segunda-feira, 23 de julho de 2012

"O poeta desfolha a bandeira e a manhã tropical se inicia..." - Especial Torquato Neto (1944-1972), por Fred Di Giacomo Rocha

Torquato e Gil na Passeata dos Cem Mil, 1968.


“Existirmos, a que será que se destina?”

por Fred DiGiacomo Rocha (@Punk Brega)



Quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião 
eis que esse anjo me disse
apertando minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes

TORQUATO NETO



É legal que a gente encontre fácil no Brasil a edição da Conrad de Reações Psicóticas” de Lester Bangs, famoso crítico musical americano. Seria legal termos essa facilidade com a obra de Torquato Neto (1944-1972), um dos nossos Lester Bangs.

Torquato Neto era um blogueiro dos anos 70. Escrevia a coluna “Geléia Geral” no jornal Última Hora, onde cobria a vida cultural brasileira (especialmente do Rio), com foco na música, no cinema e num pouco de literatura. Do teatro ele não gostava muito, mas anunciava as novidades, assim como uma ou outra notinha sobre artes plásticas.

 É legal acompanhar dia após dia, na sua “Geléia Geral”, a história da música brasileira (e mundial) nos ricos anos 71 e 72. Torquato, saudosista, reclamava que a MPB estava muito parada. Pra quem lê hoje soa como ironia. Eram os anos de Fa-Tal da Gal (Com “Vapor Barato” e “Pérola Negra”), Transa  (disco em inglês cult do Caetano), Construção do Chico Buarque (com a faixa título mais “Cotidiano”, “Deus lhe pague”, “Valsinha” e meia dúzia de clássicos) e o discão do rei Roberto Carlos que trazia “Detalhes”, “Debaixo dos Caracói dos seus cabelos” e “Como dois e dois”.

 Lá fora, John Lennon estava de música nova: "Imagine". E Torquato avisava a galera pra se ligar em uma banda inglesa que estava amadurecendo bem; o Pink Floyd. (Ainda dois anos distante de lançar seu mega-sucesso The Dark Side of the Moon). E os Novos Baianos começavam a se tornar íntimos de João Gilberto (influência que daria origem ao clássico Acabou Chorare).

No cinema, Torquato era do time dos “undigrudis”: Ivan Cardoso, Rogério Sganzerla e, claro, Zé do Caixão. Descia a lenha no cinema novo, de Cacá Diegues e Arnaldo Jabor, que passara a ser patrocinado com grana estatal. Só poupava Glauber das críticas. E se empolgava com a tecnologia das câmeras Super 8. 40 anos antes de Youtube e das filmadoras digitais ele previa: todo mundo vai ser cineasta.


“Os últimos dias de paupéria” (organizado por Wally Salomão e Ana Maria Silva de Araújo Duarte) foi publicado postumamente. Torquato estava preparando um livro ( que devia chamar-se “Do lado de dentro”) quando se suicidou com gás de cozinha no dia do seu aniversário de 28 anos.

Morreu sem publicar nenhum livrinho em vida. Deixou suas crônicas musicais, suas letras (“Geléia Geral” e “Louvação” com Gil, mais uma dezena com Caetano, Jards Macalé, Edu Lobo e a parceria póstuma de “Go Back” com os Titãs), algumas cartas (numa das quais conta como fumou haxixe com JIMI HENDRIX) e poesias – era poeta tropicalista, amigo dos concretistas e admirador da poesia marginal de Chacal, então estreante. 

Também dirigiu e atuou em alguns filmes Super 8. Sua empolgação com música-cinema-literatura não o segurou na vida, deprimido com a falta de liberdade da ditadura e a falta de bom gosto da esquerda. Nasceu no tempo errado. Inspirou Caetano numa de suas melhores letras; “Cajuína”, do álbum Cinema Transcendental (1979). Aquela que começa existencialista assim:

“Existirmos, a que será que se destina?”

