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Biography by Richie Unterberger (@ AMG All Music Guide)
So much has been said and written about the Beatles -- and their story is so mythic in its sweep -- that it's difficult to summarize their career without restating clichés that have already been digested by tens of millions of rock fans. To start with the obvious, they were the greatest and most influential act of the rock era, and introduced more innovations into popular music than any other rock band of the 20th century. Moreover, they were among the few artists of any discipline that were simultaneously the best at what they did and the most popular at what they did. Relentlessly imaginative and experimental, the Beatles grabbed a hold of the international mass consciousness in 1964 and never let go for the next six years, always staying ahead of the pack in terms of creativity but never losing their ability to communicate their increasingly sophisticated ideas to a mass audience. Their supremacy as rock icons remains unchallenged to this day, decades after their breakup in 1970.
It's hard to convey the scope of the Beatles' achievements in a mere paragraph or two. They synthesized all that was good about early rock & roll, and changed it into something original and even more exciting. They established the prototype for the self-contained rock group that wrote and performed its own material. As composers, their craft and melodic inventiveness were second to none, and key to the evolution of rock from its blues/R&B-based forms into a style that was far more eclectic, but equally visceral. As singers, both John Lennon and Paul McCartney were among the best and most expressive vocalists in rock; the group's harmonies were intricate and exhilarating. As performers, they were (at least until touring had ground them down) exciting and photogenic; when they retreated into the studio, they were instrumental in pioneering advanced techniques and multi-layered arrangements. They were also the first British rock group to achieve worldwide prominence, launching a British Invasion that made rock truly an international phenomenon.
More than any other top group, the Beatles' success was very much a case of the whole being greater than the sum of its parts. Their phenomenal cohesion was due in large degree to most of the group having known each other and played together in Liverpool for about five years before they began to have hit records..." - LEIA A BIOGRAFIA COMPLETA
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
* * * * *
BERTOLD BRECHT (1898-1956)
- Coletânea de poemas -
Não desperdicem um só pensamento
Com o que não pode mudar!
Não levantem um dedo
Para o que não pode ser melhorado!
Com o que não pode ser salvo
Não vertam uma lágrima! Mas
O que existe distribuam aos famintos
Façam realizar-se o possível e esmaguem
Esmaguem o patife egoísta que lhes atrapalha os movimentos
Quando retiram do poço seu irmão,
com as cordas que existem em abundância.
Não desperdicem um só pensamento com o que não muda!
Mas retirem toda a humanidade sofredora do poço
Com as cordas que existem em abundância!
* * * * * *
PERGUNTAS DE UM TRABALHADOR QUE LÊ
Quem construiu a Tebas de sete portas? Nos livros estão nomes de reis. Arrastaram eles os blocos de pedra? E a Babilônia várias vezes destruída -
Quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casas da Lima dourada moravam os construtores? Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China ficou pronta? A grande Roma está cheia de arcos do triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem Triunfaram os Césares? A decantada Bizâncio Tinha somente palácios para seus habitantes? Mesmo na lendária Atlântida Os que se afogavam gritaram por seus escravos Na noite em que o mar os tragou.
O jovem Alexandre conquistou a Índia. Sozinho? César bateu os gauleses. Não levava sequer um cozinheiro? Filipe da Espanha chorou, quando sua Armada Naufragou. Ninguém mais chorou? Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos. Quem venceu além dele?
Cada página uma vitória. Quem cozinhava o banquete? A cada dez anos um grande homem. Quem pagava a conta?
Tantas histórias. Tantas questões.
* * * * * *
O Pão do Povo
A justiça é o pão do povo.
Às vezes bastante, às vezes pouca.
Às vezes de gosto bom, às vezes de gosto ruim.
Quando o pão é pouco, há fome.
Quando o pão é ruim, há descontentamento.
Fora com a justiça ruim!
Cozida sem amor, amassada sem saber!
A justiça sem sabor, cuja casca é cinzenta!
A justiça de ontem, que chega tarde demais!
Quando o pão é bom e bastante
O resto da refeição pode ser perdoado.
Não pode haver logo tudo em abundância.
Alimentado do pão da justiça
Pode ser feito o trabalho
De que resulta a abundância.
Como é necessário o pão diário
É necessária a justiça diária.
Sim, mesmo várias vezes ao dia.
De manhã, à noite, no trabalho, no prazer.
No trabalho que é prazer.
Nos tempos duros e nos felizes.
O povo necessita do pão diário
Da justiça, bastante e saudável.
Sendo o pão da justiça tão importante
Quem, amigos, deve prepará-lo?
