A CONTROVÉRSIA STRAVINSKY
por Eduardo Carli
(esse baita tijolão aê é um trampo da disciplina "Filosofia da Arte",
que segui lá na FFLCH-USP com o Prof. Vladimir Safatle.
A quem suportar possa! :D)
PRELÚDIO: ENTRE VAIAS E “BRAVOS!”
Paris, 1913. Na prèmiere de A Sagração da Primavera, no teatro dos Campos Elíseos, a balbúrdia toma conta da platéia durante o balé do compositor russo Igor Stravinsky (1882-1971), no qual são retratados sangrentos ritos da Rússia pagã acompanhados por danças rituais. De imediato, ficou evidente que este não era um prato de fácil digestão para aqueles que o provavam pela primeira vez: a peça despertou reações extremadas de incompreensão, revolta, estranheza, espanto, desnorteio, escândalo.
“Stravinsky conta que ao iniciar a execução de sua obra, logo nos primeiros compassos, a Sagração foi recebida com risadas e gracejos e em seguida explodiu o pandemônio que as crônicas da época registram. A descrição do impacto sobre os espectadores é clara: podia-se ler nos rostos expressões de desagrado, surpresa e terror. Quem mantinha o olhar fixo não estava dizendo senão que estava em choque. Vários músicos e orquestradores, entre eles Saint-Saëns, saíram horrorizados da sala logo na primeira parte da obra, protestando contra a maneira inusitada com que se tratava os instrumentos. A recepção variou do riso, inicialmente nervoso, para o protesto agressivo.”[1]
O próprio Stravinsky, rememorando este primeiro concerto, regido pelo maestro Pierre Monteux, comenta:
O próprio Stravinsky, rememorando este primeiro concerto, regido pelo maestro Pierre Monteux, comenta:
“Eu estava na quarta ou quinta fila do lado direito, e a imagem das costas de Monteux é hoje mais vívida em minha lembrança do que o que se realizava no palco. Ele estava ali, de pé, aparentemente impenetrável, e tão destituído de nervos como um crocodilo. Ainda me parece quase incrível que tenha podido levar a orquestra até o fim. Deixei meu lugar quando os ruídos mais fortes principiaram – os mais leves se ouviam desde o princípio – e fui para os bastidores.”[2]
No ano anterior, 1912, outra obra havia causado polêmica em sua estréia parisiense. Prélude À L'Après Midi D'un Faune, de Debussy (1862-1918), inspirada num poema de Mallarmé e interpretada pelo dançarino russo Nijinsky, tornou-se mais uma peça que, apesar de destinada a ser consagrada pela posteridade, despertou reações bem adversas quando foi primeiro apresentada ao público. No jornal Le Figaro, por exemplo, o jornalista Gaston Calmette criticou as obscenidades de teor erótico-masturbatório na expressão corporal de Nijinsky --- um exemplo dentre tantos das querelas envolvendo esta obra que, como a de Stravinsky, nasceu envolta em controvérsia.
Tais fatos são um bom índice de quão impactantes (e por vezes mau-compreendidas) foram as primeiras “engatinhadas” destas obras que depois seriam reconhecidas como luminares da música no século 20. O próprio Stravinsky, rememorando esta época de transformações e subversões, frisa:
“Não esqueçamos que Petruchka, A Sagração da Primavera e O Rouxinol surgiram em um momento caracterizado por profundas mudanças, que subverteram muitas coisas e perturbaram muitos espíritos. (...) As transformações de que falo produziram uma revisão geral tanto dos valores básicos como dos elementos primordiais da música.” [3]
Uma das reviravoltas mais fundamentais que ocorrem na estética musical ao alvorecer do século, como destaca Stravinsky, foi a transformação na visão que se tinha do sistema diatônico tradicional, que passa a ser visto como um sistema que “não possui valor absoluto”:
“Já não estamos no contexto da tonalidade clássica, no sentido escolástico da palavra. Não fomos nós que criamos esse estado de coisas, e não é nossa culpa se somos confrontados com uma nova lógica da música que pareceria impensável para os mestres do passado. E essa nova lógica abriu os nossos olhos para riquezas de cuja existência nem mesmo suspeitávamos.” [4]
ADORNO E A CRÍTICA À FETICHIZAÇÃO
De certo modo, a reação do público parisiente à Sagração, apesar de distar quase um século de nós, simboliza uma dificuldade da compreensão da obra que persiste em nossa “sociedade do espetáculo” (para usar a expressão de Guy Debord) e do entretenimento consumista, na qual a arte "de vanguarda" sofre cronicamente com a ignorância, o desinteresse, o descaso ou o desprezo de ouvintes que relutam em aceitar aquilo que foge do costumeiro e quebra modelos tradicionais. Na tentativa de explicar o porquê da incompreensão de que foram vítimas as obras de compositores como Stravinsky e Schoenberg, dois nomes maiores da música no século 20, recorreremos a algumas reflexões de Theodor Adorno sobre estética musical.
