quarta-feira, 2 de junho de 2010

:: especial BANANADA... parte final ::


"Exaltar a era dos festivais — onde surgiram grandes nomes da MPB como Caetano Veloso e Chico Buarque — é um argumento clássico dos saudosistas. Bem, agora eles não têm mais do que sentir saudade: a era dos festivais está de volta. Nunca houve tantos festivais de música popular no Brasil, nem mesmo no tempo em que Nara Leão usava saia acima do joelho e Sérgio Ricardo atirava o violão na plateia. Em geral realizados em capitais brasileiras fora do eixo Rio-São Paulo, pelo menos 38 são vinculados à Abrafin, Associação Brasileira de Festivais Independentes (sim, existe até uma entidade que reúne dados sobre o assunto). De acordo com a Abrafin, em 2008 cerca de 800 artistas se apresentaram em eventos como o Bananada, o Rec-Beat, em Recife, e o Calango, em Cuiabá. Estima-se que tenham reunido, ao todo, um público da ordem de 250 mil pessoas.

No essencial, os festivais do século 21 têm a mesma função dos realizados na década de 1960: revelar novos talentos. No restante, e a começar pelo fato de que não são competitivos, são completamente diferentes. Essas diferenças estão ligadas às mudanças que o mundo da música experimentou nos últimos anos. A década de 60 do século passado foi o período em que a televisão se consolidou como principal meio de divulgação de música popular, superando o rádio. Os festivais eram promovidos por emissoras como a Tupi e a Excelsior. Quando apareciam na televisão, artistas como Caetano Veloso e Chico Buarque passavam a fazer parte de uma espécie de mainstream da música e, assim, conseguiam contratos com grandes gravadoras. Hoje o conceito de mainstream não existe mais. A internet vem substituindo o rádio e a televisão como principal meio de divulgação de música. As gravadoras enfrentam dificuldades financeiras, e os artistas, novos ou não, sobrevivem sobretudo de shows. É justamente esta uma das principais funções dos novos festivais: ver quem se sai bem no teste do palco."
- JOSÉ FLÁVIO JR, Revista BRAVO!, Maio de 2009

:: FAÇAMOS JUNTOS!  ::

Uma das coisas mais impressionantes que venho notando, conforme vou conhecendo mais e mais a cultura de Goiânia, tendo marcado presença no último Bananada e Goiânia Noise, sem falar em outros shows esporádicos nos pubs da cidade, é o quanto a “cena” por ali é forte. Não sei se "cena" é palavra mais adequada para descrever o troço, mas é aquela que foi consagrada pelo uso --- tanto que falamos hoje em “cena de Seatlle na era grunge”, “cena de Manchester na época dos Stone Roses”, “cena de Brasília no rock brazuca dos anos 80” ou “cena de Recife quando estourou o manguebeat”, e entendemos mais ou menos bem o que queremos dizer...

“Cena musical”, me parece, é um conceito que descreve o “complexo” de eventos e acontecimentos relacionados à música que ocorrem em sincronia e de modo simultâneo em uma certa cidade, num certo período, incluindo aí não só uma profusão incomum de bandas e artistas, mas de gravadoras e selos, fanzines e blogs, pubs e festivais, cartazes e panfletos, articulados de modo que a cooperação entre estas partes ocorre num grau bem superior ao comum. Pois uma cena é essencialmente uma questão de comunicação --- entre pessoas, artistas, bandas, empresas, jornais, instituições, ativistas... em suma: pessoas em sinergia. Uma cena forte é uma cena em que a comunicação é intensa, a troca de idéias é constante, o “agito” não cessa, de modo que qualquer um sinta, sem dúvida, que há uma “efervescência cultural” rolando.

Não é a quantidade de bandas tocando que constrói uma cena. Qualquer metrópole tem trocentas bandinhas de garagem, o que não impede uma hierarquia entre a “qualidade” das respectivas cenas. São Paulo e Rio De Janeiro, apesar de seu gigantismo e importância econômica, não possuem nada que se assemelhe a uma "cena" que seja capitaneada por um grande festival de rock independente como um Abril Pro Rock ou Rec Beat (Recife), um Goiânia Noise ou um Bananada (Goiânia) , um Casarão (Porto Velho), um MADA (Natal), um Calango (Cuiabá) ou um Porão do Rock (DF). A Nova Era dos Festivais, como aponta o Zé Flávio Jr., se desenrola "fora do eixo" Rio-São Paulo.

