segunda-feira, 5 de novembro de 2012

"Atitudes de amor devemos samplear" (Viajando com Criolo...)


"Em cada escombro, 
Em cada esquina,
Me dê um gole de vida!"

Não Existe Amor Em SP



"Eu vim pra incomodar, pra cutucar, pra confundir, pra me expressar!", canta Criolo em "No Sapatinho", de seu primeiro álbum, de 2006 [baixe-o no Hominis Canidae]. Na mesma música, dá um exemplo do naipe de cutuco e incômodo que tem em mente: rap, segundo o artista crescido no "Grajauex", é algo que faz "muito mais que religião, presídio e cassetete, irmão..."

Tudo aquilo que é verdadeiramente rico - mas "do ouro de dentro", como diria Hilda Hilst - é rebelde aos rótulos redutores. Nenhum artista realmente fecundo se deixa reduzir a uma palavra, um conceito, um estilo, uma etiqueta, uma persona. Quando a figura de Criolo despontou para um público mais vasto, com esta canção que já fez história que é "Não Existe Amor em SP", ficou claro que qualquer tentativa de domar e domesticar a complexidade desse artista, grudando nele uma etiqueta qualquer (inclusive os óbvios "rapper" e "voz do gueto"), violentava o colorido múltiplo dessa música aventureira, que monta na cabeça do ouvinte um mosaico verbal labiríntico, cheio de sedutoras batidas, sobre as quais se derrama um "dialeto suburbano" ("Mariô") feito pra dar Nó na Orelha... E nas idéias.

Longe de ser "só" um rapper (e não que isso seja pouca coisa...), deste Criolo Doido pode-se dizer muita coisa: que é um poeta lírico da era dos beats eletrônicos, um professor de transes com vocação xamânica, um artista brasileiro com conexões cósmicas... e sei lá eu o que mais. Numa composição que impressionou até mesmo Chico Buarque e Caetano Veloso, ele nos leva por uma travessia por "labirintos místicos onde os grafites gritam", pintando a street art paulistana em suas rimas, enquanto alfineta alguns dos males que enxerga naquela que Mário de Andrade chamava A Paulicéia Desvairada: "a vaidade grita, a vaidade excita... devolva a minha vida e morra afogada em seu próprio mar de fel..."

"Nó Na Orelha": download? Ou soundcloud?
A melancolia e a raiva que tingem "Não Existe Amor Em SP", me parece, nada tem de derrotismo ou niilismo: "o Criolo quer colar pra somar", canta em "Lion Man". Ouço nas entrelinhas um apelo à gentileza, um chamado à fraternidade, uma disponibilização de forças para uma somatória: "a mudança não é um indivíduo só que faz, é o coletivo", diz Criolo àqueles que ocupam a Praça Roosevelt Rosa. Esta Sampa retratada por Criolo como anêmica e exangue de tão pouco amor que corre em suas veias, adoentada de tanto fascínio pela grana e pelo fausto, precisaria aprender a se re-amorizar - e por que não através da música, da poesia, da rima, da celebração da criatividade humana? É Brasil, 2012, e a Chama Hippie não morreu!...

 "Artista independente leva no peito a responsa", canta Criolo  em "Lion Man", esbravejando leoninamente que "vai cair o rei!". A "responsa" inclui contribuir e somar para  recolorir a cidade com batidas e rima, melodias e batuques, danças e versos, ampliando o espectro de cores da metrópole cinza.  "O dinheiro vem pra confundir o amor...", é um dos "recados" - papo-reto - de "Linha de Frente".

Diante do maior público de sua carreira, no XIII Canto da Primavera de Pirenópolis (GO), diante duma massa de mais de 20 mil pessoas, agregada no gramado do Campo das Cavalhadas, pudemos conferir uma apresentação impressionante de um artista brasileiro que parece estar atingindo um de seus auges. Acompanhado por uma bandaça timbradíssima - que inclui o Ganjaman como DJ e o Marcelo Cabral (dos Marginals) no baixão, ambos produtores do Nó na Orelha, e outros músicos do primeiríssimo escalão... - Criolo deu tudo de si e fez um show memorável. "O RAP É FORTE, VAGABUNDO!", lia-se numa das placas que se destacava no público. Não dava pra duvidar disso. A força extrema do rap-Brasil, nesta década 10, é inegável, com Emicida e Racionais, Kamau e Lurdez da Luz, entre tantos outros, resistindo e expressando. Não há como saber o que ocorrerá com essa força considerável que foi conquistada por Criolo, e tantos outros rappers também, que vêm tomando de assalto o mainstream e praticando uma espécie de hacking contracultural ao usar o Sistemão como meio de difusão. O que virá não me arrisco a profetizar: como diria Joe Strummer, "the future is unwritten" ["o futuro não está escrito"].