Preocupado com o fenômeno da mercantilização da arte, com o agigantamento do processo de “liquidação do indivíduo” perpetrado pela indústria cultural e com a tendência do “ouvinte se converter em simples comprador e consumidor passivo”[5], Adorno aponta em seu clássico artigo O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição que:
“O princípio do ‘estrelato’ tornou-se totalitário. As reações dos ouvintes parecem desvincular-se da relação com o consumo da música e dirigir-se diretamente ao sucesso acumulado, o qual, por sua vez, não pode ser suficientemente explicado pela espontaneidade da audição mas, antes, parece comandado pelos editores, magnatas do cinema e senhores do rádio.”[6]
A crítica de Adorno ao processo de fetichização da música passa também pela constatação de que o ouvinte passa a ter uma relação “atomizada” com a audição, ou seja, marcada por um certo imediatismo: a rememoração do que se acabou de ouvir e a expectativa pelo que ainda ouvirá deixam de guiar o processo, de modo que só se inteligem segmentos isolados da obra musical, desvinculados de seu contexto. Aquele que assovia trechos da 1a sinfonia de Brahms no metrô, para usar um eloquente exemplo adorniano, nem percebe estar lidando com as “ruínas” desta obra, suas mutilações, seus fragmentos.
“Tal como o fetichista, que destrói de maneira metonímica a mulher para poder gozar dos traços isolados de seu corpo, o ouvinte moderno se encontraria na posição de gozo fascinado por momentos parciais, o que o desobrigaria de reconstruir a totalidade”.[7]
Os ouvintes “já não são absolutamente capazes de uma audição concentrada”, sugere Adorno[8]. Viciados em prazeres imediatos e repetitivos, perdem a capacidade de contemplar demoradamente uma obra de arte complexa em sua totalidade. Tão habituados a consumirem produtos com alto teor de “atrativo sensorial”, de fácil assimilação, digestão e rememoração, tornam-se incapazes de suportar qualquer obra que exija deles um esforço maior de atenção e reflexão.
O ouvinte-padrão da cultura de massas, habituado às músicas-mercadorias que a propaganda o coage a consumir, tornar-se-ia distraído, desconcentrado, sofrendo cronicamente daquela condição de que padecem tantas crianças viciadas em desenhos animados: short-attention span syndrome, ou transtorno de déficit de atenção e hiper-atividade. Tão acostumados a prestar atenção em canções pop de 3 minutos, no decurso dos quais refrões, riffs e sequências de acordes frequentemente se repetem, o ouvinte torna-se irrequieto e impaciente quando se trata de ouvir uma sinfonia inteira de Mahler.
De modo que os ouvintes, infantilizados e irrequietos, seriam vítimas de um “mecanismo neurótico” baseado na “rejeição ignorante e orgulhosa de tudo o que sai do costumeiro. Os ouvintes, vítimas da regressão, comportam-se como crianças. Exigem sempre de novo, com malícia e pertinácia, o mesmo alimento que uma vez lhes foi oferecido. (…) A audição infantil requer sempre as soluções mais cômodas e comuns.”[9]
Neste contexto de fetichização e mercantilização dos produtos culturais é que torna-se mais compreensível a recepção controversa das obras de muitos dos grandes compositores de vanguarda do século, cujas obras tentam escapar das armadilhas impostas pela indústria cultural e manter vivos ideais de subversão de formas naturalizadas, ampliação de horizontes musicais e libertação expressiva em relação a constrangimentos formais.
