sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Poesias Gratuitas! [2a Edição] - WILLIAM BLAKE (1757-1827)


"To see a world in a grain of sand 
And a heaven in a wild flower,
Hold infinity in the palm of your hand
And eternity in an hour."


Auguries of Innocence




Tenho sorvido com fascinação, em grandes goles, a embriagante poesia do William Blake. Fiquei sabendo da existência do “visionário” Blake, como tanta gente, através de alguns marcos da contra-cultura do século XX: primeiro Aldous Huxley, que evocava versos e imagens poéticas de Blake com frequência, em especial quando falava sobre estados alterados de consciência e êxtases induzidos pelo consumo de estupefacientes (como a mescalina, o peiote e o LSD). O autor de A Filosofia Perene e Admirável Mundo Novo ajudou a transformar um dos versos de O Matrimônio do Céu e do Inferno (1790)  em um dos emblemas de todo o agito Psicodélico que atravessará as gerações beatnik, hippie e além: “se as portas da percepção fossem purificadas, tudo apareceria como de fato é: infinito e sagrado”.
Por outro lado, no âmbito da música popular Blake foi reverenciado por muita gente graúda: Patti Smith, uma “Rimbaud de saias poetizando o rock and roll”, compôs uma longa poesia musicada inspirada pelo “Everything that lives is holy” de Blake. E Jim Morrison e seu The Doors trataram de prestar também seus tributos ao poeta-xamã: o nome da banda homenageava o livro The Doors of Perception, impactante e desnorteante panfleto em que Huxley refletia sobre religião, mitologia, filosofia e misticismo tendo como base as experiências extáticas/místicas que viveu, seja através da leitura das escrituras sagradas das mais variadas culturas, seja através do consumo de substâncias químicas “nirvanizantes”.
“O homem esqueceu que Todas as Deidades residem no peito Humano”, escreve William Blake no encerramento de seus Provérbios do Inferno. Este é um dos poucos emblemas escancaradamente ateus na obra de um poeta que, sob a influência marcante de Milton e seu Paraíso Perdido, povoa sua obra com mitos e criaturas fabulosas e concebe o peito humano como um manancial de onde jorram infindos deuses, demônios, édens, infernos e “imagens poéticas” que procuram decifrar os maiores mistérios. O mais interessante nestes Provérbios Infernais é que eles não são, como seu nome sugere, diabólicos, imorais, sádicos ou terríveis; pelo contrário, são repletos de sagacidade, inventividade, ousadia – e até mesmo (por que não?) sabedoria.
Toda uma filosofia-de-vida desenha-se nestes provérbios: uma perspectiva existencial que põe o valor na ação e não na passividade (“He who desires but acts not, breeds pestilence”), que desvaloriza a temperança e a contenção em prol de uma “ética do excesso” (“The road of excess leads to the palace of wisdom”), que enxerga saúde e força no lado do dinamismo e sustenta que males emergem de tudo o que decide se estagnar, se fixar, se solidificar em dogma (“Expect poison from the standing water“…). Uma certa transvaloração de valores, pra falar nos termos da filosofia de Nietzsche, parece estar em jogo no fazer poético Blakeano. Em um dos raros momentos em que ele adquire ares professorais e ousa ser pedagógico e assertivo, William Blake ataca os Erros causados por “todas as Bíblias e códigos sagrados”.

“All Bibles or sacred codes have been the causes of the following Errors.
1. That Man has two real existing principles Viz: a Body & a Soul.
2. That Energy, call’d Evil, is alone from the Body, & that Reason, call’d Good, is alone from the Soul.
3. That God will torment Man in Eternity for following his Energies.
But the following Contraries to these are True
1. Man has no Body distinct from his Soul for that call’d Body is a portion of Soul discern’d by the five Senses, the chief inlets of Soul in this age.
2. Energy is the only life and is from the Body and Reason is the bound or outward circumference of Energy.
3. Energy is Eternal Delight.”

O poeta herege, promulgando audaz seus conceitos radicais, demolidor de todas as dogmáticas que encerram nosso horizonte na estreiteza, decide-se a reduzir a pó os dogmas e crenças errôneos propagados pelas religiões instituídas: a cisão do homem em Corpo e Alma; a demonização do corpóreo e a idealização do “espiritual”; a promessa de sofrimentos infindos àqueles que “obedecem suas energias”. Um forte elemento anti-platônico marca presença nestas páginas repletas do que poderíamos chamar de um “misticismo xamanístico” onde a sensibilidade é revalorizada e reconduzida a um pedestal onde possa ser cultuada. As “portas da percepção”, afinal, são “nesta vida as cinco janelas da alma” (“This life’s five windows of the soul”) e se existe alguma “redenção”, ela não está em qualquer transcendência, mas na redenção da imanência – na “purificação” de nossa percepção sensível, num alargamento de nossa consciência corporal. Enxergo em Blake uma figura que enaltece a abertura e a atentividade [AWARENESS] em relação aos processos colossais que se desenrolam eternidade afora nesta imensa orgia de energias em transa e em conflito que chamamos (ó miséria das palavras!) de Universo, de Tudo ou de Deus.
Em William Blake, a Energia adquire os contornos da divindade. E os seres vivos são como que as miríades de múltiplas encarnações desta Energia Cósmica que Blake diviniza. Uma via muito interessante de interpretação poética seria, por exemplo, a análise de como aparecem os ANIMAIS na poesia de Blake. No lindíssimo poema “Augúrios de Inocência”, Blake escreve algumas das mais comoventes imagens poéticas em prol do que hoje conhecemos como Libertação Animal: um cachorro faminto, um cavalo maltratado, um pássaro com a asa ferida, uma ovelha diante do facão do açougueiro, uma mosca assassinada por um garoto “que há de sentir a inimizade da aranha”, são todos evocados num mosaico em que Blake defende os direitos dos seres mais ínfimos e critica a arrogância dos humanos em subjugar as outras criaturas.



“A dog starved at his master’s gate
Predicts the ruin of the State.
A horse misus’d upon the road
Calls to Heaven for human blood.
Each outcry of the hunted hare
A fibre from the brain does tear.
A skylark wounded in the wing,
A cherubim does cease to sing.
[...] He who shall hurt the little wren
Shall never be by woman loved.”


