ARMADILHAS DA UTOPIA
- Uma leitura de Brave New World -
O procedimento de Aldous Huxley em seu Admirável Mundo Novo, um dos romances mais importantes não só do sci-fi como gênero literário, mas de toda a literatura inglesa do século XX, centra-se na descrição de um Estado aparentemente utópico: uma Civilização de tecnologia ultra-avançada que gaba-se de suas proezas de engenharia genética, estabilidade social, condicionamento neo-pavloviano do comportamento, divertimentos eletrônicos multimídia e paraísos artificiais disponíveis com a ingestão de poucos gramas de soma ("dez centímetro cubículos vencem mil pensamentos lúgubres", escreve Huxley descrevendo a wonderdrug da época).
O estilo de sci-fi nesta obra de Huxley é inteiramente
terreno: não há aliens, OVNIs, colonização de outros
planetas. As estrelas distantes, que em seu mutismo eterno apavoravam Pascal, mal aparecem na trama. Trata-se, para
Huxley, de imaginar o futuro da Terra, tentando prever com a
fantasia alguns dos perigos, abismos, potenciais e esperanças que o
presente encerra em seu ventre grávido de futuros. Mas trata-se,
antes de mais nada, de fazer soarem os alarmes e denunciar os perigos
desta Utopia pretensamente tão bela.
A Utopia, em Brave New World, é mais vilã do que mocinha. A
epígrafe, de autoria de Nicolas Berdiaeff, lança-nos a um estranho
problema em relação à utopia: "Comment éviter leur
reálisation définitive?" [“Como evitar sua realização
definitiva?”] Ou seja: evitar a utopia, ao invés de abraçá-la,
passa a ser... o ideal. Huxley, como quem arranca um Véu de Maya que
encobria os olhos da Utopia, cegando-a para sua própria obscenidade
e terror, realiza em Brave New World uma distopia –
ou seja, uma inversão da utopia, quase uma nietzschiana "reviravolta
de todos os valores".
O que é cultuado como
ídolo sofre a revolução que o torna desdenhável como um cisco. O
adorável mundo novo revela-se como um grotesco escândalo para o
Selvagem que é triturado por suas engrenagens grotescas. O romance
de Huxley, portanto, longe de ser uma celebração entusiástica do
utopismo, é uma denúncia satírica dos perigos que se escondem nas
tentativas humanas de criar sociedades perfeitas.
Huxley parece querer nos mostrar que sempre há um certo descompasso
entre o desenvolvimento tecnológico e a antiquíssima confusão,
indecisão e discórdia humanas quanto aos sentidos-da-vida. Não há
unanimidade entre a humanidade sobre qual seria o "Objetivo
Último" dela mesma. Uns isolam-se em eremitérios
na mata, procurando por sabe-se-lá que epifanias místicas, enquanto
outros tornam-se homens-de-multidão, animais-de-manada, incapazes de
suportar um grama que seja de solidão... Enquanto uns vão a missa e
se mortificam, outros enchem a cara e caem na esbórnia; uns entram
para mosteiros, outro viram militantes políticos; uns são
carnívoros inveterados, outros vegetarianos convictos; há
monogâmicos, adúlteros, polígamos, pedófilos, orgiásticos,
perversos, celibatários, indecisos; há apolíneos, dionisíacos,
socráticos, epicuristas, estóicos, pirrônicos, marxistas, nazis,
céticos, agnósticos, fanáticos...
Uma utopia intenta acabar com a imperfeição de tudo o que é
humano e instaurar uma sociedade... homogênea, harmoniosa, em
paz consigo mesma. O "estado" que a Utopia aspira a
instaurar no Real consiste num estado de estabilidade, equilíbrio,
estase. Uma vez concretizada a utopia, é como se as rodas da
História cessassem de girar, como se a sociedade atingisse um ponto
ótimo a partir do qual pode abandonar-se calmamente às delícias da
inércia.
Em Admirável Mundo Novo, Huxley pinta o retrato de uma
sociedade utópica onde "homens e mulheres padronizados, em
grupos uniformes", saem dos frascos das incubadeiras e
laboratórios de eugenia absolutamente idênticos uns aos outros,
produzidos em série como bichos-de-pelúcia ou automóveis. A
perversidade do sistema econômico é escancarada por Huxley: as
castas inferiores, os Ípsilons, são literalmente criados em
laboratório e têm seus fetos judiados por procedimentos
malignos: seus embriões recebem injeções de álcool e outras
substâncias desestabilizantes, a fim de que nasçam semi-aleijados,
com retardamentos mentais, crippled for life. "Quanto mais
baixa é a casta... menos oxigênio se dá." (p.