Quem prepara o outro pão?
Assim como o outro pão
Deve o pão da justiça
Ser preparado pelo povo.
Bastante, saudável, diário.
* * * * *
A esperança do mundo
1
Seria a opressão tão antiga quanto o musgo dos lagos? Não se pode evitar o musgo dos lagos. Seria tudo o que vejo natural, e estaria eu doente, ao desejar remover o irremovível? Li canções dos egípcios, dos homens que construíram as pirâmides. Queixavam-se do seu fardo e perguntavam quando terminaria a opressão. Isto há quatro mil anos. A opressão é talvez como o musgo, inevitável.
2
Se uma criança surge diante de um carro, puxam-na para uma calçada. Não o homem bom, a quem erguem monumentos, faz isso. Qualquer um retira a criança da frente do carro. Mas aqui muitos estão sob o carro, e muitos passam e nada fazem. Seria porque são tantos os que sofrem? Não se deve mais ajudá-los, por serem tantos? Ajudam-nos menos. Também os bons passam, e continuam sendo tão bons como eram antes de passarem.
3
Quanto mais numerosos os que sofrem, mais naturais parecem seus sofrimentos, portanto. Quem deseja impedir que se molhem os peixes do mar? E os sofredores mesmos partilham dessa dureza contra si e deixam que lhes falte bondade entre si. É terrível que o homem se resigne tão facilmente com o existente, não só com as dores alheias, mas também com as suas próprias. Todos os que meditaram sobre o mau estado das coisas recusam-se a apelar à compaixão de uns por outros. Mas a compaixão dos oprimidos pelos oprimidos é indispensável. Ela é a esperança do mundo.
"O 'compro, logo existo' e o individualismo possessivo constroem juntos um mundo de pseudo-satisfações estimulante na superfície, mas no fundo vazio. (...) Com cerca de 2 bilhões de pessoas condenadas a viver com menos de 2 dólares por dia, o cruel mundo da cultura consumista capitalista e as fenomenais gratificações obtidas pelos serviços financeiros têm de ser uma piada macabra..." DAVID HARVEY, Neoliberalismo (2008: p. 184)
Livre-mercado, globalização,
individualismo, competitividade, utilitarismo, “precariado”: estes são alguns
dos conceitos-chave na decifração do neoliberalismo, doutrina que se tornou
dominante no Ocidente nas últimas décadas do século XX e é essencial para a
compreensão tanto da história recente quanto dos desafios futuros. Constata-se
que vivemos hoje em um mundo que, povoado por mais de 7 bilhões de humanos,
sofre como nunca com os males da desigualdade social e da concentração de
renda:
"Nossas sociedades capitalistas de mercado são 'paradoxais' por produzirem, ao mesmo tempo, aumento exponencial da riqueza e pauperização de largas camadas da população. Quebrar esse paradoxo é tarefa da política. Apenas um exemplo: enquanto o PIB dos EUA cresceu 36% entre 1973 e 1995, o salário-hora de não executivos (que são a maioria dos empregados) caiu 14%. No ano 2000, o salário real de não executivos nos Estados Unidos retornou ao que era há 50 anos. Dados como estes demonstram que, diante dos modelos liberais, ou seja, sem forte intervenção de políticas estatais de redistribuição, nossas sociedades tendem a entrar em situação de profunda fratura social por desenvolverem uma tendência radical de concentração de riquezas." (SAFATLE, A Esquerda Que Não Teme Dizer Seu Nome, 2012)
O Estado, longe de desaparecer, em muitos casos
torna-se o obediente servidor e lacaio dos interesses do Mercado, impondo as
desregulações que favorecem os interesses das mega-empresas e remetendo à
iniciativa privada quase todas as funções que outrora eram vistas como bens
públicos (saúde, educação, moradia, alimentação...). O Estado neoliberal
torna-se cada vez mais dedicado a tarefas policialescas, repressoras,
militares, enquanto sua “mão esquerda”, para usar a expressão de Bourdieu,
encontra-se atada e anêmica, já que assistimos à invasão generalizada das
privatizações e da lógica do consumo desenfreado e da concorrência selvagem.