Torquato Neto For Dummies: 15 canções que introduzem ao mundo do poeta que "desafinava o coro dos contentes". Segue o setlist! 01) "Marginália II" (Gil); 02) "Domingou" (Os Mutantes & Gil); 03) "Louvação" (Elis Regina e Jair Rodrigues); 04) "Geléia Geral" (in: Tropicália ou Panis et Circenses); 05) "Ai de Mim, Copacabana" (Caetano Veloso); 06) "Go Back" (Titãs e Fito Paez); 07) "Minha Senhora" (Gal Costa); 08) "Lua Nova" (Edu Lobo); 09) Jards Macalé, "Let's Play That"; 10) "Veleiro" (Elis Regina); 11) "Vento de Maio" (Nara Leão); 12) "Mamãe Coragem" (Gal Costa); 13) "Cajuína" (Caê); 14) "Que Loucura" (Sérgio Sampaio); 15) "Três da Madrugada" (Gal).

O Poeta Desfolha a Bandeira... (1985) >>> download

Todo Dia é Dia D - Tributo a Torquato Neto >>> download

domingo, 22 de julho de 2012

"Basta de rosários em nossos ovários!" - O fundamentalismo religioso e sua tirania sobre os corpos




Carla Herrara, 11, garota salvadorenha, segura contra
o peito uma foto de sua mãe, Carmen Climaco,
condenada a 30 anos de prisão por causa
de um aborto que foi julgado como "homicídio"
Todo apoio à mobilização: "Afastem seus rosários de nossos ovários, seus fanáticos!" Um exemplo contemporâneo paradigmático do Cristianismo como doutrina machista e retrógada (além do mito que conta que Eva, nascida de uma costela de Adão, é culpada pelo pecado original...) é a situação hoje em El Salvador, país extremamente religioso.

Em El Salvador, relata Sam Harris, "o aborto é hoje ilegal sob quaisquer circunstâncias. Não há exceções para o estupro ou o incesto. No momento em que uma mulher chega a um hospital com o útero perfurado, indicando que fez um aborto caseiro em algum beco, ela é algemada à cama do hospital e seu corpo é tratado como uma cena de crime. Médicos forenses chegam para examinar seu útero. Há mulheres hoje cumprindo penas de 30 anos de prisão pelo crime de interromper sua gravidez. Imagine tal cenário em um país que também estigmatiza o uso de anticoncepcionais e os vê como um pecado contra Deus." (Carta a Uma Nação Cristã, Cia das Letras, Pg. 46)

É em direção à barbáries semelhantes que iremos caso a laicidade prossiga sendo tão mau-tratada pelos dogmatismos e fanatismos religiosos.
* * * * *

Outro exemplo: 

Segundo Harris, avanços na área da medicina são obstaculizados em sua implementação por ações contrárias de religiosos fundamentalistas que “estão mais preocupados com os embriões humanos do que com a possibilidade de salvar vidas oferecida pela pesquisa com células-tronco” e que “são capazes de pregar contra o uso da camisinha na África subsaariana, enquanto milhões de pessoas morrem de AIDS nessa região a cada ano”. 

Um caso paradigmático: “o papilomavírus humano (HPV, na sigla em inglês) é hoje a doença sexualmente transmissível mais comum nos Estados Unidos. Esse vírus infecta mais da metade da população americana, causando a morte de quase 5 mil mulheres a cada ano, de câncer cervical. O Centro para Controle de Doenças (Center For Disease Control – CDC) estima que mais de 200 mil mulheres morrem anualmente dessa doença no mundo inteiro. 

Hoje temos uma vacina para o HPV que parece ser segura e eficiente. A vacina produziu uma imunidade de 100% nas 6 mil mulheres que a receberam como parte de um teste clínico. Contudo, os conservadores cristãos no governo americano opõem resistência ao programa de vacinação, alegando que o HPV é um impedimento valioso contra o sexo antes do casamento. Esses homens e mulheres piedosos desejam preservar o câncer cervical como incentivo para a abstinência sexual, embora ele tire a vida de milhares de mulheres a cada ano."



Um dos melhores documentários sobre esta problemática toda do fundamentalismo religioso e a cerca que ele pretende impor aos corpos e mentes humanas é Lake of Fire, filme de Tony Kaye (A Outra História Americana) que você pode assistir na íntegra abaixo:


quarta-feira, 18 de julho de 2012

Uma Cachoeira de Corrupção - Clipping de uma Ladroagem sem Fim



O "pacto" firmado foi o seguinte: Cachoeira pagava 30% dos lucros da jogatina ao carequinha Demóstenes; o protegée da Revista Veja, apesar de vestir a máscara de "mosqueteiro da ética", enchia os bolsos com milhões de reais no backstage.
 "Demóstenes tinha direito a 30% da arrecadação geral do esquema de jogo clandestino, calculada em aproximadamente 170 milhões de reais nos últimos seis anos. Na época, o império do bicheiro incluía 8.000 máquinas ilegais de caça-níqueis e 1.500 mil pontos de bingos.