42) "Todo o pessoal de uma pequena usina
constituído pelos produtos de um único ovo bokanovskizado" (p.
32): "o princípio da produção em série aplicado enfim à
biologia"!
Já os ministérios desta sociedade – Predestinação Social,
Condicionamento Emocional... - são todos centrados em eliminar da
vida social o imprevisível, programar corações e mentes
para que ajam sempre da maneira desejável, sem indesejáveis desvios
de conduta. Em Brave New World vigora o Império da
Normopatia: os normais têm direitos de imperadores diante dos
destoantes, dos anormais, dos desviantes, dos indivíduos
demasiado... individualizados. A utopia quer que cada
indivíduo seja uma peça intercambiável de uma maquinaria social
maior que ele; e uma peça que, ao quebrar, pode ser facilmente
substituída por outra. Esta utopia deseja homens que ajam como
abelhas na colméia, formigas num formigueiro. E além do mais
esforça-se para que... amemos nossa servidão, nosso
sacrifício, nossa auto-imolação nos altares do coletivo!
Um Estado totalitário verdadeiramente eficiente seria aquele em que
os chefes políticos de um Poder executivo todo-poderoso e seu
exército de administradores controlassem uma população de escravos
que não tivessem de ser coagidos porque amariam sua servidão. Fazer
com que eles a amem é a tarefa confiada, nos Estados totalitários
de hoje, aos ministérios de propaganda, diretores de jornais e
professores." - ALDOUS HUXLEY, 1946
Neste pavoroso Mundo Novo, ao invés de leite materno os bebês bebem uma "secreção
pasteurizada" (p. 232). Ao invés de crescerem no ventre das
mães, amadurecem na penumbra subterrânea de um laboratório
científico, dentro de frascos, rolando linha-de-montagem abaixo na
industriosa fábrica-da-vida. Ao invés de irem à escola, vão ao
centro de Condicionamento, onde são soterrados debaixo da repetição
de slogans e programas-de-comportamento que visam a
regular, controlar e submeter o trabalho e o lazer, a moral e a
sexualidade, o misticismo e a criação. A sociedade que nasce disto
é uma em que os cidadãos foram ensinados a crer que "não
há crime mais odioso do que a falta de ortodoxia na conduta"
(p. 233). Morte à imprevisibilidade e à experimentação lúdica!
Seguir em trilhos de ferro com o trem de opiniões tão convictas que
nenhum vento de argumento as abale.
Não há respeito pela diferença nesta sociedade: tudo que
foge à normalidade, qualquer um que recuse-se a vestir o uniforme,
que não queira "fazer como faz todo mundo", que se negue a
ser uma "mariazinha-vai-com-as-outras",
que se revolte contra seu destino de "animal de rebanho",
como diria Nietzsche, este é estigmatizado e perseguido
pelos poderes sacerdotais e políticos que gerem esta República da
Homogeneidade. Bernard Marx, no livro de Huxley, é condenado ao
exílio na Islândia, tratado como um pária e um subversor
(p. 234), por ousar destoar da normalidade civilizada. É ele uma
espécie de homenagem de Huxley a estas figuras heróicas que ousam
"desafinar o coro dos contentes", para relembrar um verso
de Torquato Neto, através da afirmação de uma individualidade, por
mais imperfeita e dissonante que soe.
Em prol da estabilidade social, ou seja, para que não surjam
desníveis entre os indivíduos, o Estado proclama uma lei que...
proíbe Shakespeare! Que bane Beethoven! Que lança a filosofia na
lata de lixo da História! De agora em diante, só se ensinará nas
escolas, e só se doutrinará na mídia, sobre assuntos que dizem
diretamente respeito à utopia da Estabilidade! Tudo será dito e
tudo será feito em nome desta estabilização... "...não se
podia permitir que pessoas de casta inferior desperdiçassem o tempo
da Comunidade com livros e que havia sempre o perigo de lerem coisas
que provocassem o indesejável descondicionamento de algum dos seus
reflexos." (p. 55)
O condicionamento neo-pavloviano, os ovos bokanovizados, a
hipnopedia, a ração diária de soma, a garantia de deleites
sensórios no Cinema Sensível, tudo são torrões de açúcar
dados pelo Estado para que cada casta sinta-se feliz com o status
quo que lhe foi... predestinado.