É importante frisar que estes dois festivais que ocorrem anualmente em Goiânia, cidade que já foi apelidada pelo Jornal O Globo como "a nova capital do rock", já se tornaram instituições sólidas, que ocorrem todos-os-anos com uma certeza e uma pontualidade digna de um ritual religioso. O Bananada comemorou em 2010 seu 12º aniversário, e o Noise irá comemorar seu 16º neste ano, o que é um feito pra lá de louvável para um festival de rock independente neste país. "15 anos não são 15 dias". Chegar à "adolescência" (a mais rock and roll das idades!) é um prodígio num país que vê tantos recém-nascidos morrendo no nascedouro (como ocorreu com o Groselha Fuzz, no interior de São Paulo, evento muito bacana que rolou anos atrás como uma espécie de Woodstock ribeirão-pretense, mas que naufragou logo no primeiro dia, tendo cancelado o seu segundo dia e sua segunda edição).

Hígor Coutinho, blogueiro forte na "cena", comenta que

"O tempo também garantiu ao Noise, ano a ano, o título de maior festival independente do Brasil. Mas o “maior” da honraria diz respeito menos ao seu tamanho que à sua importância. Em dimensões físicas e quantitativas, o Noise não é o maior festival independente do País, mas é seguramente o mais influente. E talvez sua posição estratégica, tanto no calendário quanto no mapa, tenha favorecido o destaque: Goiânia se localiza no epicentro do território brasileiro, o que facilita o deslocamento de visitantes e bandas vindos de qualquer outra grande cidade. E o fato de ser o último grande festival do ano faz do Noise um grande ponto de encontro de produtores, bandas e jornalistas, que interagem tanto numa espécie de balanço anual das realizações do circuito, quanto nas projeções para o ano seguinte."

Indispensável frisar também o imenso mérito da Monstro Discos neste quadro. Guardadas as devidas proporções, sinto que a Monstro tem feito por Goiânia aquilo que a Sub Pop fez por Seattle. E foi fascinante pra mim conhecer pessoalmente o headquarter monstruoso, lá no número 1.000 da Avenida Circular, notando que de dentro duma salinha apertada, minúscula, quase uma kitnet, repleta de Cds, vinis, pôsteres e camisetas (smells like teen spitit?), essa galera têm feito tanto para botar combustível novo no rock'n'roll nacional.

E que diferença entre o tamanhico do escritório da Monstro e a literal monstruosidade dos dois festivais anuais idealizados e concretizados pelos caras! O Bananada (no 1o semestre) e o Goiânia Noise (no 2o) não são somente 5 dias de música, em maio e em outubro, onde dúzias de bandas se reúnem numa grande festa. São algo que “articula” toda a cena de modo a deixar O ANO INTEIRO com cara de que “algo tá acontecendo”.

Isto quer dizer o seguinte no cotidiano das bandas locais: todo mundo sabe que, com certeza, todo ano tem Bananada e Noise, e isto é um baita dum incentivo pra tocar, ensaiar, compor, se mexer. Uma banda iniciante de Goiânia já nasce com a perspectiva muito instigante de ser escalada pro line-up do próximo ano, já que a organização sempre reserva um pequeno espaço para as “bandas mirins” --- caso do Ultra Vespa, do Coerência, do Space Monkeys e do !Oye!, que tiveram 20 minutos cada no Bananada 2010.

Mas Dizer que a “cena local” é forte pode levar à idéia enganadora de que se trata de uma cidade auto-centrada, “fechada” em si mesma, quando o oposto é o verdadeiro: as portas de Goiânia estão abertíssimas para quem vem de fora. O Bananada e o Noise, apesar de recheados de atrações da região (incluindo aí Brasília, Anápolis e outras...), representam um apanhado geral do que de melhor acontece na cena independente nacional, latino-americana ou mesmo mundial.

O Bananada 2010, por exemplo, contou com bandas de 11 Estados e do Distrito Federal: Paraná (1), Minas Gerais (1), Rio Grande do Norte (1), Sergipe (1), Bahia (1), Ceará (1), Acre (1), Paraíba (2), Brasília (2), São Paulo (3), Rio Grande do Sul (3) e Goiás (27), além de um grupo do Chile, totalizando 45 shows. Já o Noise do ano passado, também recheado de atrações nacionais, contou com bandas do Chile, do Canadá, da Suíça, da Argentina e dos Estados Unidos.