A jogatina foi desbaratada na Operação Monte Carlo e as contas apresentadas pela PF demonstram que a parte do parlamentar deve ter ficado em torno de 50 milhões de reais. O dinheiro, segundo a PF, estava sendo direcionado para a futura candidatura de Demóstenes ao governo de Goiás."
CARTA CAPITAL, Os 30% de Demóstenes (Março de 2012)



"Logo após ser preso, o juiz determinou que Cachoeira fosse transferido para um presídio federal de Mossoró (RN) porque os procuradores temiam que ele continuasse a comandar o esquema criminoso de dentro de uma prisão de Goiás. “Em mais de uma década, Carlinhos Cachoeira dedicou-se a comprar informações e proteção de agentes do estado vendíveis. Em outras palavras, tornou a sociedade e o próprio estado mais vulneráveis ao crime”, escreveu Lima. 

Os números listados na Justiça Federal falam por si só do tamanho da investigação que une os negócios de Cachoeira com a rotina do governo de Goiás. Ao todo foram identificados como integrantes da quadrilha do bicheiro 43 agentes públicos. Desses, seis delegados da Polícia Civil, 30 policiais militares, dois delegados da PF, um administrativo da PF, um policial rodoviário federal, dois agentes da Polícia Civil e dois servidores municipais."- CARTA CAPITAL - O Crime no Poder

"A reportagem de capa de Carta Capital, "O Crime Domina Goiás", assinada pelo jornalista Leandro Fortes, aborda documentos, gravações e perícias da Operação Monte Carlo que indicam uma sinergia total entre o esquema do bicheiro, Demóstenes e o governador de Goiás, Marconi Perillo" ( "O Estranho Sumiço da Carta Capital Das Bancas de Goiânia", Abril de 2012). "Carros sem placa de identificação percorreram as bancas de jornal de Goiânia, capital de Goiás, com homens comprando, de uma só vez, todos os exemplares disponíveis..." (Brasil 247, Abril de 2012).

Um relatório da Polícia Federal, narra a Revista Época, "de 73 páginas e 169 diálogos telefônicos", indica que "são contundentes os indícios de que a Delta deu dinheiro a Perillo. Alguns desses 169 diálogos já vieram a público; a vasta maioria ainda não. Encontram-se nesses trechos inéditos as provas que faltavam para confirmar a simbiose entre os interesses comerciais da Delta em Goiás e os interesses financeiros de Marconi Perillo.


O exame dos diálogos interceptados fez a Polícia Federal, baseada em fortes evidências, conclui que:

1) assim que assumiu o governo de Goiás, no ano passado, Marconi Perillo e a Delta fecharam, diz a PF, um “compromisso”, com a intermediação do bicheiro Carlinhos Cachoeira: para que a Delta recebesse em dia o que o governo de Goiás lhe devia, a construtora teria de pagar Perillo;
2) o primeiro acerto envolveu a casa onde Marconi Perillo morava. Ele queria vender o imóvel e receber uma “diferença” de R$ 500 mil. Houve regateio, mas Cachoeira e a Delta toparam. Pagariam com cheques de laranjas, em três parcelas;
3) Perillo recebeu os cheques de Cachoeira. O dinheiro para os pagamentos – efetuados entre março e maio do ano passado – saía das contas da Delta, era lavado por empresas fantasmas de Cachoeira e, em seguida, repassado a Perillo. 
4) a Delta entregou a um assessor de Marconi Perillo a “diferença” de R$ 500 mil;"

REVISTA ÉPOCA, "Como a Delta pagava Marconi Perillo"


* * * * *
"O líder do PT na Câmara dos Deputados, deputado Jilmar Tatto (SP), defendeu nesta segunda-feira, 16 de Julho, o afastamento do governador de Goiás, Marconi Perillo (PSDB), devido aos indícios de envolvimento de Perillo com o bicheiro Carlinhos Cachoeira. Segundo o deputado, é uma "temeridade" que a população do Estado tenha Perillo como governador.