"A flor do campo e as paisagens têm um grave defeito: são gratuitas. O amor à natureza não estimula a atividade de nenhuma fábrica. Decidiu-se que era preciso aboli-lo, pelo menos nas classes baixas: abolir o amor à natureza..." (p. 56)
No que diz respeito à amor e sexualidade, o que vigora é o credo: "Cada um pertence a todos..." Esta é a doutrina enfiada na
mente de todas as crianças, repetida milhares de vezes nos ouvidos
das mentes hipnotizadas dos fedelhos, como se fosse a verdade
absoluta e última sobre a afetividade e a sexualidade humanas:
"ninguém é dono de ninguém!"
Huxley problematiza (e isso umas três décadas antes do Movimento
Hippie começar a despontar!) a questão do amor
livre. Brave New World contêm a descrição de baladas
daquelas no Mundo do Futuro: regadas à embriaguez ocasionado
pelo soma, que talvez não seja lá muito diferente daquela
que o ecstasy ocasiona aos ravers de hoje em dia, estas
baladas são orgias de pisoteação do dogma destronado, pisoteado e
posto fora-de-cartaz do... casamento monogâmico. Esta
instituição social... desapareceu por completo deste
Admirável Mundo Novo onde as crianças não nascem mais de
uma trepada entre seu pai e sua mãe, mas sim enfrascadas em
provetas, tubos de ensaio, rolando nos trilhos de ferro de uma
linha-de-montagem... Huxley e seu pesadelo sinistro!...
" - Felizes jovens! - disse o Administrador. - Nenhum trabalho foi poupado para lhes tornar a vida emocionalmente fácil, para os preservar, tanto quanto possível, até mesmo de ter emoções." (pg. 85)
Esse "descartismo" afetivo, para falar como Marina Colasanti, é análogo ao descartismo do nosso tão conhecido consumismo (que, dada à quantidade gigantesca de LIXO que produz podia ser chamada de lixismo). Muitos dos males que hoje são presenças prementes em nossa realidade, como a obsolescência programada, já eram prefigurados por Huxley nesta sociedade que imaginou como descartando sem fim, jogando meias no lixo ao primeiro desfiado, condicionada a seguir como preceito-de-vida que "mais vale dar fim que consertar" (95).
"Morte às emoções, pois!" - decretam os apologistas desta utopia. Pois nada desestabiliza mais uma sociedade humana dos que... as paixões destas criaturas passionais que somos. Mas não são necessariamente assim inquietas as forças vitais, não é essencialmente móvel o élan que nos anima? E os utopistas sonham com um coração em descanso. Com uma paz impossível. Que a correnteza não mais nos arrastasse, que paixões não mais nos inundassem, que tudo quedasse... estável e sereno. Sem correria nem esforço, sem insatisfação nem desejo. "No alarms and no surprises", como canta Thom Yorke. Um coletivo em Nirvana.
"Morte às emoções, pois!" - decretam os apologistas desta utopia. Pois nada desestabiliza mais uma sociedade humana dos que... as paixões destas criaturas passionais que somos. Mas não são necessariamente assim inquietas as forças vitais, não é essencialmente móvel o élan que nos anima? E os utopistas sonham com um coração em descanso. Com uma paz impossível. Que a correnteza não mais nos arrastasse, que paixões não mais nos inundassem, que tudo quedasse... estável e sereno. Sem correria nem esforço, sem insatisfação nem desejo. "No alarms and no surprises", como canta Thom Yorke. Um coletivo em Nirvana.
Em prol dessa "estabilização", criou-se este monstro. Talvez o mais triste na condição existencial dos Alfas, Betas, Deltas, Gamas e
Ípsilons de Huxley é que nenhum deles "podia ter idéias
verdadeiramente singulares". Seus cérebros foram cuidadosamente
construídos e programados no sentido da obediência estrita a
regras, padrões de comportamento, fés inquestionadas. E se há algo
de heróico em Bernard Marx e seu amigo Helmholtz, está no fato de
que eles "recusavam-se a abandonar o direito de criticar essa
ordem" (p. 246).