O fato é que cerca de uma semana depois de ter encarado a responsa braba de se comunicar com a multidão que tomou a Praça Roosevelt, em São Paulo, no festival "Existe Amor em SP" (que Criolo indiretamente batizou com sua influente canção...), o show no Canto da Primavera foi outro desafio gigante para um artista em processo de agigantamento acelerado. O fato de ter papado os prêmios da MTV - Melhor Disco e Melhor Música - no VMB 2011 com certeza ajudou a disseminar Criolo Brasil afora e conquistar uma base sólida de fãs até no Cerradão, em meio aos Pirineus, a meio caminho entre Goiânia e Brasília. A impressão que fica da cantoria de Criolo no canto é a de que a massa já começa a enxergá-lo como ídolo, quiçá alguns até já o vejam como messias - e eis aí um caminho a trilhar, daqui pra frente, lotado de potencialidades e perigos.


O "figurino" criolino naquela noite, nada ortodoxo em relação aos vestuários de praxe no hip hop, gerou uma série de interpretações: alguns me disseram que ele estava com "roupa de pai de santo", outros escreveram que se tratava de uma "bata indiana", já eu fiquei com a impressão de algo que remetia a uma figura à la Antonio Conselheiro, mas com linho mais chique... Uma das constatações que fiz, nos acalorados bates-papos e trocas-de-idéias pós-show, foi que muita gente leu a atitude de Criolo como algo meio "messiânico". É como se ele estivesse a cada dia mais consciente de seu papel como uma espécie de novo "líder de massas", de quem muitos esperam que proclame, ao microfone, algum novo evangelho. Este, por exemplo: "Não precisa morrer pra ver Deus..."

Considero este um dos versos mais memoráveis dentre os que nos últimos anos foram compostos no Brasil: longe da pregação gospel ou do evangelismo apelativo, Criolo expressa aí um "insight místico" que não deixa de ter um certo sabor spinozista, panteísta, algo que beira o anti-cristão e a "heresia". O cristianismo exila a divindade para a transcendência, para o sobrenatural, para as lonjuras, e promete para o além-túmulo o encontro com o Criador: aqui na Terra, este vale-de-lágrimas, só nós resta a esperança de um dia merecer a aproximação a este Deus imaginado como uma espécie de Exilado. O verso de Criolo tem outro sabor: convite à unio mystica com um Deus concebido como algo imanente e presente, ao invés de remoto, ausente e prometido para o futuro? Comentário provocativo sobre a tara religiosa de travestir a morte com a esperança de que ela seja uma viagem rumo à transcendência, uma porta que se abre para a salvação? 

As interpretações podem (e devem) se multiplicar: a polissemia, o duplo ou triplo sentido que um verso, uma rima, uma estrofe ou uma canção comportam integram parte essencial de sua "riqueza" (de novo: "do ouro de dentro"...). Mas Criolo também sabe ser inequívoco, quase peremptório, como naquele outro verso que, cantado por um coro de mil vozes no Canto da Primavera, produziu em mim uns calafrios na espinha de intenso comovimento: "Aqui ninguém vai pro céu..." 

O que não é razão para não "samplear atitudes de amor".



* * * * *

DIGNIDADE OU JAZIGOS?

"Vamos às atividades do dia:
Lavar os copos, contar os corpos
E sorrir desta morna rebeldia."


LION MAN


Talvez o fenômeno Criolo só possa ser compreendido por esta simultânea e fecunda convivência entre uma atitude pé-no-chão, de quem conhece "a lei do cão" e é atento às realidades terrestres e às vivências urbanas, convivendo com uma desmesura na sondagem místico-metafísica. Criolo canta da província, da favela, do morro, mas está ao mesmo tempo no mundo, no cosmos, no todo. A "conexão entre o morro e o asfalto" de que falava o Planet Hemp aqui se concretiza, mas também a conexão entre a província e o cosmos. Tanto o freguês da meia-noite de um cabaré decadente quanto o visitante que atravessa a Transamazônica rumo a Bogotá podem estar simultaneamente habitando, conscientemente, a província e o cosmos. Abujamra cantou numa das melhores canções do Karnak, que talvez não desagrasse à "lírica criolina": "eu vou pro céu com o pé-no-chão...".