* * * * *

O que temos visto, nos últimos tempos, é uma profusão de festivais espetaculosos e super-produzidos, financiados por grandes multinacionais, especialmente do ramo da telefonia e da internet --- como o TIM Festival, o Claro Que é O Rock, o Motomix e o Planeta Terra. São eventos grandiosos, elitizados, carésimos, centrados em grandes atrações internacionais ou bandas brasileiras que tem contrato assinado com majors. São paquidermes capitalistas que tomaram o lugar dos velhos Free Jazz e Hollywood Rock, que aliás eram bancados pelos propagores-de-câncer da indústria tabagista tão bem satirizados no Obrigado Por Fumar. E estes "mega-eventos" às vezes soam como “duelos de esgrima”, no palco da nossa economia privatizada e dominada por mega-corporações, entre a Tim, a Claro, a Motorola, a Terra, a Campari, dentro outras grandes empresas. Não acho que seria uma tese ingênua dum comunistinha simplório sugerir que são feitos mais em vistas do lucro do que da promoção de uma cultura genuinamente popular.


A lógica vigente no Bananada, no Noise e nesta profusão de festivais de música independentes hoje operantes no país é outra, completamente. Os ingressos, ao invés de custarem 200 reais, o que já “recorta” o público, "tesourando" toda a imensidão de gente abaixo da classe média, custam em média umas 20 pilas/dia. E pensem bem: 20 conto pra ver 15 bandas é uma pechincha supimpa!

Um dos fatores mais pé-no-saco dos grandes festivais são os longos intervalos entre os shows. Lembram da era geológica inteira que decorreu até que os Strokes surgissem depois do Kings of Leon naquele TIM? Ou daquele atraso monumental que fez com que o show do Killers, anos atrás, começasse umas 3 horas depois do horário previsto? E daquele quase insuportável aperto, no meio da muvuca e da suvaquiera, enquanto vocês esperavam aquela trupe de dúzias de roadies e engenheiros de som preparando o palco de acordo com as ultra-pessoais exigências de mega-artistas como Björk e Radiohead?

Sem dúvida que, na maioria dos casos, a treta compensa. Mas o Bananada e o Noise trazem um outro modelo de festival, muito mais curtível e agradável, onde o som ao vivo rola quase sem interrupção num ping-pong muito bem sincronizado entre os dois palcos. No Centro Cultural Martin Cererê, fundado em 1988, os shows ocorrem em dois espaços fechados, de acústica excelente (de modo que a música não se “dispersa” como ocorre em grandes espaços abertos), distantes um do outro uns míseros 50 passos ou 30 segundos de caminhada. Ou seja: são praticamente um do lado do outro.

Os shows são estritamente limitados a 30 minutos de duração, sem exceção. Não adianta a galera pedir bis. Acabou o show, todo mundo vaza rapidinho do teatro; as portas são fechadas e a próxima banda inicia a passagem de som; imediatamente, começa no outro palco um novo show; quando este acabar, o mesmo processo se repete.

Revista Bravo!


Este método é excelente por vários motivos. Primeiro: no Bananada e no Noise não existem aquelas pragas que eu chamaria de “lesmas de grade”. Ninguém consegue ficar grudado lá na frente do palco o tempo todo, feito um centro-avante que só fica na banheira, porque ao fim de cada show a galera é obrigada a circular. Isto também significa que cada show é um novo show: a galera entra junta no espaço, se aloca nele de modo sempre original e diferente em relação ao show anterior e ao posterior, numa excitante e constante “mobilidade” que contraste radicalmente com a “estagnação” que se nota nos grandes “shows de multidão”, onde é tão difícil andar quanto dentro dum busão lotado em Sampa na hora do rush.

Um festival de relevância na cultura não se limita à esfera da música, mas transborda para o domínio do comportamento. A galera, por exemplo, acende béques compridérrimos na frente dos seguranças, que tratam aquilo com a naturalidade de quem vê alguém comendo pamonha. Fica a sensação de que foram instruídos a levar numa boa o consumo de substâncias de expansão da consciência e só ficar de olho para coibir tretas --- que, aliás, se ocorrem, são extremamente raras. Eu mesmo não testemunhei nenhuma, no Noise e no Bananada inteiro, em que vige um clima de brôdágem e de zueira que nada tem a ver com animosidade ou violência. Nos grandes festivais capitalistas, há também uma cisão radical entre artista e público: nenhuma das 50 mil pessoas que estavam lá no About Us assistindo ao Radiohead poderiam acreditar que daria pra “trocar uma idéia” com o Thom Yorke ou o Johnny Greenwood ali no gramadão da Chácara do Jockey. Estamos frente a artistas que andam com guarda-costas armados, em carros blindados, que ficam em camarins inacessíveis, que só conversam com pouquíssimas pessoas da produção e quiçá um outro membro da grande impresa...

