sábado, 29 de outubro de 2011

Georgesattva!


ALL THINGS MUST PASS
George Harrison e a beleza do efêmero

"Christianity will go. It will vanish and shrink. (...) We are more popular than Jesus now; I don't know which will go first -- rock'n'roll or Christianity. Jesus was all right, but his disciples were thick and ordinary. It's them twisting it that ruins it for me."
JOHN LENNON
em entrevista de 1965 à repórter londrina
Maureen Cleave, do Evening Standard, 

Os Beatles, se tornaram-se mais uma lenda do que uma banda, foi por terem sido objeto de tão massiva e intensa devoção coletiva. Conquistaram o amor das massas, despertaram fanatismos extremados, ganharam apóstolos entusiásticos, foram elevados à condição de deuses terrenos... A beatlemania representou quase que a emergência espontânea de um novo culto - e não muito bem-visto por aqueles que insistem em depreciar todos os amores terrestres, tão perdidos que estão em  celestes idolatrias...

Em abril de 1966, a revista TIME publicava a explosiva matéria-de-capa de John T. Elson em que a pergunta "Deus está morto?" era investigada à luz do conflito-de-gerações escancarado pelas pesquisas estatísticas: 90% dos pais e avós norte-americanos ainda julgavam que a religião era de importância central para a vida humana, enquanto somente 40% dos jovens responderam afirmativamente à esta enquete.

O Movimento Hippie e sua nascente ação em prol da emancipação sexual, comportamental e política ascendia como uma força que varria da Cultura a figura daquele Deus pintudo, autoritário e vingativo que age através de dilúvios, pede que pais sacrifiquem seus próprios filhos, dizima com fogo Sodomas e Gomorras...

 Os hippies insurgiam-se, com altas doses de hedonismo pagão e psicodelia mística, contra uma religião ascética e repressora que aparecia então, para multidões de jovens - fossem existencialistas, beatniks, reichianos, budistas... - como caduca e obsoleta.

 Timothy Leary, Krishnamurti, Herman Hesse, Osho, Hendrix: eis os novos gurus de um movimento nascente e efervescente. Não se vêem muitos crucifixos decorando o pescoço daqueles que estiveram em Woodstock ou que atravessaram a América em busões coloridos, celebrando a viagem da vida nas estradas do ácido à maneira dos Merry Pranksters de Ken Kesey...

Após milênios de culto ao sofrimento e ao martírio - Richard Dawkins comenta com sagacidade que idolatrar uma cruz, instrumento de pena capital e tortura, equivale a carregar uma cadeira-elétrica em miniatura pendendo do pescoço... - chegava a hora de outro culto: à paz, ao amor, à fraternidade, à música, à criatividade, à curiosidade, à experimentação, aos deleites terrenos... À liberdade.

"Os Beatles são mais populares entre os jovens que Jesus Cristo", soltou John Lennon um dia, expressando simultaneamente sua audaz profecia (quase nietzschiana) quanto ao futuro do cristianismo: ele iria encolher e se desvanecer, e talvez o rock'n'roll fosse sobreviver à sua morte. Declarações de uma coragem admirável! E que Lennon soltou sem imaginar que, nos EUA, os católicos fundamentalistas e a Ku Klux Klan logo iriam re-acender as fogueiras da Inquisição e condenar os álbuns dos Beatles a virar cinzas. Nada ofende e revolta mais um xiita do que a verdade.


Uma das peculiaridades históricas dos Beatles, me parece, está no fato de que pelo menos dois deles - Lennon e Harrison - tinham visões bem críticas em relação ao monoteísmo que a velha geração continuava a propugnar para a nova. Quiseram ser agentes de uma renovação religiosa, no caso de Harrison, e de um re-despertar do ativismo político e da rebeldia comportamental, no caso de Lennon. Me parece que a decisão de parar de tocar ao vivo, no auge da  Beatlemania, tamanho era o bafáfá e a barulheira gerada por um esquadrão de pré-adolescentes histericamente idolatrantes, tem a ver com a busca de outros caminhos que não aqueles da adoração descerebrada e servil.

