"Um grupo de porcos-espinho ia perambulando num dia frio de inverno. Para não congelar, os animais chegavam mais perto uns dos outros. Mas, no momento em que ficavam suficientemente próximos para se aquecer, começavam a se espetar com seus espinhos. Para fazer cessar a dor, dispersavam-se, perdiam o benefício do convívio próximo e recomeçavam a tremer. Isso os levava a buscar novamente a companhia uns dos outros, e o ciclo se repetia, em sua luta para encontrar uma distância confortável entre o emaranhamento e o enregelamento" - Deborah Anna Luepnitz em Os Porcos Espinhos de Schopenhauer
SAUDADES DOS TEMPOS DE PIPA
No bondinho de Santa Tereza, um tímido fanfarrão improvisa uma festa para a deslumbrante donzela a seu lado: oferece bombons e fitas vermelhas, saca do coldre seus brinquedos e seu nariz de palhaço, brinca de cheerleader ; mas nada parece retirar a moça de sua pétrea impassibilidade.
O cenário que circunda este casal de estranhos que se trombam no bonde é bem diferente das latas-de- sardinha que são os busões lotados de nossas metrópoles, é bem verdade. Remete a algo mais retrô, a tempos idos onde a pressa era menor e os sorrisos mais demorados. Ainda não éramos os alucinados frenéticos de hoje em dia, esses speed-freaks que se deixaram convencer por calhordas capitalistas de que “tempo é dinheiro”. Emana das imagens de “Tempo de Pipa” a saudade de tempos onde os céus ainda eram coloridos com balões e papagaios ao invés de poluição, arranha-céus e nuvens negras de chuva ácida.
Com suas mais de 150.000 visualizações no YouTube, o primeiro video-clipe do carioca Cícero já virou um novo fenômeno do hype digital (embora não tão colossal quanto a Banda Mais Bonita da Cidade). Nele, Cícero parece querer relembrar-nos de uma ternura cotidiana cada vez mais rara e que corre o risco de ser perdida em nossa modernidade assassina-de-auras e tão repleta de estouros de violência – que têm como exemplos cariocas recentes o Ônibus 174 e o tiroteio de Realengo. “Como amar em tempos de cólera?” - a enigmas assim, me parece, a música de Cícero tateia em busca de respostas.
No clipe, a mulher desejada mostra-se um tanto inacessível às cabriolas e aos xavecos deste Pierrot sedutor. Ele parece encarnar o mote los-hermânico “deixa eu brincar de ser feliz, deixa eu pintar o meu nariz...”. “Tempo de Pipa”, que já no título traz um sabor de nostalgia de infância, uma saudade de balões coloridos e algodão-doce, é um dos clipes mais singelos da música brasileira recente. Mas a melancolia que à melodia se mistura sugere um intrasponível abismo que se abrisse aquelas duas pessoas, sentadas lado a lado no bonde, e como se o clipe fosse a crônica das tentativas de construir uma ponte que conduza a “viver sem escolta”, para usar uma expressão de “Vagalumes Cegos”.
Cansado de não encontrar calor ou aplauso de sua pétrea musa, Cícero desce do bonde, como que resignado à frieza das relações humanas no cinza das megalópoles. Mas quando se vai, ela enfim abre um sorriso sem testemunhas, em tardia florescência de grata alegria. É um the end que não chega a ser feliz, mas que carrega muita beleza e nos faz pensar que, de fato, das curvas do corpo humano, o sorriso é a mais bela.
OS PORCOS-ESPINHO DE SCHOPENHAUER
"A solidão é mais uma questão da sociedade hoje em dia do que uma característica de personalidade", disse Cícero em entrevista. "Todo mundo está está se relacionando com essa coisa de viver numa bolha, de sentir falta de uma comunicação sincera. Não é uma coisa que só eu sinto. Todo mundo sente."
É o que nossos melhores psicanalistas têm frisado insistentemente nos últimos anos: O Tempo e o Cão, de Maria Rita Kehl, e Crônicas do Individualismo Cotidiano, de Contardo Calligaris, são duas notáveis obras a dissecar o isolamento social causado pelas ânsias individualistas de nossas sociedades que, infelizmente, incorporaram até o tutano dos ossos o credo neoliberal da competição e da rivalidade e pretenderam enterrar a ideia, tida por alguns como caduca e demodê, de comunitarismo e fraternidade.
A epidemia de depressão e a explosão no consumo de Prozacs é só mais uma evidência das solidões que o capitalismo vai semeando por seu caminho. Se Criolo descreve São Paulo como um labirinto místico, com “bares cheios de almas tão vazias”, onde “a ganância grita e a vaidade excita”, Cícero pinta, lá do Rio de Janeiro, um retrato complementar sobre este “rodopiar em busca do que é belo e vulgar” e sobre o “céu engarrafado” (às vezes até nos esquecemos que existem estrelas, tamanhos os obstáculos urbanos ao nosso olhar...).
Canções de Apartamento, porém, está longe de poder ser rotulado como uma obra-de-arte deprês, negativista, ideal para quem pretende cortar os pulsos; pelo contrário, carrega antídotos poéticos e belezas abundantes que procuram remediar os males desta condição de desconexão que muitos sentem nas grandes cidades. Em uma das dúzias de vezes em que escutei o álbum na íntegra, relembrei de uma das melhores cenas de Edifício Master, do mestre Eduardo Coutinho, quando ele entrevista a Daniela, moradora um tanto reclusa e anti-social do apartamento-formigueiro em Copacabana.
