sexta-feira, 8 de agosto de 2008

:: os 10 melhores dos anos 60... #01 ::

[01]

BOB DYLAN
"Highway 61 Revisited"

(1966)


por EDUARDO CARLI DE MORAES
Numa de suas frases mais famosas (e saborosas), Wittgenstein disse: “Revolucionário é quem consegue se auto-revolucionar”. Se o lema do filósofo for verdadeiro, Bob Dylan, entre os compositores de música popular do século 20, certamente merece a medalha incontestável de revolucionário. E foi justamente no meio dos anos 60 que ocorreu o rasgo, a ruptura, a mais radical reinvenção de si mesmo. Com o disco Bringing It All Back Home, em 1965, o jovem cantor-compositor, já cultuadíssimo pela juventude sessentista como um ícone da música de protesto e quase um porta-voz de sua geração, tinha rasgado sem dó a velha imagem que o mundo tinha feito de Bob Dylan e se recriado de um modo quase inédito na história da música popular americana.

Pois seus quatro primeiros álbuns estavam repletos de um folk puríssimo e destilado, fidelíssimo aos cânones do gênero, em que o cantor-compositor parecia ter o olhar mais voltado para o passado do que para a vanguarda. Bob Dylan, na primeira fase de sua carreira, tinha rapidamente se constituído como uma força política de respeito, que metia o dedo nas feridas sociais com suas canções de protesto e que compunha algumas das músicas mais evocativas do estado de espírito da América. Ele, um poeta cultíssimo e arrojado, parecia levar adiante o que artistas americanos como John Steinbeck, Walt Whitman e Woody Guthrie haviam começado.

O mundo começou a prestar atenção na obra do jovem Dylan quando saiu do forno The Freewheelin’, seu segundo álbum - quando o cantor tinha apenas 22 anos de idade. Na capa do álbum, Bob Dylan caminha ao lado de sua namorada pelas ruas do Greenwich Village, em Nova York, para onde havia se mudado no começo de 1961, intentando entrar na cena bôemia e musical efervescente que ali existia. Este é o primeiro dos clássicos da carreira de Dylan, símbolo supremo de sua fase marcada pelas canções de protesto e pela ênfase em temáticas sociais, como fica evidente pelo raivoso manifesto anti-belicista de “Masters of War” ou por seu primeiro hit de vasto sucesso junto ao público, “Blowin’ In The Wind” (depois regravada por Peter, Paul & Mary). Porém não faltam as baladas folk mais românticas, inclusive a lindíssima "Don't Think Twice (It's All Right)".

Lançado em 1963, The Freewheelin' foi o primeiro álbum de Dylan a produzir um impacto no cenário cultural, surgindo num momento histórico em o temor de uma hecatombe nuclear estava no ar dos tempos. Na época de extremo perigo que foi a Crise dos Mísseis de Cuba durante a Guerra Fria, quando a 3a Guerra Mundial parecia prestes a estourar, Dylan compôs músicas clássicas que são um retrato fiel do zeitgeist - como "A Hard Rain's A Gonna Fall".

Dotado de um virtuosismo poético poucas vezes antes vista num compositor, Dylan tornou-se um dos primeiros cantores populares a ter suas letras levadas a sério e consideradas como literatura de primeira qualidade - há até quem o julge um sério candidato a levar um Nobel de Literatura! Seguindo na trilha de cantores dos cantores de folk, blues e country que ele tanto admirava, ao mesmo tempo que se engajava em ebulições políticas do urgente presente, The Freewheelin’ teve um sucesso tão estrondoso e repentino que a partir do ano seguinte, 1964, Dylan estava fazendo 200 shows ao ano.

Os discos seguintes, The Times They Are A-Changin' e Another Side, tinham sedimentado seu status como um compositor que dava sequência ao legado de Woody Guthrie, Leadbelly e Hank Williams, engajado na luta social e defensor dos oprimidos e desapossados. Parecia que Bob Dylan estava destinado a permanecer por toda a sua carreira um solitário trovador, declamando sua poesia militante sobre o acompanhamento simples do violão e da harmônica. E era de se esperar que o jovem e progressivamente respeitado Dylan prosseguisse na mesma toada.

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Imaginem vocês a surpresa que foi para tantos milhares de fãs e críticos ao darem seu primeiro play em Bringing It All Back Home e descobrir, logo na primeira faixa, “Subterranean Homesick Blues”, a explosão das guitarras elétricas saindo dos amplificadores, a letra despirocada e surreal, composta num fluxo de consciência e cantada com uma pressa frenética, tudo com uma eletrizante banda de rock and roll fazendo um barulho da porra lá atrás... Em 2 minutos, o mundo ficava sabendo que tudo havia mudado e que uma revolução brusca havia sido instaurada na carreira de Bob Dylan. Ele havia abraçado o rock and roll, as drogas psicodélicas e a poesia lúdica e a-política. Que heresia!