Um excelente exemplo disto, segundo Adorno, é a música de Schoenberg, “tão diferente das canções de sucesso”, que não foi criada para entreter ou causar prazer; “não é degustada, não pode ser desfrutada”[10]. Sua música “nega a fé à fraude da harmonia existente”[11], aponta Adorno. Parafraseando a espirituosa frase de Steve Reich, lembremos que Schoenberg fazia músicas que o carteiro jamais conseguirá assoviar.
Ora, a música destes compositores de vanguarda como Schoenberg, Stravinsky, John Cage, Pierre Boulez, dentre outros, surge sob a égide de um diagnóstico marcante para a estética musical do século 20: a de que o sistema tonal aproximava-se de um ponto de esgotamento e saturação. É o que Stravinsky esclarece:
“Não acreditamos mais no valor absoluto do sistema maior-menor apoiado na entidade que os musicólogos chamam de escala de dó. (…) O desgastado sistema de tonalidade clássica, que serviu como base para construções musicais de fascinante interesse, só teve autoridade de lei, entre os músicos, por um curto período de tempo – um período muito mais curto do que se costuma imaginar, e que vai apenas de meados do século XVII a meados do século XIX. A partir do momento em que acordes já não servem para cumprir simplesmente as funções a ele atribuídas pela interação das notas musicais, mas, em lugar disso, esquecem todo constrangimento para se tornarem novas entidades, livres de todas amarras – a partir desse momento, pode-se dizer que o processo está completo: o sistema diatônico esgotou seu ciclo vital.”[12]
Tendo-se sedimentado em fórmulas, clichês e procedimentos estereotipados, o tonalismo tinha se tornado uma jaula a encerrar dentro de si as aspirações expressivas de alguns artistas que, em sua ousadia quase temerária, desejavam expandir as potencialidades musicais, seja através da emancipação da dissonância, seja pelas vias do dodecafonismo, do serialismo ou do regresso à cultura arcaica.
Esta última via foi vastamente explorada por Stravinsky, que afirmava que “uma renovação só é frutífera quando anda de mãos dadas com a tradição”[13]. Nas próximas páginas, iremos explorar mais à fundo as ideias de Stravinsky no intento de mapear sua importância na estética musical do século 20 e apontar algumas das razões da controvertida recepção de sua obra.
STRAVINSKY POR ELE MESMO
A fim de avançarmos na compreensão a respeito da relevância e do impacto da obra de Stravinsky no século 20, ouçamos o que o próprio diz a respeito de suas composições e suas escolhas estéticas.
A música, para Stravinsky, é uma criação exclusivamente humana. “O rumorejar da brisa nas árvores, o murmúrio de um riacho ou a canção de um pássaro”, apesar de sua capacidade de nos “acariciar os ouvidos”, não constituem música de fato pois falta a estes sons da natureza a organização que lhe oferece um “ato humano consciente”[14]
O canto de uma cotovia pode até causar deleite sensorial, mas não foi concebido pelo animal com esta intenção e não é fruto de uma organização consciente; já a música “nos fará participar ativamente do trabalho de um espírito que ordena, dá vida e cria.” (idem) Nesta perspectiva, os sons que supostamente fariam as esferas celestes, segundo Pitágoras, não seriam música, propriamente falando, já que esta, na definição de Stravinsky, só se constitui quando “aos dons da natureza acrescentam-se os benefícios da elaboração humana – esta é a significação geral da arte.”[15]
Apesar de ter sido um dos mais ousados “elaboradores sonoros” do século 20, e mesmo cônscio da originalidade de obras como A Sagração da Primavera, o compositor russo recusou ser classificado como um revolucionário:
“Sustento que foi um erro terem me considerado um revolucionário. (...) Fizeram de mim um revolucionário à minha própria revelia. Ora, explosões revolucionárias nunca são totalmente espontâneas. Há pessoas argutas que produzem revoluções com um intuito malicioso. É sempre necessário estar em guarda contra as interpretações distorcidas dos que lhe atribuem uma intenção que você não tinha.”[16]
Mas esta recusa de ser tido como revolucionário, da parte de Stravinski, deve-se à sua concepção sobre a arte como essencialmente construtiva e não disruptiva:
“Na verdade, eu teria dificuldade em citar para vocês um único fato na história da arte que pudesse ser qualificado de revolucionário. A arte é, por essência, construtiva. Revolução implica ruptura de equilíbrio. Falar de revolução é falar de um caos temporário. Ora, a arte é o contrário do caos. Ela nunca se rende ao caos sem ver imediatamente ameaçadas suas obras vivas, sua própria existência.”[17]
É como se Stravinsky se pusesse em guarda contra aqueles que, desejosos de causar impacto a qualquer preço, recorrem a expedientes um tanto arbitrários em sua tentativa de conquistar um status revolucionário. Não se trata de negar o valor das atitudes audaciosas (“sou o primeiro a reconhecer que a audácia é a força motriz das melhores e maiores atitudes”, garante Stravinski); mas a audácia de ser caótico e arbitrário é certamente antipática ao compositor russo, que critica aqueles que “empregam-na levianamente a serviço da desordem e de um desejo mesquinho de causar sensação a qualquer preço”. Stravinsky nos alerta, pois, contra os “excessos gratuitos” e nos convida não nos deixarmos enganar pela “moeda falsa que gostaria de usurpar o lugar da audácia”[18].