Manoel de Barros dizia: “fazer o ínfimo ser prezado me apraz”. Em William Blake também existe este esforço de, através da poesia, realizar na consciência dos homens uma transmutação do ínfimo. O poema “A Mosca”, por exemplo, parte do livro Songs of Experience, traz como eu-lírico um homem que acaba de esmagar um inseto que fazia no ar suas brincadeiras de verão. Tomado por remorsos por ter aniquilado o pequeno artrópode, ele chega a uma “identificação mística” com o bichinho que não é sem-relação àquela retratada por Clarice Lispector em seu A Paixão Segundo G.H., uma obra-prima da inventividade humana que consegue extrair ouro poético e filosófico da maior das trivialidades: o encontro doméstico entre uma dona-de-casa e uma barata.


“THE FLY
Little Fly,
Thy summer’s play
My thoughtless hand
Has brush’d away.
Am not I
A fly like thee?
Or art not thou
A man like me?
For I dance,
And drink, and sing,
Till some blind hand
Shall brush my wing…”


Ao invés de misantropia (“os homens não passam de moscas!”), o que se manifesta nestes versos de Blake é a percepção da fragilidade comum de todos os mortais, humanos ou não. Os processos universais que transcendem o indíviduo, as “energias cósmicas” colossais ao seu redor, são “mãos cegas” que arrancam as asas de moscas e homens. Mas Blake jamais escreve tentando deprimir seu leitor ou fazê-lo “caluniar a existência”, para usar a expressão de Nietzsche. Há em Blake um convite à reconciliação do homem, filho pródigo, com a natureza da qual as religiões instituídas e as moralidades anti-naturais o afastaram. Vai nesse sentido um dos poemas de Blake que mais me comove, que mais “inesgotável” parece em seu jorrar de exuberâncias e belezas, “The Book of Thel“, publicado em meio aos agitos revolucionários de 1789.
Thel é uma moça virgem, inocente, inexperiente e “cheia de temores que a impedem de se engajar na vida”, como diz Woodcock. William Blake cria então uma série de diálogos entre Thel e alguns elementos da natureza: um lírio, uma nuvem, um verme, que “a encorajam a abandonar seu idílio pastoral nos vales de Har e se comprometer a viver”. Encarnação da fragilidade,da ansiedade e da melancolia temerosa, Thel, diz Woodcock, “é incapaz de enxergar que a vida individual é parte de um processo mais amplo”. Neste poema, Blake atinge uma eloquência ímpar na arte de despertar nossas consciências para estes “processos mais amplos” que estão a se desenrolar ainda que vivamos, cegos e tolos, na gaiola estreita de nosso egoísmo e de nossa percepção auto-centrada.
O poema se inicia com Thel entristecida, derramando na beira do rio uma “delicada lamentação que cai como o sereno da manhã”: “Why fade these children of the spring, born but to smile and fall?”, pergunta-se a moça para as flores do campo, destinadas a efemeridade comum a todas as crianças da primavera. Na sequência, conversa com a Nuvem que passa nos céus, também ela cumprindo sua sina de transitoriedade: “O little Cloud, the Virgin said, I charge thee tell to me: Why thou complainest not, when in one hour thou fade away?…” Diante das efemeridades naturais, diante de tudo que nasce e morre sem soltar um pio de reclamação ou um suspiro de angústia, Thel sente-se singularmente aflita ao se descobrir a única que não aprendeu a arte de passar sem reclamar: “I pass away yet I complain…
A melancólica Thel chega ao ponto, enfim, de proclamar sua própria nulidade, de reconhecer sua insignificância cósmica, murmurando queixosa: “Without a use this shining woman lived / Or did she only live to be at death the food of worms?” Thel atinge a noite total no seio da primavera e conclui: não sirvo para nada além de ser, por fim, comida para os vermes. Mas Blake não é poeta que abandone suas personagens e seus leitores nesta desoladora escuridão. Blake então convoca a Nuvem a responder aos queixumes de Thel e constrói assim alguns de seus versos mais comoventes:
“Everything that lives 
Lives not alone nor for itself.”
Como já dizia outro grande poeta, John Donne: “Nenhum homem é uma ilha”. O que Blake destaca é que as fronteiras entre o humano e o animal, e mesmo entre o orgânico e o inorgânico, são construtos culturais que nos cegam para a realidade da inter-conexão entre os vivos. Nenhum vivo é uma ilha: todos dependem uns dos outros e do ambiente no qual se encontram. Não há um só segundo de nossas vidas que não seja composto por dinamismo e interatividade: o dinamismo da respiração, da circulação, da alimentação, da decomposição, da recombinação – em suma, este constante intercâmbio de matéria que constitui, ao que parece, o passatempo predileto da eternidade.
Sem dúvida, esta é uma visão de mundo em harmonia com a noção, tão cara aos ambientalistas, de eco-sistema. Em Ponto de Mutação, o filme baseado na obra de Fritjof Capra, esta perspectiva é exposta com blakeana beleza. No poema de Blake, Thel acaba vivendo uma certa “epifania” em que uma nova concepção de Deus emerge:  um Deus que não tem nenhuma “predileção” específica pelos humanos, um Deus que ama (até mesmo) os vermes e pune o pé malévolo que esmaga de propósito um ser indefeso, um Deus daquele tipo cultuado por místicos e panteístas e que se manifesta nas miríades de criaturas que, animadas de energias móveis, interagem, compartilham e transmutam-se umas nas outras numa eterna orgia cósmica. O efeito poético é avassalador: toda concepção de mundo solipsista, autista, isolacionista, que concebe um ser separado do Todo, independente do Resto, é explodida. E o que emerge é uma mística da interconexão que poderia ter como emblema este verso profundo e misterioso:

“We live not for ourselves.” 

“Ponto de Mutação” (Mindwalk) – baseado no livro de Fritjof Capra
Assista na íntegra. Recomendadíssimo!!!

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quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Galeano, Chomsky e Amos Óz, dentre outros, refletem sobre os conflitos na Palestina... [Bonus Track: Documentários essenciais sobre o tema]


“Quem deu a Israel o direito de negar todos os direitos?”
por EDUARDO GALEANO



O exército israelense, o mais moderno e sofisticado do mundo, sabe a quem mata. Não mata por engano. Mata por horror. As vítimas civis são chamadas de “danos colaterais”, segundo o dicionário de outras guerras imperiais. Em Gaza, de cada dez “danos colaterais”, três são crianças


Para justificar-se, o terrorismo de estado fabrica terroristas: semeia ódio e colhe pretextos. Tudo indica que esta carnificina de Gaza, que segundo seus autores quer acabar com os terroristas, acabará por multiplicá-los.