 "Para o bem do povo de Goiás, ele tem que sair rápido do governo", afirmou Tatto. O petista disse que, se a Assembleia Legislativa de Goiás "tiver o mínimo de decência", deve abrir o processo de impeachment contra o governador. "Perillo mentiu descaradamente sobre a relação dele com Carlos Cachoeira na CPI", disse Tatto.

Demóstenes passou por processo de cassação por quebra de decoro parlamentar no Conselho de Ética da Casa. Em 11 de julho, o plenário do Senado aprovou, por 56 votos a favor, 19 contra e cinco abstenções, a perda de mandato do goiano. Ele foi o segundo senador cassado pelo voto dos colegas na história do Senado." 
Portal Terra


Em resumo: manda aí a real, Laertón! 

"SAI DISGRAMA!"
GOIÂNIA EM MARCHA CONTRA A CORRUPÇÃO
(Documentários independentes sobre o Movimento Fora Marconi)




Uma produção indiegena e tosqueira... do Depredando o Orelhão. Trilha sonora a cargo de Dead Kennedys, Rage Against the Machine e Raul Seixas (1); The Clash, AC/DC, Legião Urbana (2). Inclui fotografias de Jean-Pierre Pierote, Tiago Lemos e muitos outros fotógrafos anônimos. Tudo filmado com câmera tremida nas mãos, seguindo os preceitos estéticos do Dogma 1,99, em meio às marchas contra a corrupção de 2012 em Goiânia. "Sai, disgrama!"

domingo, 15 de julho de 2012

I have been witness to such wonders...



UMA APOLOGIA DOS ESTICADORES DE HORIZONTE
Um ensaio sobre arte, filosofia e psicodelia

“Everything that lives 
Lives not alone nor for itself.”

WILLIAM BLAKE





Manoel de Barros gostava de dizer que a poesia deve servir como um "esticador de horizonte".
William Blake queria que sua arte nos fizesse "romper a concha do prosaico", nos levando a enxergar as coisas com "as portas da percepção purificadas". E toda filosofia, diz-se desde a Grécia mais remota, é "filha do espanto" - e da angústia, eu adicionaria. A arte e a filosofia que mais me agradam agem sobre a consciência de modo a deixá-la boquiaberta. Wonderstruck.

Banalidade que sabem todos que já embarcaram numa viagem nas asas do THC ou do LSD: a consciência é expansível. Os horizontes humanos são esticáveis. É o que ocorre com a leitura de um bom poeta, que nos abra os olhos para aquilo a que antes éramos cegos; a audição de uma boa sinfonia, que nos escancara os ouvidos para aquilo que antes éramos surdos; a contemplação de alguma paisagem ou pessoa ou prodígio impressionante que nos deixe boquiabertos, aumentados em nossa vitalidade e em nossa capacidade de atenção [awareness], vencendo a triste tirania do tédio e da indiferença.

Ouçamos o que diz Nietzsche sobre o assunto: “A consciência é o último estágio, o mais tardio, daquilo que é orgânico; é, por conseguinte, também o que há de menos acabado e de menos forte. [...] Considera-se [erroneamente] a consciência como uma grandeza constante! Nega-se seu crescimento, sua intermitência! [...] Julgando já possuir  o consciente, os homens pouco se esforçam por adquiri-lo – e hoje ainda não é diferente!”  (A Gaia Ciência, #11) É preciso, pois, considerar a Consciência como um campo a ser conquistado, e não algo cuja conquista já se “possua”. A “expansão de consciência” que se pode, com muito custo, conquistar através da leitura de Baudelaire ou da audição de Wagner, é-nos fornecida com uma força e uma vivacidade acachapantes por algumas gotículas de LSD diluídas num cubículo de açúcar.

O que chamamos de "consciência" individual, longe de ser algo de estável, é uma pirralha irrequieta como aquele fluxo, dentro do qual está contida, que Heráclito pensava constituir o próprio rosto mutante do cosmos. Everything flows... Nunca se pisa duas vezes nem no mesmo rio, nem no mesmo segundo. O tempo, irreversível e imparável, flui adiante, arrastando-nos com ele feito folhas caídas na correnteza.