Foi uma escolha polêmica, mas Bob nunca pôde ser acusado de ser pouco ousado. Muitos fãs que adoravam o Dylan cantor folk, aqueles que o veneravam como um visionário político e que tinham aprendido a aceitar o enfoque pessoal do seu trabalho durante o período de transição, ficaram pasmos com os instrumentos elétricos. Para a maioria dos seguidores das tradicionais músicas folclóricas e de protesto, o rock and roll ainda era considerado uma música simplista, romântica e voltada para adolescentes” – comenta Paul Friedlander em seu Rock and Roll – Uma História Social.

Houve quem se tenha levantado no meio de shows para, em altos brados, xingá-lo de Judas. Ele nem se importou e fez o singelo ato iconoclasta de pedir para sua banda tocar ainda mais alto e com maior selvageria. Seu “play it fucking loud!” para a The Band tornou-se emblemático dessa sua fase de rock star rebelado. Prova de que, no meio dos anos 60, Bob Dylan foi o primeiro punk revoltado e irreverente, o primeiro poeta beat a chefiar uma banda de rock (o próprio Allen Ginsberg caiu de amores...), o primeiro dos grandes iconoclastas da música pop.

Apesar da cisão de opiniões que a novidade causou, criando um grupo de puristas folk que odiou a reviravolta no som e na atitude dylanesca, e um outro grupo que viu com bons olhos o híbrido entre o rock e o folk que ele acabara de inventar, a História acabou por redimir Bob Dylan. Sua “Trilogia Elétrica” dos anos 60 acabou recebendo de quase todos os críticos de música um perfeito aval – Bringing’ It All Back Home, Highway 61 Revisited e Blonde On Blonde viraram três clássicos olhados com um respeito quase unânime por todos os entendidos. Martin Scorsese, recentemente, esmiuçou em mais de 3 horas e meia de documentário essa espetacular história de Dylan nos 60, deixando para a posteridade esse riquíssimo documento que é o No Direction Home.

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Que Bob Dylan é o nome mais importante da música popular mundial nos anos 60 pode soar como uma afirmação exagerada, mas os próprios Beatles e Rolling Stones reconheciam a excelência da obra dylanesca e pareciam olhar para cima quando falavam de Bob - como se contemplassem um modelo, um ícone, um semi-deus. Não é nada absurdo, portanto, colocar nele a coroa de figura mais emblemática daquela década ímpar. E é dele, também, o álbum mais completo, genial e rico daquela era tão pródiga em obras-primas. Mas qual escolher, entre tantos álbuns brilhantes?

Highway 61 Revisited talvez seja a melhor pedida: é o álbum que consolida o som elétrico que havia sido apresentado ao mundo em Bringing It All Back Home, representando o ápice da fase folk-rock de Dylan. O disco já abre com “Like a Rolling Stone”, uma das maiores canções da história do rock e a mais imortal composição de Dylan, reconhecida à primeira audição até pelos leigos que nunca ouviram nenhum de seus discos. O clichê "dispensa apresentações" se aplica perfeitamente a esse hino amargo e vingativo que Dylan cravou na cultura pop como uma faca. Quatro décadas de vida não tiraram um pingo do poder e do frescor dessa obra-prima.

O álbum traz ainda como destaques a poesia extremamente ousada de "Ballad Of A Thin Man", que parecia uma mistura de arte dadaísta e surrealista realizada por um cara que parecia estar tomando drogas em excesso - mas as drogas certas. Na faixa-título, Dylan zoava legal com parábolas bíblicas e fazia o próprio Bom Deus falar como se fosse um gângster, ao se dirigir a Abrãao ("Next time you see me comin' you'd better run!"). Já na longa faixa de despedida, "Desolation Row", uma narrativa repleta de referências e minúcias cria uma das geringonças poéticas mais inebriantes que um compositor já conseguiu cometer.

Highway 61 Revisited é um imenso mosaico de referências, alusões e conexões. Como uma gigantesca árvore, daquelas que parecem imortais, dotada não só tem uma complexíssima gama de raízes no subsolo, mas também de centenas de galhos que se espalham nas alturas. Há por aqui miríades de referências literárias (T.S. Eliot, Ezra Pound, F. Scott Fitzgerald...), cinematográficas (Cecil B. De Mille, Bette Davis...), musicais (Beethoven, Bo Didley...), sem falar em vários personagens famosos do imaginário popular (Cinderela, Jack o Estripador, Casanova, Robin Hood, o Corcunda-de-Notre-Dame de Victor Hugo, a Ofélia de Shakespeare...).
Tudo isso faz esse álbum ser o lugar onde o maior gênio dos anos 60 atinge o ápice. E até hoje ouvimos Highway 61 pasmos de encontrar uma obra-de-arte com uma riqueza musical, lírica, poética e iconoclástica que parece inesgotável.

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