Desde 1948, os palestinos vivem condenados à humilhação perpétua. Não podem nem respirar sem permissão. Perderam sua pátria, suas terras, sua água, sua liberdade, seu tudo. Nem sequer têm direito a eleger seus governantes. Quando votam em quem não devem votar são castigados. Gaza está sendo castigada. Converteu-se em uma armadilha sem saída, desde que o Hamas ganhou limpamente as eleições em 2006. Algo parecido havia ocorrido em 1932, quando o Partido Comunista triunfou nas eleições de El Salvador. Banhados em sangue, os salvadorenhos expiaram sua má conduta e, desde então, viveram submetidos a ditaduras militares. A democracia é um luxo que nem todos merecem.

São filhos da impotência os foguetes caseiros que os militantes do Hamas, encurralados em Gaza, disparam com desajeitada pontaria sobre as terras que foram palestinas e que a ocupação israelense usurpou. E o desespero, à margem da loucura suicida, é a mãe das bravatas que negam o direito à existência de Israel, gritos sem nenhuma eficácia, enquanto a muito eficaz guerra de extermínio está negando, há muitos anos, o direito à existência da Palestina.

Já resta pouca Palestina. Passo a passo, Israel está apagando-a do mapa. Os colonos invadem, e atrás deles os soldados vão corrigindo a fronteira. As balas sacralizam a pilhagem, em legítima defesa.

Não há guerra agressiva que não diga ser guerra defensiva. Hitler invadiu a Polônia para evitar que a Polônia invadisse a Alemanha. Bush invadiu o Iraque para evitar que o Iraque invadisse o mundo. Em cada uma de suas guerras defensivas, Israel devorou outro pedaço da Palestina, e os almoços seguem. O apetite devorador se justifica pelos títulos de propriedade que a Bíblia outorgou, pelos dois mil anos de perseguição que o povo judeu sofreu, e pelo pânico que geram os palestinos à espreita.

Israel é o país que jamais cumpre as recomendações nem as resoluções das Nações Unidas, que nunca acata as sentenças dos tribunais internacionais, que burla as leis internacionais, e é também o único país que legalizou a tortura de prisioneiros.

Quem lhe deu o direito de negar todos os direitos? De onde vem a impunidade com que Israel está executando a matança de Gaza? O governo espanhol não conseguiu bombardear impunemente ao País Basco para acabar com o ETA, nem o governo britânico pôde arrasar a Irlanda para liquidar o IRA. Por acaso a tragédia do Holocausto implica uma apólice de eterna impunidade? Ou essa luz verde provém da potência manda chuva que tem em Israel o mais incondicional de seus vassalos?

O exército israelense, o mais moderno e sofisticado mundo, sabe a quem mata. Não mata por engano. Mata por horror. As vítimas civis são chamadas de “danos colaterais”, segundo o dicionário de outras guerras imperiais. Em Gaza, de cada dez “danos colaterais”, três são crianças. E somam aos milhares os mutilados, vítimas da tecnologia do esquartejamento humano, que a indústria militar está ensaiando com êxito nesta operação de limpeza étnica.

E como sempre, sempre o mesmo: em Gaza, cem a um. Para cada cem palestinos mortos, um israelense. Gente perigosa, adverte outro bombardeio, a cargo dos meios massivos de manipulação, que nos convidam a crer que uma vida israelense vale tanto quanto cem vidas palestinas. E esses meios também nos convidam a acreditar que são humanitárias as duzentas bombas atômicas de Israel, e que uma potência nuclear chamada Irã foi a que aniquilou Hiroshima e Nagasaki.

A chamada “comunidade internacional”, existe? É algo mais que um clube de mercadores, banqueiros e guerreiros? É algo mais que o nome artístico que os Estados Unidos adotam quando fazem teatro?

Diante da tragédia de Gaza, a hipocrisia mundial se ilumina uma vez mais. Como sempre, a indiferença, os discursos vazios, as declarações ocas, as declamações altissonantes, as posturas ambíguas, rendem tributo à sagrada impunidade.

Diante da tragédia de Gaza, os países árabes lavam as mãos. Como sempre. E como sempre, os países europeus esfregam as mãos. A velha Europa, tão capaz de beleza e de perversidade, derrama alguma outra lágrima, enquanto secretamente celebra esta jogada de mestre. Porque a caçada de judeus foi sempre um costume europeu, mas há meio século essa dívida histórica está sendo cobrada dos palestinos, que também são semitas e que nunca foram, nem são, antisemitas. Eles estão pagando, com sangue constante e sonoro, uma conta alheia.


* * * * *
* Noam Chomsky - "Impressões de Uma Visita a Gaza" [Leia na Íntegra: http://migre.me/c7b12]

Chomsky explica "como é tentar sobreviver na maior prisão a céu aberto do mundo": "Na Faixa de Gaza, a área de maior densidade populacional do planeta, um milhão e meio de pessoas estão constantemente sujeitas a eventuais e amiúde ferozes e arbitrárias punições, cujo propósito não é senão humilhar e rebaixar a população palestina e ulteriormente garantir tanto o esmagamento das esperanças de um futuro decente quanto a nulidade do vasto apoio internacional para um acordo diplomático que sancione o direito a essas esperanças. (...) A proeminente analista Yoram Peri notou com repugnância que a tarefa do exército não é a de defender o Estado, mas de “acabar com os direitos de pessoas inocentes somente porque são araboushim (uma ofensa racial) vivendo numa terra que Deus nos prometeu”.

A punição aos moradores de Gaza tornou-se ainda mais severa em janeiro de 2006, quando eles cometeram um crime hediondo: votaram no “lado errado” na primeira eleição do mundo árabe, elegendo o Hamas. Demonstrando seu amor pela democracia, os EUA e Israel, apoiados pela tímida União Europeia, impuseram um sítio brutal e ataques militares ostensivos logo de cara. Os norte-americanos também imediatamente recorreram ao procedimento operacional padrão para momentos em que populações desobedientes elegem o governo errado: prepararam um golpe militar para restabelecer a ordem..."

