#2
BLITZEN TRAPPER
"Destroyer of the Void"
“Há um vínculo secreto entre a lentidão e a memória, entre a velocidade e o esquecimento. (...) Na matemática existencial, essa experiência toma a forma de duas equações elementares: o grau de lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória; o grau de velocidade é diretamente proporcional à intensidade do esquecimento.” MILAN KUNDERA, A Lentidão
Se Kundera tem razão, a arte de escutar música também oscila entre estes pólos, a memória e o esquecimento, conforme a pressa ou o cuidado com que a ouvimos. Um tímpano afoito, que faz uma audição apressada e desatenta, faz com que a música logo vaze da lembrança (como se entrasse por um ouvido e saísse por outro). Para que a música se torne algo de denso, para que desça como uma âncora até as profundezas de nosso oceano de neurônios, seria preciso demorar-se nela. Deixar que ela faça seu trabalho sorrateiro, que se infiltre em nosso interior e ali ecoe, que as melodias nos deixem insones, que versos se imponham à consciência como uma charada que queremos desvendar a todo custo...
Se o Blitzen Trapper foi uma das bandas que mais marcou meu 2010 foi pois senti necessidade de me demorar neles, de fazer repetidas visitas ao universo particular dos caras... Destroyer of the Void, quinto álbum do sexteto de Portland (o terceiro lançado via-Sub Pop), desde a 1ª audição revela-se como um desses raros álbuns que exigem várias audições para serem devidamente apreciados.
Banda sempre surpreendente e ousada, o Blitzen Trapper no começo foi comparado ao "ecletismo lo-fi de Beck" --- e de fato um álbum como Wild Mountain Nation (2007) é loucão, lírico e esquizofrênico o bastante para poder ser equiparado a um Mellow Gold ou Odelay, ainda que seja bem menos impactante.
Mas foi nos dois últimos álbuns que o Blitzen Trapper realmente se encontrou; ao limitar um pouco o leque vasto demais de sonoridades, centrando o foco na música americana roots em todas as suas vertentes, os caras encontraram sua identidade e fizeram em Furr (2008) e Destroyer Of The Void (2010) dois dos mais admiráveis álbuns folk dos últimos anos. E quem diz "folk" diz "música tradicional norte-americana", o equivalente da nossa "M.P.B."...
Banda sempre surpreendente e ousada, o Blitzen Trapper no começo foi comparado ao "ecletismo lo-fi de Beck" --- e de fato um álbum como Wild Mountain Nation (2007) é loucão, lírico e esquizofrênico o bastante para poder ser equiparado a um Mellow Gold ou Odelay, ainda que seja bem menos impactante.
Mas foi nos dois últimos álbuns que o Blitzen Trapper realmente se encontrou; ao limitar um pouco o leque vasto demais de sonoridades, centrando o foco na música americana roots em todas as suas vertentes, os caras encontraram sua identidade e fizeram em Furr (2008) e Destroyer Of The Void (2010) dois dos mais admiráveis álbuns folk dos últimos anos. E quem diz "folk" diz "música tradicional norte-americana", o equivalente da nossa "M.P.B."...
"Black River Killer", de Furr, já revelava qual a "viagem" do Trapper nos últimos anos: um mergulho às raízes da música americana "maldita", de Johnny Cash cantando na penitenciária Folsom à Bruce Springsteen uivando na madrugada em Nebraska, do blues satânico de Robert Johnson e Leadbelly ao desconsolo empoeirado do Wilco fase-Being There.
O "Assassino do Rio Negro": está aí um nome propício para um western spaghetti --- e também esta influência marca presença nas letras altamente narrativas de Eric Earley, compositor e vocalista do grupo. Mas é como se algo de gótico, de noir, viesse escurecer muitos dos "causos" que nos conta o Blitzen Trapper. Uma lírica à la Nick Cave misturada a historietas sanguinolentas, dignas dum thriller caipira ou de Sobre Ratos e Homens, de Steinbeck.
A primeira música de Destroyer of The Void já escancara o quão ambicioso se tornou o Blitzen Trapper. Com mais de 6 minutos de duração, a faixa-título é uma espantosa suíte folk-prog-psicodélica que transita por 3 diferentes seções, num procedimento que remete às faixas finais do Abbey Road. Construindo um complexo labirinto folk, a banda criou sua canção mais arrojada, remetendo a "Deja Vu", do Crosby, Stills, Nash & Young, ou ao clássico American Beauty (1970), do Grateful Dead.
