o pastor -- no caso, o Senhor da Guerra. "If we let them lead us blindly / The past becomes the future once again", já haviam cantado em "One Beat", a primeira faixa, e aqui retorna o mesmo espírito de ceticismo e questionamento: se nós nos deixarmos guiar por estes lunáticos que estão no poder, sem pôr em questão seus atos sangrentos, o passado se tornará o futuro mais uma vez - ou seja, a história regridirá à barbárie.

“Are we innocent, the paragons of good? Is our guilt erased by the pain that we've endured?” [Somos inocentes, paradigmas do bem? Nossa culpa foi apagada pelo sofrimento que suportamos?] Com essas palavras, pronunciadas como se fossem perguntas feitas à sua nação, Corin destroça todo o maniqueísmo hollywoodiano que Bush quis instaurar após o baque, fingindo que os yankees eram pobres inocentes injustamente feridos e que o “terrorismo muçulmano” trazia reunidos em si todo o diabolismo do mal absoluto. “Where is the questioning, where is the protest song? Since when is skepticism un-american?” [Cadê o questionamento, cadê a canção de protesto? Desde quando o ceticismo é anti-americano?]

Mas nem só de terrorismo e de maternidade trata o amplo leque temático de "One Beat". A provocação cultural, típica de uma banda que volta e meia sugeria em suas canções algumas revoluções de costumes, volta aqui e acolá. Como em "Step Aside", irresistível épico punk-pop que não teme ressuscitar o "peace and love" hippie em meio a um naipe de metais tão empolgante que nos arranca calafrios de excitação. Ou como em "Hollywood Ending", em que os holofotes recaem sobre uma personagem (que poderia muito bem ser influenciada pela protagonista de Cidade dos Sonhos, de David Lynch) que tenta viver o grande sonho de Hollywood, mas que é descrita como se atravessasse um pesadelo de artificialidade, desmontado pela cáustica ironia da narradora. Há certos trechos que sugerem até um certa influência da Escola de Frankfurt, como se o Sleater-Kinney tivesse tentado compor um punk que pudesse agradar a Theodor Adorno:

In Hollywood where all the lights are low
And truth's as rare as the winter snow
She wanted a place arid as her soul
Where her only job was never to grow old

When the lights are shining, will you see my skin?
Or just the shell that I'm packaged in?
I've held my tongue and I've hid my sores
If I'm less of myself, will you love me more?
Como se não bastasse, alguns punkões despretensiosos ("Oh!" e "Light Rail Coyete" se destacam) recheiam o álbum mantendo o grau de energia sempre lá no alto. Tudo isso faz com que One Beat seja, em nossa humilde opinião, um dos grandes álbuns do rock americano na década passada. Rob Mitchum, na Pitchfork, destaca a impossibilidade de reduzir um álbum tão “colossal” como este a um “cartão de gênero”, à “jaulinha” estreita de um “estilo” preciso.

“With One Beat, Sleater-Kinney have turned in an album that absolutely, positively obliterates the gender card, an album so colossal that all prefixes to the label 'rock band' must be immediately discarded”.

Sim: One Beat nos dá a impressão de que estamos diante de algo de uma riqueza tamanha que não cabe dentro de rótulo algum. O que não impede que arrisquemos inseri-lo numa certa linhagem histórica. Onde é que se encaixa este demônio-de-disco na árvore genealógica do rock'n'roll? No galho que sai de London Calling, passa por Nevermind e desemboca em Is This It? Como se a semente plantada pelo riot-grlll recebesse um “up” e se tornasse uma árvore mitológica e “épica” como o Led Zeppelin? O tipo de exuberante vegetação que cresceria se o Blondie gravasse um disco inspirado no Fun House, dos Stooges, mas com um espírito combativo à la The Clash? Ou então como se adubássemos com Pearl Jam a música de garotas amantes da new wave e do bubblegum? Todas opções mais ou menos válidas.

As meninas do Sleater, anos atrás, cantavam num memorável refrão: “quero ser seu Joey Ramone!”. E na sua frutífera carreira, encerrada em 2004 com o lançamento do belo canto-de-cisne The Woods, cometeram alguns dos punks mais deliciosos e divertidos dos últimos anos (como a genial “You're No Rock and Roll Fun”). Mas em One Beat que atingiram sua plena maturidade. Mas maturidade não significa caretice: só uma mescla ainda mais poderosa de diversão e política, de rock'n'roll fun e ativismo, que não carece nem de energia bruta (raw power, baby!) nem dum "recheio ideológico" riquíssimo.

Num momento histórico em que os “mocinhos” made in USA tacavam mil bombas no Afeganistão para limpar a Terra dos “inimigos da civilização” (ou seja, os fanáticos de uma outra religião, que não a do capital...), o Sleater-Kinney não se fez nem de crédulo, nem de ingênuo. Fez o que é missão histórica do punk fazer, mas que este anda fazendo tão pouco e tão mal: questionar, incomodar, provocar. Que este álbum não tenha "estourado" como um fenômeno de massas, como tanto merecia, só prova o quanto o mainstream é burro. Mas o fatos destas músicas terem ficado longe de se tornar hits não faz com que a nobreza das intenções seja menos admirável, nem que o poder destas canções seja menos estrondoso.

"One Beat" [2002]
(Para degustar, abra o forno dos comments!)
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6 comentários:

Corsário Cyberpunk disse...

Degustação de 'One Beat' [92 mb, 14faixas, 256 kps], incluindo letras e 2 bonus tracks do single "Off With Your Head"): AQUI.

Já a discografia completa das moças está disponível aqui: Sleater-Kinney For Dummies

Cheers!

Simpatico Estranho disse...

Cara, sinceramente , achei tão comprido o post , que por mais interessante que tenha me parecido inicialmente, desencanei completamente de ler o restante depois de 1/4 lido...

Eduardo Carli disse...

Ah! Cara, ouço esta crítica contra o gigantismo de certos posts meus com uma certa frequência --- e prometo que vou tentar ser mais sintético.

Acabo exagerando na dose quando falo sobre bandas de que gosto muito, achando que para fazer justiça à obra é preciso dissecá-la (e muitas vezes acho até que FALTA coisa: neste texto, por exemplo, achei um crime eu ter falado tão pouco sobre uma música tão foda como "Sympathy").

De qquer modo, não acho nada mal vc ler 1/4 do texto, baixar o disco, e depois retornar para ler o resto. Ou mesmo SABER que tem no Depredando uma análise mais minuciosa sobre o álbum, caso vc queira se aprofundar mais nele. Resenholas breves e sinopses há de monte na rede, de modo que procurar oferecer matérias mais longas e pormenorizadas é uma escolha do Depredando no sentido de ter um diferencial.

De qualquer modo, valeu por deixar esse feedback -- que é sempre bem vindo.

Abraços!

Rodrigo Prado disse...

Puutz. Sleater Kinney é foda demais. Pena que acabou. =/

Anônimo disse...

Olá galera! Gostaria de saber se vcs aceitam parceria. Já add o link de vcs no meu blog. Dá uma passada lá!!! Abraços!!!! http://rockisreligion-666.blogspot.com/

Anônimo disse...

Quem fez essa capa do One Beat, alguém sabe?!