* Amos Óz - Atigo no New York Times (2010) [http://migre.me/c7bmS]: "Para um homem com um martelo grande, diz o provérbio, todos os problemas parecem um prego..."

* "Guerra ou Massacre: o que está acontecendo na faixa de Gaza?" [http://migre.me/c7ajV]

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ALGUNS DOCUMENTÁRIOS ESSENCIAIS:

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Poesias Gratuitas! [1a edição]


"Quando vier a Primavera"
Alberto Caeiro (F. Pessoa)

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.

Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.

Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.


HINO À VIDA (1881)
de Lou-Andreas Salomé

Tão certo quanto o amigo ama o amigo,
Também te amo, vida-enigma
Mesmo que em ti tenha exultado ou chorado,
mesmo que me tenhas dado prazer ou dor.

Eu te amo junto com teus pesares,
E mesmo que me devas destruir,
Desprender-me-ei de teus braços
Como o amigo se desprende do peito amigo.

Com toda força te abraço!
Deixa tuas chamas me inflamarem,
Deixa-me ainda no ardor da luta
Sondar mais fundo teu enigma.

Ser! Pensar milênios!
Fecha-me em teus braços:
Se já não tens felicidade a me dar
Muito bem: dai-me teu tormento.

* * * * *
Um poema que "impressionou profundamente" a Nietzsche, que compôs uma música para acompanhar o "Hino à Vida" de Lou, "a única composição musical que ele decide imprimir e publicar", como aponta Maria Cristina Franco Ferraz em seu excelente estudo "O Bufão dos Deuses" [e-book na íntegra]

Confira a composição baseada no poema acima...
De Friedrich Nietzsche (1844-1900) – “Hino à Vida”
["Hymnus an das Leben"]
Partitura da música completa: http://bit.ly/Ra8SR0
Assista/escute com orquestra: 




“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto
A via láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: “Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?”

E eu vos direi: “Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas.”

* * * * *

"Como a floresta secular, sombria,
Virgem do passo humano e do machado,
Onde apenas, horrendo, ecoa o brado
Do tigre, e cuja agreste ramaria

Não atravessa nunca a luz do dia,
Assim também, da luz do amor privado,
Tinhas o coração ermo e fechado,
Como a floresta secular, sombria...

Hoje, entre os ramos, a canção sonora
Soltam festivamente os passarinhos.
Tinge o cimo das árvores a aurora...

Palpitam flores, estremecem ninhos...
E o sol do amor, que não entrava outrora,
Entra dourando a areia dos caminhos."


OLAVO BILAC
"A Via Láctea"

Pintura: Van Gogh

* * * * *
P.S.: Apreciadores da poesia, fica a dica: estamos tentando agregar poemas bacanas em um único espaço lá na nossa página do Facebook, onde mais de 30 poesias já estão disponíveis para serem sorvidas e compartilhadas à vontade. Incluindo... Goethe, Baudelaire, Maiakóvski, Cecília MeirelesHilda Hilst,  dentre muitos outros. Fiquem antenados que a idéia é ir adicionando material novo gradualmente conforme progredirem os bons encontros e os encantamentos...

"A Sociologia é um Esporte de Combate" [Documentário completo sobre Pierre Bourdieu]

"A SOCIOLOGIA É UM ESPORTE DE COMBATE!"


“Weber está de acordo com Marx ao afirmar que a religião cumpre uma função de conservação da ordem social contribuindo para a “legitimação” do poder dos “dominantes” e para a “domesticação dos dominados”. (...) A religião favorece o desenvolvimento de um corpo de especialistas incumbidos da gestão dos bens de salvação. (...) Extremamente raro nas sociedades primitivas, o desenvolvimento de um verdadeiro monoteísmo está ligado à aparição de um corpo de sacerdotes organizado.
Isto significa que o monoteísmo, totalmente ignorado pelas sociedades cuja economia se baseia na coleta, na pesca e/ou na caça, somente se expande nas classes dominantes das sociedades fundadas em uma agricultura já desenvolvida e uma divisão em classes nas quais os progressos da divisão do trabalho se fazem acompanhar por uma divisão correlata, a divisão do trabalho de dominação e, em particular, da divisão do trabalho religioso. 
O corpo de sacerdotes deriva o princípio de sua legitimidade de uma teologia erigida em dogma, cuja validade e perpetuação ele garante. (...) Afirma-se a tendência dos especialistas de fecharem-se na referência autárquica ao saber religioso acumulado... O resultado da monopolização da gestão dos bens de salvação por um corpo de especialistas religiosos, socialmente reconhecidos como os detentores exclusivos desta competência específica, acompanha a desapropriação objetiva daqueles que dele são excluídos e que se transformam por esta razão em "leigos" ou "profanos", destituídos do capital religioso (enquanto trabalho simbólico acumulado).  
Como bem observa Weber, tendo em vista que a visão do mundo proposta pelas grandes religiões universais é o produto de grupos bem definidos (teólogos puritanos, sábios confucionistas, brâmanes hindus, levitas judeus etc.) e até de indivíduos (como os profetas) que falam em nome de grupos determinados, a análise da estrutura interna da mensagem religiosa não pode ignorar impunemente as funções sociologicamente construídas que ela cumpre: primeiro, em favor dos grupos que a produzem e, em seguida, em favor dos grupos que a consomem. 
Um sistema de práticas e crenças está fadado a ser considerado como magia ou como feitiçaria, no sentido de religião inferior, todas as vezes que ocupar uma posição dominada na estrutura das relações de força simbólica. (...) No âmbito de uma mesma formação social, a oposição entre a religião e a magia, entre o sagrado e o profano, dissimula a oposição entre diferenças de competência religiosa que estão ligadas à estrutura de distribuição do capital cultural.  
Pode-se verificar esse fato na relação entre o confucionismo e a religiosidade das classes populares chinesas, relegadas à ordem da magia pelo desprezo e pela suspeita dos letrados que elaboram o ritual refinado da religião do estado e que impõem a dominação e a legitimidade de suas doutrinas e de suas teorias sociais, apesar de algumas vitórias locais e provisórias dos sacerdotes taoístas e budistas cujas doutrinas e práticas estão mais próximas dos interesses das massas. 
Toda prática ou crença dominada está fadada a aparecer como profanadora na medida em que, por sua própria existência e na ausência de qualquer intenção de profanação, constitui uma contestação objetiva do monopólio da gestão do sagrado e, portanto, da legitimidade dos detentores desse monopólio... ” 