Se a ambição musical atinge seu ápice já no início da álbum, daí em diante é a ambição poética quem toma conta em canções recheadas com tanto lirismo e mistério que não esgotam seu sentido mesmo depois de uma dúzia de audições. A melhor poesia do álbum surge em "The Man Who Would Speak True", canção irmã de "Black River Killer". Ambas as cançõesse assemelham a rubros clássicos do folk americano que cheiram a sangue fresco e pecado. Filiam-se a uma longa tradição de músicas que narram assassinatos passionais, cometidos por homens arrebatados como heróis de Dostoiévski, que degolam pobres mocinhas, a quem depois dedicam um pungente folk confessional... É o caso de "Down By The River" de Neil Young, "Via Chicago", do Wilco, ou "Where Did You Sleep Last Night?", do Leadbelly (mais conhecida na voz de Kurt Cobain...).
"I fed my tongue on the Devil’s rum
In a roadhouse run by a godless bum
On a drunken night, with a stolen gun
I shot my lover as she made to run."
Depois de confessar ter cometido o homicídio de sua amada Grace (teria sido uma homenagem à anti-heroína de Lars Von Trier em Dogville/Manderlay?), o eu-lírico descreve sua vida como fugitivo da justiça, até ser pego e forçado a falar. Com um talento para a construção de metáforas de deixar boquiaberto, Earley faz sua língua, ao dizer a verdade, soltar fogo pelas ventas como um dragão...
"So I opened my mouth like a dragon’s breath
I only spoke truth, but it only brought death
And I laid those boys to rest
For the truth, in truth, is a terrible jest.
For there ain’t no road but the road to home,
There ain’t no crops but the ones you’ve sown
And if you'll learn one thing from me:
You better guard your tongue like your enemy."
Esta canção foi o que bastou para que eu colocasse Eric Earley no seleto rol dos meus poetas-da-música prediletos. E há tempos eu não encontrava alguém digno de fazer companhia à Dylan, Cohen, Springsteen, Tweedy, Patti Smith, Conor Oberst, Jeff Mangum... Mas não é só nesta que o lirismo do cara maravilha o ouvinte atento: o álbum inteiro é um banquete para quem gosta de poesia, de rima, de jogos-de-palavra e de vôos-livre da imaginação...
O psicodelismo delirante de Syd Barrett ou Skip Spence é o que dá o tom em "Lover, Leave Me Drowning", pink-floydesca pepita folk-psicodélica na qual violinos bucólicos convivem com guitarrismos nuggetianos. O folkão com pegada rocker do Black Rebel Motorcycle Club circa-Howl é a onda de "Dragon's Song". E o fantasma de Nick Drake também dá as caras para assombrar as melancólicas (e belíssimas...) "Bellow The Hurricane" e "Heaven and Earth".
Já "The Tree" traz um dueto vocal de Earley com Alela Diane que remete a algumas das mais belas colaborações entre Gram Parsons e Emmylou Harris ou Damien Rice e Lisa Hannigan. Trata-se de uma fábula adocicada, impregnada de magia e simbolismos de conto-de-fadas, sobre uma árvore gigantesca que cresce sem parar, enquanto o eu-lírico e sua musa a escalam, ascendendo sempre, através dos enroscos dos galhos e das folhagens...
Ótima metáfora para o próprio Blitzen Trapper: uma banda com raízes profundamente plantadas no solo da música americana e que vem se transformando numa frondosa árvore, digna de ser escalada infindamente por nós, ouvintes, que só tem a ganhar se, com insistência, chegarem lá em cima, onde suculentos frutos nos aguardam....
(Destroyer of the Void, Sub Pop, 2010) <<< d >>> |
(Furr, Sub Pop, 2008) <<< d >>> |
(Wild Mountain Nation, Sub Pop, 2007) <<< d >>> |
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Um comentário:
po cara, sempre pulo aqui atrás de coisas novas e boas, maravilha de blog!
abração
Pedro Aranha
saqueandoacidade.blogspot.com
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