Nós, em nossa sina de transitoriedade, provisoriamente viventes em meio ao arrastão cósmico, acompanhamos o carrossel dos dias às vezes sem nem notarmos esta verdade que nos sussurra o vento ("the answer, my friend, is blowing in the wind..."): estamos - pasmem! - rodopiando feito um pião pelo salão de danças do cosmos, viventes conscientes "in a green ball which floats through the heavens" (pra usar uma expressão de Ralph Waldo Emerson em seu ensaio "Nature").

Sabe aquela história de que só usamos uns 10% do nosso cérebro? Que digam os neurologistas se é fato ou não; só sei que me parece muito plausível. Minha opinião é a de que estamos realmente longe de sabermos utilizar todo o potencial que trazemos, cada um de nós, dentro de nossos crânios. A consciência está longe de estar pronta: consciência é uma "coisa" passível de ser progressivamente ganha. Ora, impactar-nos de modo a que usemos mais os miolos, expandindo nossos horizontes, parece-me uma das funções essenciais da arte e da filosofia (minhas musas...): elas devem servir a re-espantar-nos, enxotando-nos de nosso torpor, despertando-nos das letargias. A missão da canção, do poema e da substância psicodélica: avivar e expandir consciência.

A infância, chamada pelos ingênuos de "idade da inocência", é também a idade - essa parte da história os adultos não gostam muito de mencionar... - em que se instalam em nós os cabrestos. Os freios. Os ditames. Os ideais sublimes. As noções religiosas. As regrinhas de etiqueta. As sugestões dietéticas. Enfim: o cérebro mirim, desde cedo, recebe um influxo cultural tremendo. Uma força externa, social, cultural, molda-o para os mais diversos fins, dos mais bem-intencionados aos mais sórdidos. A criaturinha é domesticada, "moralizada" com punições e recompensas, forçada a seguir certas vias pré-determinadas por gerações já mortas, às vezes incluída sem consulta em uma comunidade religiosa, um time de futebol, um preconceito político.

Logo vai-se a inocência e embarca-se na triste loucura de ser um homem normal: assalariado, cheio de sonhos de consumo, confortavelmente entorpecido, zumbi da rede Globo, resignado aos infortúnios, temente a Deus, esperançoso de bens de outro mundo, fidelíssimo a quase tudo que o funil cultural lhe impingiu. "Quem não se move não sente as correntes que lhe prendem", diz a Rosa Luxemburgo (se não me engano...). Com a consciência parece ser o mesmo: quem não se esforça por expandi-la, quem não tenta romper as couraças e esticar os próprios horizontes, acaba nem sentindo seu cabresto. E aí... é a festa dos tiranos!



LUCY IN THE SKY WITH DIAMONDS

A transformação operada no cérebro pela ação desta poderosa substância é dificilmente descritível em termos puramente “neutros” e “científicos”: o LSD tem o notável poder de despertar em cientistas uns “ímpetos místicos” e “arroubos poéticos” que não se esperaria de homens tão devotados à razão. Albert Hoffman, cientista suíço que sintetizou a substância ("minha criança maravilha que se tornou criança problema..."), quando tenta descrever a experiência subjetiva de tomar LSD e andar de bicicleta pelos prados da Suíça, descreve-a como algo muito semelhante à experiências místicas vividas na infância, o que é referendado por Aldous Huxley, que, depois de experimentar com a mescalina (substância extraída de um cacto mexicano chamado peiote), relata que ficou a observar as coloridas flores que tinha diante de si “como Adão as deve ter visto no Jardim do Éden”.

A realidade que se “desvela” com o LSD é descrita, no filme The Beyond Within (O Além Interior), como “un-censored reality” ou “naked truth” (“realidade sem censura” e “verdade nua”). O LSD convida-nos a uma visão de mundo em que estar diante da “Verdade Nua-e-Crua” não é uma experiência sórdida, deprimente e aterradora (ou não necessariamente: há as bad trips...); mas que pode ser uma experiência de êxtase, de profunda “iluminação”, de beatitude terrena. Uma criança que experimentou o LSD relata inclusive, e com uma sinceridade de que não dá pra duvidar, que a substância possibilita uma “experiência religiosa mais forte do que ler a Bíblia 6 vezes ou se transformar em Papa”.  