PIERRE BOURDIEU
in: "A Economia das Trocas Simbólicas"
Ed. Perspectiva
Pgs 32-45

Saiba mais sobre Bourdieu,
um dos grandes sociólogos do século XX, neste
documentário (completo e legendado em português):

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

"Rock'n'roll Ain't Noise Pollution..." (Coletânea - Volume #01)



Que o rock and roll não é mera poluição sonora o AC/DC já cantava mais de 30 anos atrás, no encerramento do crássico Back in Black. Com desenfreado otimismo, os alucinados australianos profetizavam até que ele, o ruidoso tinhoso, "nunca vai morrer" ("it's never gonna die!"). Pra que vocês julguem por si próprios sobre a vitalidade atual do dito cujo, esta série de coletâneas que aqui se inicia trará só material roqueiro do novo século. A idéia é agregar na mesma "caixinha de música digital" alguns dos mais poderosos, furibundos, expressivos, catárticos e memoráveis róques destes jovens anos 2000. Viajem  neste Volume 01 em sons provindos principalmente do Canadá (Black Mountain, Japandroids, Arcade Fire...) e dos EUA (Yeah Yeah Yeahs, Blitzen Trapper, Juliette and the Licks, Them Crooked Vultures...), mas com um pit-stop bizarro no Japão (!) do Boris.  Sem mais papo furado, subam o som pro talo e... boa viagem!
TABLE OF CONTENTS >>>
01) THEM CROOKED VULTURES, "New Fang"
02) JAPANDROIDS, "The Nights of Wine and Roses"
03) BEN HARPER, "Black Rain"
04) BLACK MOUNTAIN, "Roller Coaster"
05) JULIETTE & THE LICKS, "Hot Kiss"
06) PEARL JAM, "State of Love and Trust"
07) ARCADE FIRE, "Keep the Car Running"
08) BLITZEN TRAPPER, "Gold for Bread"
09) BORIS, "Dyna-Soar"
10) YEAH YEAH YEAHS, "Date With the Night"

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Da Série: Senta Que Lá Vem História... "Colombo não descobriu a América: ele a invadiu!"


A AMÉRICA NÃO FOI DESCOBERTA:
ELA FOI INVADIDA! 

Reflexões sobre “A Conquista da América – A questão do Outro”,
de Tzvetan Todorov  (Ed. Martins Fontes, 4ªed, 2011)

"A divisão internacional do trabalho significa que alguns países se especializam em ganhar e outros em perder. Nossa comarca no mundo, que hoje chamamos América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se aventuraram pelos mares e lhe cravaram os dentes na garganta. (...) Nossa riqueza sempre gerou nossa pobreza por nutrir a prosperidade alheia: os impérios e seus beleguins nativos. Na alquimia colonial e neocolonial o ouro se transfigura em sucata, os alimentos em veneno. Potosí, Zacatecas e Ouro Preto caíram de ponta-cabeça da grimpa de esplendores dos metais preciosos no fundo buraco dos socavões vazios, e a ruína foi o destino do pampa chileno do salitre e da floresta amazônica da borracha; o nordeste açucareiro do Brasil, as matas argentinas de quebrachos ou certos povoados petrolíferos do lago de Maracaibo têm dolorosas razões para acreditar na mortalidade das fortunas que a natureza dá e o imperialismo toma..." --- EDUARDO GALEANOAs Veias Abertas da América Latina


Dia desses topei com uma camiseta esperta: nela figurava um navio europeu singrando os mares e aportando na América, imagem acompanhada pela frase: "a imigração ilegal começou em 1492". 

De fato, uma das primeiras coisas que colocamos sob suspeita quando começamos a estudar mais a fundo a tal da “Descoberta da América” é a própria denominação do evento histórico, esta curiosa expressão que batiza a ocorrência colossal: “descoberta”. Será este o termo mais adequado? Melhor que “invasão estrangeira seguida por limpeza étnica”? Melhor que "empreendimento imperialista acompanhado por variados etnocídios e genocídios"? Será que o verbo “descobrir” não serve para mascarar e esconder todos os horrores colossais da guerra de conquista que empreenderam as potências européias contra o Novo Mundo? Não é este um eufemismo criado pelo invasor, destinado a ser engolido sem reclamo pelos cordeirinhos submissos dos colonizados?

Será que dizer que nos “descobriram” não intenta fazer com que nos esqueçamos de toda a pilhagem e todo o roubo de recursos naturais que ocorreu por aqui? Todo o ouro surrupiado de Vila Rica (hoje Ouro Preto), toda a prata saqueada de Potosí, querem que o esqueçamos e o apaguemos de nossos livros de História? Querem eles esconder debaixo de tapetes sírios todo o sangue índigena que correu sob a espada e as armas estrangeiras? 

Aonde, dentro da palavra “descoberta”, estão todas as vidas escravizadas, subjugadas, maltratatas, coisificadas e massacradas pelos (tsk tsk tsk…) “descobridores”? Para ficar só no exemplo do México: 24 milhões de índios mexicanos assassinados, em cerca de um século, merecem algo melhor do que o edulcorado conto-de-fadas da “Descoberta (idílica e doce) do Eldorado”!

Bastante asséptica e higiênica, a palavra “descoberta” parece remeter a um processo limpo de desvelamento, um mero retirar das cobertas, algo que traz à luz o que antes estava na escuridão. “Descoberta”, termo de tonalidade positiva, parece referir-se mais a um ato de encontrar um território novo – que só é “novo”, é claro, quando enxergado a partir da perspectiva daqueles que antes o desconheciam, os europeus que aqui aportaram lá por 1.500.

Só que as terras “descobertas” não eram desabitadas, e nelas floresciam diversas sociedades que ali haviam vivido por milênios: como lembra Pierre Clastres, “a América do Sul é um continente cuja imensa superfície, com raríssimas exceções (como o deserto do Atacama no extremo norte do Chile), era inteiramente ocupada pelos homens no momento do descobrimento da América no final do século XV – ocupação, aliás, bastante antiga, de cerca de 30 MILÊNIOS, como o atestam os estudos da pré-história” (CLASTRES, Arqueologia da Violência, p. 91). De modo que a chegada dos europeus, longe de poder ser descrita como a chegada a uma terra virgem, representou muito mais uma invasão estrangeira em um continente previamente habitado, por milênios, por milhões de seres humanos. A palavra “descoberta”, predileta dos colonizadores e seus escritores da História Oficial, não serviria pois para esconder as chagas que se escondem por trás do impacto catastrófico da conquista européia do Novo Mundo no que isso acarretou de genocídio e etnocídio, escravização e racismo, micróbios e epidemias, dentre outros inúmeros males?