O Brasil cheio-de-nós que emerge da arte de Criolo é complexo e problemático, ou seja, bem próximo do Brasil real: aquele da desigualdade social, da violência policial, das biqueiras e dos crackeiros (ele não poupa conselho sobre isto, aliás: "cocaína desgraça a vida de um bom rapaz!"). Criolo denuncia o racismo ("uns preferem morrer ao ver o preto vencer", em "Sucrilhos"), o armamentismo e a violência ("As crianças aqui tão de HK", "Subirusdoistiozin"), o abandono e o descaso ("Eu cresci no mundão onde o filho chora e a mãe não vê", também em "Subirusdoistiozin"). Sua música é, em certos momentos, um brado de revolta e de resistência contra aquela violência imposta de cima por aqueles que "tem tudo de bom e fornecem o mal pra favela morrer."



Outro elemento essencial da estética Criola, me parece, é o que eu chamaria de "composição linkada". Talvez em decorrência da emergência da Internet e da força  cultural internacional que se tornou o movimento Hip Hop, o link saiu do âmbito restrito da Web invadiu o reino do som. Com a progressiva inter-conexão das inteligências e com a disseminação das redes dentro das redes, a música vai se tornando cada vez mais "linkada": só ver o caso de artistas que já marcaram época - Beastie Boys, Beck Hansen, Kanye West... - e de experimentos atuais como o Girl Talk e o DJ Dangermouse. 


A composição altamente linkada e "rizomática" - um pouco à la Bob Dylan por voltas de 1965-1967 - está na crista da onda do nosso zeitgeist cultural. Criolo também compõe se apoiando bastante na "linkagem":  só para exemplificar, lembremos que em suas letras ele remete a Muhammad Ali e Gandhi, Fela Kuti e Sabotage, Rappin Hood e Facção Central. Cita a Pasárgada de Manuel Bandeira (em "Bogotá") e evoca em "Sucrilhos" as imagens veneráveis de Di Cavalcanti, Oiticica e Frida Kahlo, só para sublinhar que eles "tem o mesmo valor que a benzedeira do bairro".

 Até a invasão linguísticas dos X que se pronunciam ÉX é finamente tematizada na brilhante "Grajauex", onde se manifesta o talento humorístico de Criolo, neste tema quase um stand-up comedian. O X importado da gringa, aporte dos yankex, parece uma paródia da americanização da nossa cultura: somos uma sociedade que, à semelhança da música "Grajauex", viu-se invadida por um cortejo de Jontex e Durex,  Rolex e Triplex, Sedex e Marmitex. E na Internex o que não falta é o XXX...

No fim de "Sucrilhos", numa das cantorias mais singelas do Nó na Orelha, um convite é lançado ao povo brasileiro, aquele que Stefan Zweig, em seu Brasil: País Do Futuro, depois de ter fugido do nazi-fascismo europeu, celebrou como um paraíso da miscigenação pacífica (ironia do destino: a idealização não tardaria a se esfacelar e Zweig acabaria se suicidando em Petrópolis...):

"Eu tenho orgulho da minha cor, 
Do meu cabelo e do meu nariz
Sou assim e sou feliz:
Índio, caboclo, cafuzo, criolo...
Sou brasileiro!"


"MARIÔ"



Este júbilo de ser impuro, antídoto contra a tirania da pureza que querem impor os fascistas e os racistas, marca a criação artística de Criolo, propagador de uma aceitação jubilosa de nós mesmos como "produtos" de uma complexa síntese entre tendências e interconexões. Mas isso é mais utopia do que fato consumado: a diferença ainda é perseguida, os esteréotipos ainda grudam às mentes e os massacres periféricos prosseguem espalhando cadáveres precoces sobre um país que sempre teve um futuro promissor. A pergunta que o "Homem Leão" faz à sua "pátria-amada" é como um ponto-de-interrogação que ainda paira no ar, sem resposta, como uma provocação e um enigma: "Pátria amada, o que ofereces a teus filhos sofridos: dignidade ou jazigos?"












Eduardo Carli de Moraes

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