Mas não se trata de uma droga que infantilize, no sentido de retornar o indivíduo a um padrão de comportamento mais “instintivo”, “animalesco”, arcaico. O álcool é uma droga muito mais infantilizante, que parece despertar comportamento imaturos e insensatos em bebuns bastante mamados. O LSD, em contraste, é uma droga para “usuários maduros” e desejosos de maturação – e uma substância que têm, conforme muitos relatos, um efeito a um só tempo rejuvenescedor e amadurescente.

É que amadurecer não é necessariamente distanciar-se o máximo possível da criança: talvez uma parte importantíssima do amadurecer consista em reencontrar muito daquela virgindade de olhar e daquele espanto total diante do mundo que tínhamos em nossos primeiros anos. Os olhos arregalados de uma criança diante da Lua ou das estrelas, sem saber entendê-las, nem de onde vieram, nem quem as grudou no firmamento, nem porque emanam luz e porque nunca nos falam - isso não é algo digno de ser morto em nossa vida adulta!

Nietzsche, por exemplo, não se contenta em somente de ser um leão que ruge, muito adulto e viril, contra o camelo que antes carregava pesos no lombro, resignado, retraído e oprimido sob o fardo por outros transmitido, sob o peso das autoridades passadas, dos preconceitos venerados e das crenças sacralizadas.

Zaratustra faz a criança ser o ideal do leão. Não basta rugir, destruir e depois ficar “pastando”, leoninamente, sobre os escombros. Não basta viver só de oposição, de querela, ofendendo o inimigo, polemizando com o rival. Não basta espezinhar o camelo. Não basta só dizer não e não e não. E a criança é o símbolo do ser que diz sim. Com o olho. Com a consciência. Com todo o seu ser. Diante do espetáculo cósmico inteiro, pede bis.

A criança é a criatividade ainda na fonte, é ainda o frescor pleno de potencialidades de uma mente que ainda não foi “estragada” por doutrinas, ortodoxias, catequisações. A criança é um novo começo. Zaratustra, pois, é esse poeta-dançarino, mais sátiro do que santo, que nos convida a voltar a olhar o mundo com os olhos espantados e cheios de curiosidade de uma criança, cujo arregalamento das pupilas nos deixa comovidos perante o espetáculo de um espanto.

Uma criança que se espanta nos redesperta para o mistério. E os que dormem para o mistério estarão de fato com as consciências vivas? vivacidade de consciência fora do mistério? A convicção ortodoxa de “possuir a verdade”, de “já saber tudo”, não é justamente isso que obstaculiza e trava a consciência em seu processo de expansão?

Terence McKenna, me parece, forneceu a melhor das metáforas para explicar esse “potencial dos psicodélicos”. Segundo McKenna, o que essas substâncias como o THC, o LSD e o DMT realizam em nosso cérebro consiste em “limpar” o nosso sistema operacional: para usar a metáfora informática que ele usa, significa desinstalar o Windows, ou seja, o “sistema operacional” mais comum, mais “normal”, mais comercial, por um sistema operacional espetacularmente novo. Neste novo “modo de operação”, os condicionamentos sociais perdem sua força, como se perdessem sua força de adesão ao nosso “eu” (não à toa muitos usuários e psiquiatras descrevem o processo como uma espécie de “dissolução do eu”, o que para alguns é uma “near-death experience”).

O novo olhar que o LSD ou o DMT nos permitem lançar sobre a realidade circundante consiste exatamente numa ressurreição da novidade. Olhamos para as coisas como se elas fossem novas, em contraste com o tédio e a indiferença com que costumamos lidar com tudo aquilo que chamamos de “banal”, “trivial” e cotidiano. Aquilo que só os maiores dos poetas conseguem realizar em nossas consciências quando os lemos, quando sentimos o impacto de suas imagens, estas substâncias realizam, mas com um potencial amplificado. Elas escancaram as portas da percepção dando um chute químico nos ferrolhos e nas couraças e nos escudos. Tudo nos aparece como se fosse recém-nascido, e nós mesmos nascidos agora para a experiência misteriosa de estar vivo. O presente enfim impera, repleto de cor e de luz, de brisa e de encanto.

Em The Beyond Within, uma moça sob efeito de LSD, segurando uma laranja entre suas mãos, a observa com uma atenção extremamente anormal em relação à atenção que o comum dos mortais normalmente dedica a essa “babaquice sem graça” que é uma fruta. A moça, profundamente fascinada pela cor da laranja, relata, em meio a seu encantamento, uma experiência lapidar: “antes eu jamais havia realmente visto a cor; antes eu vivia num mundo monocromático...” 