Ora, ora! A atitude recorrente do conquistador europeu é se auto-proclamar “superior”, “civilizado”, devoto do Deus verdadeiro; ao Outro, este desconhecido, este estranho, este diferente, lança-se o rótulo fácil de inferior, bárbaro, idólatra de falsos deuses. O nome disso em ética é “arrogância” ou “presunção”; em psicologia, “narcisismo”; em política, “tirania”. Quão facilmente se tornam tirânicos os que se sentem arrogantemente “superiores” ao resto, com direito a subjugar e manter o outro sob seu jugo! Ou pior: os que se julgam “eleitos”, os “altamente meritórios”, os “filhos prediletos do Todo-Poderoso”, estes se permitem os massacres mais inacreditavelmente sangrentos – e tudo por “amor a Deus” e fidelidade à “boa Causa” (Stirner explica!).


“A guerra contra os infiéis é justificada, pois abre caminho para a difusão da religião cristã e facilita o trabalho dos missionários”, diz o espanhol Sepúlveda, assecla da Coroa Real desejoso de submeter o novo continente ao Cristianismo, ainda que ele tivesse que ser imposto pela força bruta, pelos assassinatos em massa, pelo genocídio indígena. É que, conta-nos também este pio cristão a serviço do Rei, “é legítimo banir o crime abominável que consiste em comer carne humana” (TODOROV: 2011, pg. 224).

Ora, os espanhóis, brancos e cristãos, que atravessaram o Atlântico à serviço de Vossa Majestade o Rei e Vossa Santidade O Papa, eles que faziam pose de “hiper-civilizados” e desdenhavam os costumes bárbaros dos astecas, conseguiram, em meio século, somente no México, exterminar mais de 20 milhões de seres humanos. A “descoberta” da América, como Todorov nos relata, ou seja, a partir de uma perspectiva bem mais interessante e verídica do que aquela da “história oficial”, foi uma catástrofe inimaginavelmente trágica para as populações que aqui viviam. O genocídio perpetrado na América pelos cristãos europeus, embevecidos de imperialismo evangelizador, superam em número o nosso atual “paradigma do Mal Absoluto”: o holocausto hitlerista de mais de 6 milhões de judeus. A sinistra maquinaria de massacre sistemático que os europeus impuseram aos humanos americanos, segundo Todorov, resume-se assim:

“Em 1500, a população do globo era de aproximadamente 400 milhões, dos quais 80 milhões habitam as Américas. Em meados do século XVI, desses 80 milhões… restam 10 milhões. Se nos restringirmos somente ao México: às vésperas da conquista, sua população é de aproximadamente 25 milhões; em 1600, é de 1 milhão.” (pg. 191)

Nós, nascidos em épocas já distanciadas por séculos da invasão das metrópoles absolutistas européias, esquecemos muito facilmente de fatos como este: entre o Popol Vuh, livro religioso dos astecas, e a Bíblia, livro-base da civilização dos conquistadores, a relação é de um livro autóctone e de um livro estrangeiro. A Bíblia é uma coisa importada, aporte dos invasores, trazida junto às caravelas dos invasores, massacradores de índios e escravizadores de negros. Na Inglaterra, outro “centro imperial da Europa”, destinado a grandes “aventuras” colonizadoras na “Nova Inglaterra”, mitos também circulavam sobre a vinda da Nova Jerusalém, sobre a responsabilidade dos cristãos de erguê-la, uma vez que a Jerusalém “oficial” estava em mãos muçulmanas. A América era vista como terra “virgem” onde edificar, erigir, monumental e sublime, um esplendoroso Reino servindo ao Império da Cristandade!

“I will not cease from mental fight
nor shall my sword sleep in my hand
Till we have built Jerusalem
In england’s green and pleasant land.”

WILLIAM BLAKE

O fato de muitos desses assassinos, genocidas e escravocratas se declararem homens de Deus, homens de fé, servidores da santa causa do cristianismo, deveria nos bastar para começar – como recomendava Wittgeinstein – a colocar os pontos-de-interrogação bem lá no fundo, ou seja, abismando-nos na indagação perigosa e herética: o “amor a Deus”, se pôde gerar tamanha hecatombe e destruição, deve ser inocentado? A História não seria menos convulsionada por violências infindas e cabeças rolando caso a arrogância dos eleitos fosse sobrepujada pela abertura-de-espírito daquele que enxerga a Diferença e a Alteridade como oportunidade de diálogo, de aprendizado, de intercâmbio, de mescla? Em outros termos: se a História nos mostra tanto sangue derramado por puritanos e puristas, crentes em sua própria superioridade moral e religiosa, não seria mais sadio, mais sábio e mais feliz aderirmos a uma concepção das relações humanas que privilegiasse mais a mescla fecunda de diversos vetores e o júbilo de ser impuro?…


Gravura por José Guadalupe Posada








II. COLOMBO: QUIXOTE DA VIDA REAL… 

A Conquista da América é filha de “grandes esperanças de lucro” (Cristóvão Colombo, Diário, 1492, p. 11): “Os mandatários da expedição, os Reis de Espanha, não se teriam envolvido na empresa se não fosse a promessa de lucro… o ouro era uma espécie de chamariz para que os reis aceitassem financiá-la” (TODOROV: p. 11). Mas há mais: a alucinada religiosidade militante de Colombo, para quem “a expansão do cristianismo é bem mais importante que o ouro”. Numa carta ao Papa, ele diz que sua próxima viagem será “para a glória da Santíssima Trindade e da santa religião cristã”; “espero em Nosso Senhor poder propagar seu santo nome e seu Evangelho no Universo” (p. 13).