Não só contra os pseudo-revolucionários, mas também contra o esnobismo Stravinski dá vazão a seu fel: “Igualmente degradante é a vaidade dos esnobes que se jactam de uma intimidade embaraçosa com o mundo do incompreensível e confessam, deliciados, que ali estão em boa companhia. Não é música o que eles procuram, mas sim o efeito do choque, a sensação que embota o entendimento.”[19]
KUNDERA DEFENDE STRAVINSKY
O autor tcheco Milan Kundera, que dedicou boa parte de seu livro de ensaios Os Testamentos Traídos à obra de compositores fundamentais para a nossa problemática (como Stravinsky, Bartók, Janácek, entre outros), comenta que
“A crítica mais severa e mais profunda a Stravinsky é certamente a de Theodor Adorno em seu famoso livro A filosofia da nova música (1949). Adorno pinta a situação da música como se fosse um campo de batalha político: Schoenberg, herói positivo, representando o progresso (mesmo que se trate de um progresso, por assim dizer, trágico, de uma época que não pode mais progredir), e Stravinsky, herói negativo, representante da restauração. A recusa stravinskiana de ver a razão de ser da música na confissão subjetiva torna-se um dos alvos da crítica de Adorno; esse ‘furor antipsicológico’ é, segundo ele, uma forma de ‘indiferença em relação ao mundo’; a vontade de Stravinsky de objetivar a música é uma espécie de acordo tácito com a sociedade capitalista que esmaga a subjetividade humana; pois é a ‘liquidação do indivíduo que a música de Stravinsky celebra’, nada menos que isso.”[20]
Polemizando contra esta interpretação adorniana da obra de Stravinsky, Milan Kundera tentará defender o compositor russo da acusação de “celebrar a liquidação do indivíduo'”. “A Sagração da Primavera”, lembra Kundera, é “um balé que termina com o sacrifício de uma moça que deve morrer para que a primavera ressuscite. Adorno: Stravinsky está do lado da barbárie; sua música não se identifca com a vítima, mas com a instância destrutiva.” Ora, a interpretação adorniana de que Stravinsky estaria se identificando com o mal é contestável, e Kundera opõe-se a ela com eloquência:
“Desde sempre, profunda, violentamente, detesto aqueles que querem encontrar numa obra de arte uma atitude (política, filosófica, religiosa etc.) em vez de procurar uma intenção de conhecer, de apreender este ou aquele aspecto da realidade. A música, antes de Stravinsky, nunca soubera dar uma forma aos ritos bárbaros. Não se sabia imaginá-los musicalmente. O que quer dizer: não se sabia imaginar a beleza da barbárie. (…) Dizer que um rito sangrento possui uma beleza, eis o escândalo, insuportável, inaceitável. No entanto, sem compreender esse escândalo, sem ir até o fundo desse escândalo, não podemos compreender grande coisa sobre o homem. Stravinsky dá ao rito bárbaro uma forma musical forte, convincente, mas que não mente: escutemos a última sequência da Sagração, a dança do sacrifício: o horror não é escamoteado. Está lá. Que seja apenas mostrado? Que não seja denunciado? Mas se ele fosse denunciado, isto é, privado de sua beleza, mostrado em sua feiúra, seria uma deslealdade, uma simplificação, uma 'propaganda'. É porque ele é belo que o assassinato da moça é tão horrível.