Como atingir esta beatitude política que a Utopia encerra em sua
imagem idealizada? Doutrinação ideológica, desde o berço;
condicionamento severo de condutas; muita disciplina social e muito
controle; eis aí os caminhos para a concretização do estado
utópico! Que cidadão ousará discordar da veracidade absoluta de um
slogan que lhe foi martelado na consciência 62 milhões de
vezes? Um tal papaguear ideológico é capaz de reduzir um cérebro
mirim a uma papa de imbecilidade. Brave New World é o retrato
de uma sociedade de submissos imbecis que sorriem tolamente dentro de
uma sociedade de castas altamente injusta e hierarquizada - e que não
se revoluciona pois todo mundo está tão dopado e reduzido
à apatia normopata que não há disposição para a luta, a
mudança, a tentativa de novas vias.
Aqueles que buscam trilhar novas vias, ou que são arrastados, a despeito de si mesmos, para caminhos interditos e conclusões proibidas, são tratadas pelos Poderes Reinantes como perigosos párias que merecem ser mandados para uma ilha na Islândia... O stalinismo exilando oponentes políticos para a Sibéria é uma exemplo histórico suficiente para mostrar o quanto Huxley, em sua obra de ficção científica, teve refinadíssima percepção da realidade histórica (inclusive em seus desdobramentos futuros)! Talvez por isso Admirável Mundo Novo seja uma obra literária à qual tão bem cabe o adjetivo honroso de visionária.
"Quanto ao objetivo ideal do esforço humano existente em nossa civilização, há cerca de trinta séculos tem havido uma concordância geral. Desde Isaías até Karl Marx, as vozes dos profetas têm sido uníssonas. Na Idade de Ouro pela qual anelavam, haveria liberdade, paz, justiça e amor fraterno. “Nação não erguerá espada contra nação”; “o livre progresso de cada um conduzirá ao livre progresso de todos”; “o mundo estará cheia da sabedoria do Senhor, como as águas enchem os oceanos”.
Com referência ao objetivo, repito, tem havido por longo tempo um acordo geral completo. O mesmo já não se pode dizer quanto aos caminhos a serem seguidos para atingir tal obetivo. Aqui, a unanimidade e a certeza cedem lugar à maior confusão, ao impacto das opiniões contraditórias dogmaticamente mantidas e manifestadas com violência e fanatismo.
Ao invés de avançar em direção ao objetivo ideal, a maioria dos povos do mundo está rapidamente dele se desviando. […] Um outro doloroso e significativo sintoma é a calma com que o público do século 20 aceita certos relatos por escrito e até mesmo fotos e filmes sobre massacres e atrocidades. Pode-se alegar, como desculpa, que durante os últimos 20 anos as pessoas ficaram tão saturadas de horrores, que estes já não excitam piedade pelas suas vítimas ou indignação contra os que os executam. Permanece, porém, o fato da indiferença: e como ninguém se incomoda quanto aos horrores, mais horrores são perpetrados.
Intimamente associada à regressão do gênero humano no campo da caridade, está o declínio da consideração do homem pela verdade. Em nenhum período da história do mundo a mentira organizada tem sido praticada tão desavergonhadamente ou, graças à moderna tecnologia, tão eficientemente ou em tão vasta escala…”
ALDOUS HUXLEYEnds And Means
2 comentários:
O ponto realmente visionário dessa obra é que se trata de uma utopia do Mercado e seus mecanismos. Uma coisa que fica clara nessa realidade é a mecanização da vida. Todas as pessoas são reduzidas a peças de um grande mecanismo incessante. Os indivíduos só existem em função de suas representações econômicas, produzir e consumir e produzir e consumir. Homens e mulheres são também produtos com data de validade. E o único motivo de existirem é manter o Mercado em seu ciclo perpétuo e inalterável.
Verdade, Cristiano. A engenharia genética possibilitou que a obsolescência planejada atingisse até a "fabricação de pessoas": as castas mais baixas já saem dos laboratórios com prazo de validade determinado e condicionadas a adorar sua submissão às engrenagens de produção...
"A flor do campo e as paisagens têm um grave defeito: são gratuitas. O amor à natureza não estimula a atividade de nenhuma fábrica. Decidiu-se que era preciso aboli-lo, pelo menos nas classes baixas: abolir o amor à natureza..."
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