Nosso aventureiro idealista, Cristóvão Colombo, era animado por ideais bem mais sublimes do que somente roubar todo o ouro e as pedras preciosas que encontrasse pelo caminho, enfiando todas as riquezas em caravelas destinadas à Espanha. Colombo, conforme a brilhante descrição de Todorov, também tinha a “ambição espiritual”, que ele mesmo deveria considerar pia e sublime, de ali espalhar a “doutrina sagrada” do Deus único, representado pelo Papa romano, ungidor dos Reis de Castela, e que exige (Deus furibundo e exclusivista…) a submissão da Terra toda à Cruz. Como sintetiza Todorov,

“A vitória universal do cristianismo é o que anima Colombo, homem profundamente piedoso (nunca viaja aos domingos), que justamente por isso considera-se eleito, encarregado de uma missão divina, e que vê por toda parte a intervenção divina, seja no movimento das ondas ou no naufrágio de seu barco. (…) A necessidade de dinheiro e o desejo de impor o verdadeiro Deus não se excluem. Os dois estão até unidos por uma relação de subordinação: um é meio, e o outro é fim. (…) Qual um Dom Quixote atrasado de vários séculos em relação a seu tempo, Colombo queria partir em cruzada e liberar Jerusalém! (…) Espera encontrar ouro ‘em quantidades suficientes para que os Reis possam, em menos de 3 anos, preparar e empreender a conquista da Terra Santa.” (p. 13-14)

O ideal de Colombo, aquilo que o enchia de “orgulho” por uma ação grandiosa e pia, era estar expandindo a penetração global dos santos Evangelhos, “curando” os indígenas de suas cegueiras de pagãos, iniciando-os na verdadeira doutrina e na Verdadeira Verdade: descem das caravelas os espanhóis, a serviço dos reis de ultra-mar, com o espírito das Cruzadas medievais ainda pulsando em seus peitos fanáticos.

Colombo, delirante, quase tão quixotesco quanto o Dom Quixote de Cervantes, sai atrás das Índias, pensa estar se dirigindo à Ásia, e acaba trombando… com aquela que um dia, em homenagem ao espanhol Vespúcio, será chamada de América. É isso que eu chamo de errar feio o caminho, meu chapa. Colombo se assemelha a alguém que, chegando em Salvador, perguntasse a um transeunte: “É aqui a Índia?” Quixotesco! Colombo se assemelha a alguém que aporta nas praias da Jamaica, do Haiti e de Cuba convictíssimo (e redondamente enganado…) de estar chegando lá na Conchinchina...

Mas o mais chocante de tudo é que este Dom Quixote da vida real pôde ser um dos iniciadores de um dos maiores genocídios da História. E Tudo fez em seu arrebatado afã de agradar aos reis de Castela e de contribuir para a expansão da Cristandade: “Pela vontade divina, pus deste modo um outro mundo sob a autoridade do Rei e da Rainha e assim a Espanha, que diziam ser tão pobre, tornou-se o mais rico dos reinos”, escreve Colombo em novembro de 1500 (pg. 62).



III. EM BUSCA DE OURO E CONVERSÕES… 

Mas o que interessa mais aos conquistadores espanhóis, se são as riquezas ou as “almas a ganhar para a Cristo”, é difícil decidir: eles parecem igualmente entusiasmados por roubar o ouro e espalhar a cruz. E uma das coisas mais curiosas e bizarras da personalidade de Colombo, como diz Todorov, é que ele “age como se entre as duas ações se estabelecesse um certo equilíbrio: os espanhóis dão a religião e tomam o ouro” (pg. 62).

Todo o ouro de Ouro Preto, toda a prata de Potosí, foram-se nas caravelas; e o que ficou da chegada “gloriosa” do Cristianismo a estas terras foi o massacre indígena, a tentativa de escravização, o início do tráfico de escravos africanos... O flagelo se abate sobre dois continentes pela ação destes presunçosos europeus que se auto-proclamam "Os Eleitos". Se Colombo pôde se tornar um ardoroso defensor da ideologia escravagista, convicto de que os índios eram seres inferiores em relação aos cristãos europeus, foi também por este egocentrismo de que o livro de Todorov traz tantos exemplos: Colombo é a re-encarnação de Narciso, deslumbrado diante do espelho, embevecido com a ideia da glória, deleitando-se com os aplausos que imaginava que lhe votavam, nos palácios, o Rei, a Rainha e o Papa, os cardeais e os nobres…

Distingue os índios do continente entre os “cristãos em potencial” e os “incuravelmente pagãos”; a estes últimos, a solução é exterminar. Para os primeiros, bem… ser cristão em potencial, vocês sabem, não é o mesmo que ser cristão por inteiro… Logo (raciocínio de toupeira!) “aqueles que ainda não são cristãos só podem ser escravos” (pg. 64).

Cristóvão Colombo têm, pois, a “brilhante” ideia que haverá de revolucionar toda a História posterior da América, da Europa, da África – enfim, do mundo. “Imagina então que os navios que transportam rebanhos de animais de carga no sentido Europa-América sejam carregados de escravos no caminho de volta, para evitar que retornem vazios e enquanto não se acha ouro em quantidade suficiente…” (idem).

Como excelente linguista que é, Todorov tem um olhar todo especial para os fenômenos da comunicação humana. Percebe no interagir entre os homens os defeitos de comunicação, as incapacidades de ouvir e entender o outro, a dificuldade tremenda de transpor os abismos da alteridade.

Ele aplica estas reflexões sobre a questão do Outro aos eventos históricos com rara lucidez, realizando uma vasta pesquisa sobre o material histórico-documental que evidencia os massacres, as chacinas, os banhos-de-sangue que impuseram os Cortezes e os Cabrais e os Colombos que invadiram o continente em fins do século XV.

Lembra-nos, por exemplo, da origem da palavra “bárbaro” – uma curiosidade etimológica fascinante: os gregos taxavam de “bárbaros” todos os povos cujo idioma não compreendiam e que por isso pareciam só falar um incompreensível blá-blá-blá. A impossibilidade de conhecer realmente a identidade do outro, devido em parte ao abismo de idiomas radicalmente diferentes, é uma das “condições necessárias” para que a guerra e o massacre ocorressem.