Assim como ele fez um retrato da missa, um retrato da festa campestre (Petrouchka), Stravinsky fez aqui o retrato do êxtase bárbaro. É ainda mais interessante que ele tenha se declarado sempre e explicitamente partidário do princípio apolíneo, contrário ao princípio dionisíaco: A Sagração da Primavera (notadamente suas danças rituais) é o retrato apolíneo do êxtase dionisíaco... no entanto, a beleza apolínea desse retrato da barbárie não esconde o horror; ela nos mostra que no fundo do êxtase não se encontra senão a dureza do ritmo, as batidas severas da percussão, a insensibilidade extrema, a morte.”[21]
Já Ernest Ansermet, que a despeito de ter sido amigo e correspondente de Stravinsky não poupou o compositor de críticas ferrenhas, sustenta que o autor de O Pássaro de Fogo
“não fez nem tentou fazer de sua música um ato de expressão de si mesmo; não foi por livre escolha, mas por uma espécie de limitação de sua natureza, pela falta de autonomia de sua atividade afetiva (por que não dizer, por sua pobreza de coração, que não deixa de ser pobre a não ser quando tem alguma coisa para amar)”.[22]
Kundera, empreendendo novamente uma espécie de defesa de Stravinsky contra tão implacáveis censuras, pergunta-se:
“Por que essa intransigência? Será a herança do século passado, o romantismo em nós, que se revolta contra sua mais consequente, sua mais perfeita negação? Teria Stravinsky ultrajado uma necessidade existencial escondida em todos e em cada um de nós? Seria a necessidade de considerar olhos molhados como melhores que olhos secos, a mão pousada sobre o coração melhor que a mão no bolso, a fé melhor que o ceticismo, a paixão melhor que a serenidade, a confissão melhor que o conhecimento?”[23]
A “razão de ser da música”, para Stravinsky, não pode ser a expressão de afetos pessoais, de modo que Kundera descreve o compositor russo como um rebelde em relação ao romantismo. Uma das peculiaridades maiores de Stravinsky seria a “recusa em ver a razão de ser da música exclusivamente na confissão da vida emocional, atitude que se tornou no século XIX tão imperativa quanto a obrigação da verossimilhança para a arte do romance da mesma época.[24]” Em outras palavras: segundo Kundera, Stravinsky foi um compositor que pôs em questão a afirmação romântica de que “o coração é eticamente superior ao cérebro”. É o que o autor d'O Livro Do Riso e do Esquecimento expressa ao nos perguntar:
“Não são as baixezas cometidas tanto com a participação do coração quanto sem ela? Não podem os fanáticos, com as mãos manchadas de sangue, vangloriar-se de uma grande ‘atividade afetiva’? Será que um dia terminaremos finalmente com essa inquisição sentimental imbecil, com esse Terror do coração?”[25]
O próprio Stravinsky, rejeitando a tese de que os russos seriam naturalmente “arrebatados” em suas paixões, com uma tendência para o irracional e o desmedido, sustenta que “é mais que tempo de abandonar o ponto de vista banal e errôneo (e tantas vezes desmentido pelos fatos) que atribui à personalidade russa um elemento de irracionalidade inata, pretendendo encontrar nisto uma explicação para a predisposição russa ao misticismo e à devoção religiosa.”[26]
A FERIDA DO EMIGRADO
“A vida de Stravinsky”, como lembra Kundera, “está dividida em três partes de tamanhos mais ou menos iguais: Rússia, vinte e sete anos; França e Suíça francófona: vinte e dois anos; América: trinta e dois anos”[27]. Esta peculiaridade biográfica do compositor russo deve ser levada em conta para melhor compreendermos sua produção artística, já que esta estaria marcada por esta experiência de emigrado (vivida também por outros artistas de magnitude como Joseph Conrad, Gombrowicz e Vladimir Nabokov).