O excelente documentário de Martin Scorcese revela, por exemplo, um George Harrison que descobriu muito cedo na vida aquelas supostas maravilhas com que sonha todo garoto que quer ser um rock'n'roll star. Ainda com vinte e poucos anos, George e o resto dos Fab Four já tinham rios de dinheiro, multidões de fãs ensandencidos, carrões luxuosos em mansões aristocráticas, destaque constante na mídia, paparicação sem fim. O que descobrem, no entanto, é uma sensaboria ou um amargor por trás dessa riqueza material e exposição midiática. Possuir uma montanha de ouro e ter aparecido na capa de mais de 100 revistas não impede ninguém de morrer. E desse mundo nada se leva.

Numa espécie de re-encenação sessentista do drama 2.500 anos mais antigo do príncipe Gautama (recomendadíssimo, aliás, o magistral romance Sidarta, do Herman Hesse), que abandona seu palácio de conforto e luxo e começa a vagar pelo mundo em busca da Iluminação, aprendendo com ermitões, maltrapilhos e bodhisattvas, George Harrison também descobre a "insubstancialidade" das posses materiais ("all things must pass...") e procura abrir uma nova senda espiritual para si mesmo - utilizando como aliados, é claro, o Hare Krishna, a meditação, os mantras, a música e o LSD.

Hare Krishna, Hare Krishna, Krishna Krishna, Hare Hare,
Hare Rama, Hare Rama, Rama Rama, Hare Hare...

John Lennon busca outro caminho, decerto, mas que têm suas similaridades com o de George no quesito "busca de um estilo-de-vida alternativo". Em sua carreira-solo, quando ele e Yoko Ono estão profundamente engajados contra a Guerra do Vietnã, na lista negra da CIA e do FBI, conclamando as multidões a cantarem em coro nas praças públicas os "hinos" pacifistas "Give Peace a Chance" e "Power to The People", John Lennon remete frequentemente a um mundo sem religião como irredutivelmente ligado à sua Utopia. "Imagine there's no heaven. It's easy if you try. No hell below us. Above us only sky....".

Atacando ao mesmo tempo o patriotismo imperialista, que tinha atulhado a Europa de cadáveres nas duas Grandes Guerras Mundiais, e a religião imperante na vida destes povos que foram capazes de tão obscenas barbaridades ("Imagine there's no countries. It isn't hard to do. Nothing to kill or die for. And no religion too..."), Lennon sonha com um planeta sem fronteiras onde imperasse a fraternidade universal: "a brotherhood of Man".

"You may say I'm a dreamer. But I'm not the only one."

Em "God", canção de Plastic One Band, escancara sua descrença num grande rol de "recusas" à idolatria. Deus não existe, a não ser como um "conceito através do qual medimos nossa dor". Quando Mark David Chapman descarregou seu .38 pra cima de John Lennon, em 1980, nenhum deus interviu para assisti-lo neste momento de tamanha urgência. Nenhum anjo-da-guarda se materializou e lançou-se às balas para pará-las. Enquanto Lennon sangrava até a morte na calçada, não imagino-o olhando para os céus em sua agonia com um olhar de pedinte e perguntando-se "ó Deus, por que me abandonaste?" Lennon já tinha abandonado a fé há muito tempo, e era plenamente consciente disso. Lúcido, sabia que nada vêm de graça, nem da graça (o céu está vazio: above us only sky), e que tudo de bom neste planeta precisa ser construído, exigido, vencido através do combate. E que no final tudo que nos espera é o túmulo e o amor daqueles que sobrevivem a nós.


George Harrison dá outra resposta a seu "dilema" religioso, à sua necessidade de encontrar uma alternativa ao cristianismo-que-virou-ruína: George volta-se para a Índia, amiga-se com Ravi Shankar (o tocador de cítara e mestre de meditação...), e ensimesma-se numa trip contemplativa. Adere aos mantras do Hare Krishna, à contemplação espantada e risonha das belezas naturais, ao cultivo de seu jardim florido... Hippie-búdico-makulelê em busca de paz-de-espírito.

 "Ele era uma pessoa muito SENSUAL", conta às câmeras de Martin Scorcese sua esposa-por-30-anos, Olivia, explicando na sequência que por "sensualidade" quer dizer: um anseio para que tudo que a língua toque tenha um sabor marcado, um desejo de que as flores tenham aromas e sejam coloridas e vistosas, uma capacidade de "êxtase" diante de experiências aparentemente tão triviais quanto sentir a brisa que nos roça a pele do rosto...