Uma das sensações que fica da leitura desta obra inquietante de Todorov é um certo ceticismo obstinado em relação aos que se presumem “eleitos”. Batalho para tentar ler nas entrelinhas, em tudo aquilo que Todorov não disse, em toda a imensidão que está escrita em elipse nesta obra fervilhante, tentando perceber que tipo de relação humana, de intercâmbio com o outro, seria digno da Humanidade. Todorov diz, por exemplo, esta verdade simples e tão veraz: “Um diálogo não é uma somatória de dois monólogos”. E Chacrinha tinha razão: “quem não comunica se estrumbica”. 

Pior: quem se comunica mal, pode acabar… na guerra. Conflitos de força bruta podem ocorrer quando a comunicação é falha, ou quando um dos lados recusa-se a ouvir o outro, ou quando um arroga-se possuidor da verdade ou “naturalmente superior” e conclui: “nada tenho o que conversar com essa racinha, com esses selvagens, com essa ralé, com essa gentinha de estirpe degradada…”

A arrogância, a prepotência, a soberba, o narcisismo, o egocentrismo: razões para a guerra, que é fracasso do diálogo e da partilha. As tragédias de Ésquilo, por exemplo, a todo momento mostram as catástrofes que decorrem do excesso de orgulho demonstrado pelos homens. A ponto dos gregos terem em seu panteão politeísta uma certa deusa Nêmesis, responsável por punir as elefantíases do orgulho humano.

E a religião, em tudo isso? A religião, como discurso fabricado por homens a fim de que dissessem a si mesmos o que mais queriam que fosse verdade, tende quase sempre a fazer agrados ao ego, inflar a vaidade humana, contar contos-de-fada reconfortantes e otimistas, fabricar genealogias gloriosas onde estaríamos inseridos em posições de prestígio: você está entre as criaturas “eleitas” pelo Criador, você é o máximo dos máximos, você é em essência imortal e inapodrecível, você tem lugar cativo garantido no Paraíso Celestial, você é o supra-sumo da Criação, a razão pela qual tudo existe; o Sol foi ali posto para te iluminar e aquecer; os mares e oceanos, para que você neles nadasse ou os singrasse nos navios; as árvores, para que você as derrubasse e fizesse casas, móveis e papéis; e os animais, para serem comida…

Quanto mais o homem se ilude com doutrinas auto-reconfortantes, agradáveis ao seu narcisismo, mais fechado se torna ao verdadeiro encontro com o Outro. “A ideia que os europeus fazem dos índios, segundo a qual estes lhes são inferiores, ou seja, estão a meio caminho entre os homens e os animais, é a premissa essencial, sem a qual a destruição não poderia ter ocorrido” (p. 211). Quanto mais, em sua vaidade, um povo pretende ser o eleito, o maioral, o predileto dos deuses, mais arreganha os dentes e empunha a espada para exterminar aqueles que julga os não-eleitos, os idólatras, os que adoram falsos deuses, os que não crêem nas “verdades sagradas” (“Quem pode negar que usar pólvora contra os pagãos é oferecer incenso a Nosso Senhor?”, escreve Oviedo [p. 219], “fonte rica de julgamentos xenófobos e racistas”).

Quanto mais uma civilização é dominada por este narcisismo dos povos a que os antropólogos dão o nome de “etnocentrismo”, mais choques e guerras ocorrem: é sempre antipático para um povo ouvir seu vizinho dizer “eu sou o tal, Deus me escolheu, somos os donos da verdade, temos o direito de imperar sobre o mundo e espalhar a nossa doutrina…”.

As “raízes psicológicas” que estariam por trás da imensa tragédia histórica seriam, portanto, esta neurose comuníssima que consiste em, no encontro entre culturas e pessoas, julgar sempre que a diferença e a alteridade implica uma relação de superioridade/inferioridade. Os europeus, egocêntricos e narcísicos, justificaram todos os horrores que perpetraram com o argumento de que eles, europeus, eram superiores, já que andavam vestidos, conheciam a Bíblia e tinham fé no únido deus verdadeiro. Julgaram que os índios pelados eram quase animais, certamente desprovidos de alma, idolatradores de falsas divindades, cuja escravização e extermínio agradava ao Papai-do-Céu - que certamente tem imensa predileção por branquelos ambiciosos famintos por ouro...

O saldo negativo, não só em milhões de vidas perdidas, mas em culturas inteiras dizimadas, chega a ser inimaginável de tão imenso: “os espanhóis queimarão os livros dos mexicanos para apagar a religião deles; destruirão os monumentos, para fazer desaparecer qualquer lembrança de uma grandeza antiga….” (p. 83) (…) “Quando Cortez deve dar sua opinião acerca da escravização dos índios, encara o problema de um único ponto de vista: o da rentabilidade do negócio…” (p. 189). 

Quanto às doenças trazidas pelos europeus, e que foram uma das causas maiores de mortes massivas de índios, os espanhóis assim pensavam: “por que combater uma doença, se ela foi enviada por Deus para punir os descrentes?” 

Todorov, pensador audaz que não se intimida diante do horror (seu livro sobre os campos de concentração, Em Face do Extremo, é outro excelente estudo sobre as "raízes do Mal"…), escreveu em A Conquista da América uma obra acabrunhante, assustadora, que revela os sórdidos submundos da História Real deste que foi, talvez, o maior genocídio de que se tem notícia no caminhar de nossa espécie:

“Lembraremos que em 1500 a população do globo deve ser da ordem de 400 milhões, dos quais 80 milhões habitam as Américas. (…) Se a palavra genocídio foi alguma vez aplicada com precisão a um caso, então é esse. É um recorde, parece-me, não somente em termos relativos (uma destruição da ordem de 90% ou mais), mas também absolutos, já que estamos falando de uma diminuição da população [nativa] estimada em 70 milhões de seres humanos. Nenhum dos grandes massacres do século XX pode comparar-se a esta hecatombe.” (p. 192)

Destes horrores repelentes e chocantes, fica somente a aspiração por um outro mundo possível (“um pouco de possível, ou então sufoco!”) onde haja convivência e coexistência da diferença, pleno respeito à alteridade, diálogo fecundo e aberto com o Outro, sem que jamais o fato da diversidade degenere em presunções de superioridade/inferioridade. Em prol, enfim, do júbilo de ser impuro, da alegria expansiva do diálogo mutuamente iluminador, de um cosmopolitismo que nos enxergue não como cindidos em etnias e nacionalidades, mas como jornadeadores cósmicos, passageiros do mesmo barco, conviventes no mesmo planeta rodopiante que viaja pela galáxia…