O autor de A Insustentável Leveza do Ser afirma que “sem dúvida Stravinsky trazia em si a ferida de sua emigração”, esta “estadia forçada no estrangeiro para aquele que considera seu país natal como sua única pátria”[28]. Stravinsky “só depois da revolução [de 1917] compreendeu que seu país natal estava perdido para ele, provavelmente para sempre: começa a verdadeira emigração.”[29] Apesar das numerosas obras de Stravinsky intimamente relacionadas com a cultura russa (Mavra, de 1922, é uma ópera bufa baseada em Púchkin; Zvezdoliki baseia-se num poema russo de Balmon; A Raposa e A História do Soldado têm influência da poesia popular da Rússia etc), o compositor irá celebrizar-se posteriormente por sua aventureira jornada através de toda a história da música.
“O começo de sua viagem através da história da música coincide mais ou menos com o momento em que seu país natal não mais existe para ele; tendo compreendido que nenhum outro país poderia substituí-lo, ele encontra sua única pátria na música; isso não é, de minha parte, uma bela versão lírica, penso assim de modo inteiramente concreto: sua única pátria, sua única casa, era a música, toda a música de todos os músicos, a história da música; foi ali que ele acabou encontrando seus únicos compatriotas, seus únicos parentes, seus únicos vizinhos, de Pérotin a Webern; foi com eles que começou uma longa conversa que só parou com a morte. (…) Seus detratores, defensores da música concebida como expressão dos sentimentos, que se indignavam com a insuportável discrição de sua 'atividade afetiva' e o acusavam de 'pobreza de coração', não tinham eles próprios coração bastante para compreender qual ferida sentimental se encontrava por detrás desse seu perambular através da história da música.”[30]
Contra a crítica de Ansermet, que sugere em Stravinsky uma “inacreditável diversidade de procedimentos estilísticos (...) que parece uma ausência de estilo”, Kundera escreve:
“Se Stravinsky, como nenhum outro compositor, antes e depois dele, inclinou-se sobre toda a extensão da história da música tirando dela a inspiração, isso não diminui em nada a originalidade de sua obra. (...) É precisamente seu perambular através da história da música, portanto seu ‘ecletismo’ consciente, intencional, gigantesco e sem igual que é sua total e incomparável originalidade.” [31]
CD 01 - O Pássaro de Fogo e A Canção da Cotovia
CD 02 - Petrouchka e A Sagração da Primavera
CD 03 - Pulcinella e Apollon Mussagète
CD 04 - The Fairy's Kiss e Renard
CD 05 - A Soldier's Tale e Pulcinella Suite
CD 06 - Sinfonia em C; Sinfonia em 3 Movimentos; Symphony For Wind Instruments
CD 07 - Concerto for Piano and Wind Instruments; Cappricio for Piano and Orchestra; Suite 1 e 2 para Pequena Orquestra; Scherzo à La Russe.
CD 08 - Mavra; Les Noces; Symphony For Psalms.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] CAVALCANTI, J.D. A eterna Sagração da Primavera. Revista Eletrônica Digestivo Cultural, 24/03/2009. Disponível em: < http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=2767 >
[2] TRAGTENBERG, Livio. Artigos Musicais. São Paulo: Perspectiva, 1991. P. 190.
[3] STRAVINSKY, I. Poética Musical em 6 Lições. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. Pg. 20.
[4] Op Cit. P. 41.
[5] ADORNO, T.W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1999. P. 70.
[6] Op. cit. P. 74.
[7] SAFATLE, V. Fetichismo e mimesis na filosofia da música adorniana. In: Revista Discurso, n. 37, 2007. P. 378.
[8] ADORNO. Op Cit. P. 92
[9] Op Cit. P. 94-95.
[10] Op Cit. P. 71.
[11] Op Cit. P. 70.
[12] STRAVINSY. Op Cit. P. 42-43.
[13] Op. Cit. 107.
[14] Op. Cit. P. 31.
[15] Op. Cit. P. 32.
[16] Op. Cit. P. 21.
[17] Idem.
[18] Idem
[19] Op Cit. P. 23.
[20] KUNDERA, M. Os Testamentos Traídos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1993. P. 59.
[21] Op. Cit. P. 83.
[22] Op Cit. P. 60.
[23] Op Cit. P. 59.
[24] Op Cit. P. 68.
[25] Op. Cit. P. 60.
[26] STRAVINSKY. Op Cit. P. 95
[27] KUNDERA. Op. Cit. P. 86.
[28] Op Cit. P. 86-87.
[29] Idem.
[30] Op. Cit. 87-88
[31] Op Cit. P. 68.
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