Mais uma vez, uma lógica totalmente diferente rola no Bananada e no Noise. Aqui não só não há fronteiras entre público e artistas; os artistas, aliás, são grande parte do público. São bandas prestigiando bandas, bandas aprendendendo com bandas, numa reunião-celebração que desdenha de hierarquias e separações. No começo da noite de sábado, por exemplo, os caras do Black Drawing Chalks, grandes headliners do festival, bebericavam e conversam numa bowa, no meio da galera, fundidos sem frescura no público.

Outro fator de fortalecimento da cena é a capacidade da “galera” de lidar com as diferenças sem rachar-se em panelinhas. Neste quesito, também, vejo o Bananada e o Noise como festivais muito positivos onde os punks, os metaleiros, os indies, os emos, os grunges, os folkies, os hippies, os roqueiros tiozões, dentre outras tribos e etiquetas, all come together. Seria impossível, aliás, que uma festival com 45 bandas conseguisse atingir algo parecido com uma “homogeneidade” musical --- e isso seria mais uma limitação de perspectiva do que uma virtude, creio eu. Muito melhor que seja como é: uma celebração da diversidade (de sons, batuques, melodias, ritmos, sotaques, cores, tribos e visões-de-mundo) que convivem em paz, deixando-se mutuamente se influenciar.

Estes são festivais pra quem leva a Independência a sério. Pra quem não quer comer só aquilo que já foi mastigado e empacotado pelo mainstream.  Pra quem quer fazer acontecer uma cultura que não nasça escravizada pelas grandes corporações. Pra quem não deixa seu gosto ser moldado pela MTV ou pelas FMs movidas a jabá. Pra quem tem fome de novidade e curiosidade para ouvir as bandas que despontam, ainda sem renome ou reputação, mas que nascem, muitas vezes, empolgadas, deslumbradas, cheias de sonhos e planos. Pra quem acredita no do-it-yourself. Ou melhor: no do-it-together, como sugeriu o Fábrico Nobre, do MQN, da Monstro e da Abrafin, em sua matéria para o Nagulha. Vale frisar, ainda, o quanto a cibercultura, com sua troca de dados e idéias de modo descentralizado e sem-censura, tem possibilitado uma discussão e um diálogo entre as diferentes "cenas" brasileiras inimaginável antes da internet --- vejam, por exemplo, os imensos debates-por-comments no Scream &  Yell e n'O Inimigo.

Pra terminar, queria sugerir um paralelo instigante desta "Nova Era dos Festivais" na música brasileira com as sugestões do "baderneiro" e "crítico cultural" Hakim Bey. Pois nem me parece absurdo dizer que aquilo que se cria durante um Noise ou Bananada é uma daquelas Zonas Autônomas Temporárias de que fala o Bey: espaços de florescimento cultural e libertação comportamental, provisórios mas cíclicos, onde as pessoas ganham voz e uma possibilidade de agirem longe das repressões costumeiras. 

Hakim Bey chegou a pensar na "TAZ como festival" no capítulo 3 - "A Psicotopologia da Vida Cotidiana", onde destaca o valor de um acontecimento coletivo
"no qual todas as estruturas de autoridade se dissolvem no convívio e na celebração", com a "emergência de uma cultura festiva distanciada ou mesmo escondida dos pretensos gerentes do nosso lazer. 'Lute pelo direito de festejar!', hino do grupo Beastie Boys, não é, na verdade, uma paródia da luta radical, mas uma nova manifestação dessa luta, apropriada para uma época que oferece a TV e o telefone como maneiras de 'alcançar e tocar' outros seres humanos, maneiras de 'estar junto'! (...) Seja ela apenas para poucos amigos, como é o caso de um jantar, ou para milhares de pessoas, como um carnaval de rua, a festa é sempre 'aberta' porque não é 'ordenada'. A espontaneidade é crucial.
A essência da festa: cara a cara, um grupo de seres humanos coloca seus esfoços em sinergia para realizar desejos mútuos, seja por boa comida e alegria, por dança, conversa, pelas artes da vida. Talvez até mesmo por prazer erótico ou para criar uma obra de arte comunal, ou para alcançar o arroubamento do êxtase. Em suma, uma 'união de únicos' (como coloca Stirner)..." (Zona Autônoma Temporária, pg. 25-27, editora Conrad).

Éissae!

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