De olhos baixos diante das câmeras, Daniela vai se desvelando diante de Coutinho como alguém que sofre de “sociofobia”, de stress diante das aglomerações caóticas nas ruas estreitas em que os humanos, ao invés de interagirem ou se conectarem, põe em prática verbos mais broncos como “se trombar” e “se atropelar”. “Não sei se são pessoas demais ou calçadas muito estreitas – ou se é uma fusão desagradável dos dois elementos...”.
Entrevistas que li de Cícero aponta que ele preocupa-se bastante com questões do tipo e que sua obra procura tematizar esta condição psico-social que eu chamaria de “síndrome alone-together” - a sensação de anomia ou de isolamento em meio à muvuca; a solidão no meio da multidão. Ao Scream & Yell, Cícero comentou:
“comecei a ver que a solidão é muito mais um “mal do século” do que uma característica da minha personalidade. São milhares de pessoas sozinhas… juntas, sabe? E esse foi o mote do Canções de Apartamento. […] Estão todos sozinhos. E isso gera uma paranóia que eu acho que é o grande potencial destrutivo dessa nossa sociedade. As pessoas se relacionam até certo ponto, mas dali pra dentro é solidão. E isso é a semente da loucura. “João e o Pé de Feijão” é uma música que fala da mais sincera forma de solidão que eu senti ao morar longe pra cacete, sabe? E “Vagalumes Cegos” fala da forma mais sincera de se combater isso, que eu acredito, que é quebrar com essa paranóia, com essa pressa, com essa muvuca, não comprar esse meio de vida e ir fazer o básico...”
A ÉTICA DO FAÇA-VOCÊ-MESMO NA ERA CIBERCULTURAL
cícero - "laiá laiá" [click para ouvir]
Como foi amplamente comentado em quase tudo que se escreveu sobre Canções de Apartamento, este álbum é fruto da solidão criativa de um jovem carioca de 25 anos de idade que resolveu reavivar a ética do-it-yourself – aquela mesmo que já motivou tantas bandas a arregaçarem as mangas ao invés de aguardar as graças de cima. Sinal de que há o potencial para que a Internet, através da disseminação das criações através das redes sociais, torne-se realmente o “novo rádio”. Multiplicam-se os artistas que atingem um sucesso considerável junto a um público que não precisa possuir o CD físico para conhecer todas as músicas, e que por vezes acaba por investir no artista, comprando ingressos de shows ou camisetas, por exemplo, numa recusa prática da tese de que o MP3 transformará artistas e gravadoras em mendigos. Ao invés de conduzir à bancarrota geral, como temem os nóias, o MP3 está reconfigurando e transformando o cenário musical a ponto de abrir horizontes de imensa potencialidade.
A importância de Cícero neste alvorecer de década está na inspiração que ele pode lançar sobre uma multidão de outros jovens compositores(as) que hoje vivem em anomia e silêncio em milhões de “apartamentos-bolhas” deste país-continente. A atitude de gravar um álbum em casa remete àquela galera do rock independente americano, como o Guided By Voices ou o Magnetic Fields, que sacramentou o low-fi como uma espécie de gênero autônomo, ou seja, mais como uma estética escolhida de forma voluntária do que algo a que se adere por causa de meras limitações técnicas. Já a sonoridade folk remete ao que vêm fazendo, nos últimos anos, nomes como Devendra Banhart, Bon Iver, Beirut ou Fleet Foxes.
Mas Cícero parece, sobretudo, mais um rebento do que poderíamos chamar de “los-hermanização” da música popular brasileira. Cada vez se torna mais explícito o quanto os Los Hermanos foram, na década passada, a mais influente das bandas, impulsionando o nascimento de grupos como o Apanhador Só, Do Amor, Graveola e o Lixo Polifônico e Volver. Grande parte das canções de Cícero também remetem àquelas belas e doloridas canções de Camelo que preenchem Quatro (“Dois Barcos” e “Pois É”), por exemplo, e à poesia amarantina que se espraia por pérolas como “O Velho e o Moço” e “Paquetá”. A sonoridade de Canções de Apartamento, aliás, combina muito bem com aquela dos dois álbuns solo do “hermano”, com quem Cícero têm dividido o palco em shows elogiados como aquela no Circo Voador.
Na coletânea da Musicoteca que presta tributo aos Los Hermanos,
Cícero canta "Conversa de Botas Batidas"
Cícero canta "Conversa de Botas Batidas"
Recentemente, Cícero esteve mais uma vez aqui em Goiânia, num excelente evento do Vacas Magras, e pude assisti-lo ao vivo pela primeira vez. A beleza maior do show no Diablo Pub esteve na experiência de estar diante de um jovem cantor e compositor, ainda um tanto tímido e inseguro, mas que arrisca-se a expor sentimentos íntimos diante de desconhecidos predispostos a emprestar-lhe o ouvido e a atenção. Foi um show low-key, sem arrebatamentos ou pirotecnias, mas que me agradou bastante, especialmente pois Cícero parece ter conseguido compor canções extremamente pessoais, em que sentimentos autênticos estão envolvidos, mas que não deixam de possuir um valor de comentário social, um valor de crônica do zeitgeist e, sobretudo, um valor de re-conexão humana através da música.
Canções de Apartamento, um dos álbuns brasileiros mais importantes desta jovem década, plantou uma semente promissora que tende a desabrochar nos campos férteis de muitos outros anônimos que hão de, no futuro, usar seus apertamentos e suas solidões como trampolim para uma expressão-conexão que equivale a uma criação-de-pontes. Canções compostas na solidão de um apartamento ganharam o mundo, tocaram milhares e construíram laços afetivos múltiplos, muitos deles bem mais promissores, artisticamente, que os encontrões e os solipsismos de nossa cotidiana urbanidade.
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