TERENCE MCKENNA: A CULTURA É NOSSO SISTEMA OPERACIONAL

O LSD e o THC, é plausível supor e lícito especular, talvez conduzam seus usuários a um certo estado de consciência em que torna-se mais difícil para eles a obediência e a subserviência. Suponham que houvesse uma substância que, nos antípodas da Droga da Obediência imaginada por Pedro Bandeira, fosse uma espécie de... agente da desobediência. Terence McKenna, em uma de suas metáforas mais impressionantes e memoráveis, compara a Cultura a um sistema operacional que estaria instalado em nossos cérebros de modo análogo ao Windows ou Linux que roda em nossos PCs. O hardware que é o cérebro humano, portanto, têm a potencialidade para ser utilizado de mil maneiras, mas acaba sendo “formado” e deformado por programações culturais, condicionamentos de behaviour, tempestades de anúncios e propagandas, ciclones e tsunamis de convites a comprar, a um ponto tal que sua mente outrora virgem transformou-se num imenso cabide onde outros depositaram seus mofados casacos, ternos e japonas.

Segundo McKenna, estas substâncias ditas “psicodélicas”, que também são conhecidas hoje por “enteógenos”, aí incluídos o ácido lisérgico, a mescalina, o DMT etc., teriam a capacidade de realizar no “cérebro” uma “limpeza de sistema operacional”, limpando os nossos olhos das cataratas culturais em nós implantadas. Essas drogas teriam um efeito “descondicionador”, por assim dizer: tudo aquilo que autoridades exteriores a nós ordenaram que decorássemos, tudo aquilo que obrigaram-nos a papaguear, todos os evangelhos dogmáticos que nos foram impostos por potências exteriores, muitas vezes tirânicas em seu absolutismo, recebe um golpe profundo destas substâncias alteradoras da percepção. A consciência, se consegue se “expandir”, é justamente por este alargamento dos horizontes humanos que se dá quando quebramos as jaulas de nosso cárcere cultural. 

Conhecer outras culturas é tão instrutivo, tão urgente, tão crucial e necessário! Pois só assim cessamos de absolutizar nossos próprios costumes, cessamos de adorar apenas nosso próprio país, como fizeram, por décadas e séculos, os papagaios de patriotadas... Há na “psicodelia” um elemento de universalismo que, me parece, consiste na sensação que estas drogas são capazes de despertar de que o sujeito é cidadão do mundo, hospedeiro da natureza, habitante da galáxia, parte do cosmos.

”Parece que a hipótese de trabalho mais satisfatória sobre a mente humana tem que seguir, até certo ponto, o modelo bergsoniano, no qual o cérebro, com seu eu normal associado, age como um mecanismo utilitário para limitar e selecionar o enorme mundo de consciência possível e para canalizar experiências em canais biologicamente lucrativos. Doenças, mescalina, choque emocional, experiência estética e iluminação mística, todos têm o poder, cada um de um modo diferente e em graus variáveis, de inibir as funções do eu normal e sua atividade comum do cérebro, permitindo assim que o ‘outro mundo’ invada a consciência. [...] Pode-se dizer que um homem consiste num Velho Mundo de consciência pessoal e, do outro lado de um oceano divisor, numa série de Novos Mundos. Esses Novos Mundos de um subconsciente nunca podem ser colonizados, raramente são perfeitamente explorados, e em muitos casos ainda esperam o descobrimento.” - Aldous Huxley


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terça-feira, 10 de julho de 2012

Che Guevara por Zizek: "a beatificação inofensiva se mistura com a mercantilização obscena"