Ao invés da aceitação sem questionamento de dogmas papagueados por figuras de autoridade, George Harrison, seguindo os conselhos tanto dos gurus indianos quanto do LSD, preferiu a experiência direta, ir em busca da verdade por si próprio, com as próprias pernas, sem aceitar conclusões alheias impostas do alto de um altar. Quis uma verdade que suas mãos pudessem tocar, seus olhos pudessem ver, seus poros pudessem sentir. Uma verdade na qual ele podia inclusive intervir - como fazia com estas encantadoras e encantatórias notas que arranca de sua guitarra. "While my guitar gently weeps..." Um artista cheio de doçura e sabedoria que tentava injetar beleza no mundo e nos convidava a fraternalmente contemplá-la. Foi ao deleitoso contato de sua consciência com o cosmos ao seu redor, em meio ao êxtase quimicamente induzido pelo ácido lisérgico ou à beatitude alcançada através da meditação mântrica, que chamou de "My Sweet Lord" e celebrou em infindos aleluias...

O problema é que seu "anseio por espiritualidade" estava sendo constantemente frustrado pelas intromissões às vezes brutais da materialidade. Lá está George Harrison, sonhando em viver com suas cítaras, sonhando em viver tocando ukelele na grama na posição de lótus com os camaradas, tentando levar uma vida inteiramente imersa nos deleites da música, da amizade, da meditação... e para rasgar este quadro idílico vem um assassinato psicopata que o esfaqueia e, na sequência, a galope, o ataque fulminante do câncer que o mataria. A arte de "viver no mundo material" - Living in the Material World, aliás, foi um título muito feliz que Scorcese encontrou para o sua biografia filmada... - equivale a uma gangorra entre deleites e frustrações: o êxtase das trips, sejam musicais ou lisérgicas, caceteado pela chatice aporrinhante do Taxman que vem colher impostos...

George compôs algumas das mais belas canções dos Beatles ("Here Comes The Sun", "While My Guitar Gently Weeps", "Love You To", "Within You Without You"), inserindo na estética beatle os pendores orientalistas e mântricos que ajudaram a banda transcender tão profundamente o entretenimento de massas e consumarem obras-de-arte tão imorredouras quanto Revolver, Sgt. Peppers, Abbey Road... Deu à luz àquela que Frank Sinatra considerava uma das canções de amor mais bonitas já compostas: "Something" (dedicada a Pattie Boyd, sua primeira esposa, que depois casaria com Eric Clapton). Foi um dos primeiros artistas do primeiro escalão a engajar-se politicamente, seja nos protestos contra a matança yankee no Vietnã, seja como fez durante a Guerra Índia-Paquistão, em 1971, organizando o histórico show beneficiente  Concert For Bangladesh.

Seu All Things Must Pass, que considero não somente um dos melhores álbuns-solo já gravados por um ex-Beatle, mas um dos ápices da música popular britânica em todos os tempos, merece um artigo à parte, que tentasse a tarefa impossível de pôr em palavras tanto de inefável que ali se manifesta... Para não me alongar demais nesta "trip", adiciono somente que George Harrison, o mais contemplativo e meditativo dos Beatles, parece-me ser aquele que buscou no Oriente um caminho mais sábio e mais doce em relação às manias ocidentais do individualismo, da ganância, da vaidade, do show-bizz espetaculoso e alienante. Para muita gente que não via mais graça nem verdade em missa, hóstia e papagueações sobre Pecado Original e Culpa, forneceu um outro modelo de espiritualidade, bem mais próxima do hinduísmo, do budismo e do taoísmo do que dos monoteísmos ocidentais. Sua passagem pelo mundo material foi decerto luminosa. E deixou atrás de si muitos humanos profundamente saudosos de seu amor e de sua amizade, multidões de encantados com sua música. Em sua jornada, buscou encontrar o êxtase na contemplação das belezas efêmeras de todas estas coisas que necessariamente vão passar. Sua obra e sua mensagem, mantidas vivas por nós que o admiramos, ainda não passou - e oxalá não passará!


"Isn't it a pity
Isn't it a shame
How we break each other's hearts
And cause each other pain?

How we take each other's love
Without thinking anymore.
Forgetting to give back
Isn't it a pity?

Some things take so long
But how do I explain
When not too many people
Can see we're all the same

And because of all their tears
Their eyes can't hope to see
The beauty that surrounds them...
Isn't it a pity?"

ALL THINGS MUST PASS (1970) . CD 01 . CD 02

Um comentário:

Anônimo disse...

Maravilhoso, obrigado por nos manter informados desses acontecimentos e situações interessantíssimos, ótimo tumblr também ;)