“Os protestos anticapitalistas dos anos 1960 (de Maio de 68 em Paris ao movimento estudantil da Alemanha e aos hippies dos EUA) remataram a crítica-padrão à exploração socioeconômica com os novos temas da crítica cultural: a alienação da vida cotidiana, a mercantilização do consumo, a inautenticidade da sociedade de massas, em que somos obrigados a “usar máscaras” e a nos submeter à opressão sexual, entre outras.  
Podemos entender agora por que tanta gente insiste que Che Guevara, um dos símbolos de 68, tornou-se “o ícone pós-moderno quintessencial”, que significa ao mesmo tempo tudo e nada. Em outras palavras, significa qualquer coisa que se queira que signifique: rebelião da juventude contra o autoritarismo, solidariedade com os pobres e explorados, santidade, […] trabalho pelo bem de todos.  
Há alguns anos, um alto representante do Vaticano afirmou que os louvores ao Che deveriam ser entendidos como expressão da admiração por um homem que arriscou e deu a vida pelo bem dos outros. Como sempre, a beatificação inofensiva se mistura com seu oposto, a mercantilização obscena. 
Recentemente, uma empresa australiana pôs no mercado o sorvete “Cherry Guevara”, é claro que concentrando a propaganda na “experiência de comer”: “A luta revolucionária das cerejas foi esmagada ao serem encurraladas entre duas camadas de chocolate. Que a memória delas viva em sua boca!” (in: Michael Glover, “The marketing of a marxist”, Times, Londres, 6 jun 2006)
No entanto, há algo de desesperado nessa insistência de que o Che se tornou um logotipo-mercadoria inofensivo - testemunhamos a série recente de publicações que nos advertem de que ele também foi um assassino frio que organizou os expurgos cubanos de 1959 e assim por diante. É significativo que essas advertências tenham surgido exatamente quando novas rebeliões anticapitalistas começam a ocorrer no mundo, tornando o ícone mais uma vez potencialmente perigoso…”
 




SLAVOJ ZIZEK
“Primeiro como Tragédia,
Depois como Farsa”
Editora Boitempo
(Pg. 56, 57)








segunda-feira, 9 de julho de 2012

Fotos clássicas de Bob Gruen, um dos maiores fotógrafos do rock'n'roll (in: "Rockers", Ed. Cosac & Naify)



GALERIA DE IMAGENS ICÔNICAS
DE BOB GRUEN


Cosac & Naify: "Esse nova-iorquino é considerado um dos principais fotógrafos da cultura pop. Iniciou sua carreira em meados dos anos 1960. Na época, era apenas um grande fã de Bob Dylan - e desde então registra a trajetória das maiores bandas e ídolos do rock, do pop e do punk. Foi amigo de John Lennon e é o autor de uma de suas mais célebres imagens: Lennon em frente à Estátua da Liberdade vestido com uma camiseta na qual estava escrito “New York City”. Sua obra imortalizou também Led Zeppelin, The Who, David Bowie, Tina Turner, Elton John, Aerosmith, Kiss e Alice Cooper. Nos anos 1970, virou o fotógrafo dos bastidores de bandas emergentes de punk e new wave, incluindo New York Dolls, Clash, Ramones, Patti Smith Group e Blondie, tendo excursionado com os Sex Pistols pelos EUA. Gruen também chefiou a seção de fotografia da Rock Scene Magazine. O site do fotógrafo na internet é www.bobgruen.com."




















 Na sequência: Led; Lennon & Yoko; Jagger & Richards; McCartney; Ramones; Sex Pistols; Cale, Reed, Smith e Byrne; Dylan; J. Jett; Clash; Townshend; Pistols; Beastie Boys; D. Harrie; Marley; G. Day; Motoqueiros de Moscow; Ryan Adams; Sheryl Crow; Zappa; Blondie. Na nossa página no Facebook tem mais uma pá: cola láTem mais aqui e acolá.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Blueseiras de Blueswomen: Janis Joplin, Bessie Smith, Nina Simone, Big Big Mama Thornton, Susan Tedeschi e muito mais... [Click to play]



"I know why the caged bird sings."
Maya Angelou

"This loneliness... just won't leave me alone."
Portishead

01) Janis Joplin, "Try (Just a Little Bit Harder); 02) Bessie Smith, "After You've Gone"; 03) Big Mama Thornton, "Willie Mae's Trouble"; 04) Nina Simone, "I Wish I Knew How It Felt to be Free"; 05) Susan Tedeschi, "It Hurt So Bad"; 06) Aretha Franklin, "The Thrill is Gone"; 07) Portishead, "Numb"; 08) Eleni Mandell, "Moonglow, Lamp Low"; 09) Lisa Germano, "Red Thread"; 10) Os Mutantes & Rita Lee, "Meu Refrigerador Não Funciona".