"Ainda ousam nos gabar um sistema que remete a organização da vida coletiva às pulsões mais baixas, à ganância, à rivalidade, ao egoísmo mecânico? Querem que elogiemos uma “democracia” em que os dirigentes são impunemente os empregados da apropriação financeira privada que surpreenderiam até mesmo Marx, que há 160 anos já chamava os governos de “fundos de poder do capital”? Querem a todo custo que o cidadão comum “compreenda” que é impossível tapar o buraco da Previdência, mas que eles devem tapar o buraco dos bancos sem contar os bilhões? (…) Ao menor pedido dos pobres, eles reviram os bolsos e respondem há anos que não têm um tostão furado...” (ALAIN BADIOU, A Hipótese Comunista, pg. 57-58)
Vivemos em um mundo onde o poder das
empresas multinacionais atingiu um cume inédito: como informa Jean Ziegler, na
série da TV espanhola Voces Contra La Globalizacion, “as 500 maiores
empresas transcontinentais privadas controlam 52% do Produto Mundial Bruto. A
Exxxon Mobil tem um rendimento maior que o Produto Nacional Bruto da Áustria.
Já o da General Motors supera o PIB da Dinamarca.”
As consequências deste poderio
são gravíssimas quando, por exemplo, empresas injetam milhões de dólares em
apoio a candidaturas de políticos, querendo em troca favores e privilégios.
Além disso, as mega-corporações digladiam-se em marketings cada dia mais
crassos e apelativos em seu afã de garfar consumidores. A figura do consumidor
substitui a do cidadão. O homo economicus é imposto como imagem da
“natureza humana”: seria “natural” esta obsessão auto-interessada de procurar
seu próprio bem econômico. Como provoca Tyler Durden, em Clube da Luta, constrói-se
uma geração que baba frente às vitrines e às Tvs, que só sabe desejar bens de
consumo supérfluos, “working jobs they hate so they can buy shit they don't
need”.
"No início deste milênio, em um planeta abundante de riquezas, uma criança com menos de dez anos morre a cada cinco segundos. De doença ou de fome. (...) Em 2000, a FAO contava 785 milhões de pessoas grave e permanentemente subnutridas. São 854 milhões em 2008 e mais de um bilhão em 2010." (JEAN ZIEGLER, Ódio ao Ocidente, p. 29 e 132)
A
leitura da minuciosa pesquisa realizada por Michel Foucault em Nascimento da
Biopolítica nos dá a impressão de que a doutrina neo-liberal quer nos fazer
crer, com uma colcha de retalhos argumentativa retirada de Adam Smith,
Mandeville, Hayek, Von Mises e Milton Friedmann, dentre outros, que o egoísmo
deslavado e o auto-interesse estreito, se seguidos sem freios nem tréguas pelos
indivíduos, vão gerar mil maravilhas públicas. Curiosa doutrina que afirma ser
o egoísmo e a ganância as fontes da prosperidade e que chega a fazer disso uma
prescrição e um imperativo.
O
Neoliberalismo, que tudo faz em prol do livre-mercado, está longe de levar a
liberdade para aqueles que são excluídos e marginalizados do sistema. A julgar
pelas penitenciárias superlotadas e pelos orçamentos colossais dos aparatos
repressivos e carcerários, o
neoliberalismo impõe o tal do “livre mercado” com base do porrete, da tropa de
Choque e do encarceramento em massa de cidadãos que o sistema marginaliza, segrega e abandona às piores
condições de vida.
Neste
artigo, nossa intenção é refletir sobre o neoliberalismo através de três
perspectivas: 1) uma breve incursão foucaultiana pela história das ideias, na
tentativa de expor, com base em Smith, Mandeville, Franklin, Bentham e outros,
as raízes do neoliberalismo, da ética utilitarista, da doutrina econômica
pró-livre-mercado e da noção de vícios privados, benefícios públicos. 2)
Uma breve reflexão sobre a realidade contemporânea gerada pela implantação do
neo-liberalismo: globalização da economia, concentração de renda, epidemia do
trabalho “precarizado”, individualismo consumista etc. 3) uma análise de um
episódio histórico onde o neo-liberalismo foi imposto à força, o Chile de 1973,
com os devidos paralelos com outras situações onde escancarou-se o elemento
imperialista e autoritário das políticas neo-liberais.
PARTE I - VÍCIOS
PRIVADOS, BENEFÍCIOS PÚBLICOS?
Reflexões sobre os
primórdios do neoliberalismo
a partir de Adam
Smith, Mandeville, B. Franklin e J. Stuart Mill
“...não é por conta da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos obter nosso jantar, mas sim da atenção que eles dedicam ao seu próprio interesse. Nós nos dirigimos não à sua humanidade mas ao seu amor-próprio, e nunca falamos com eles das nossas próprias necessidades mas das suas vantagens.” - ADAM SMITH, Wealth of Nations (Oxford: 1976, pg. 27)
O
economista e filósofo escocês Adam Smith (1723-1790), ao investigar as causas
da Riqueza das Nações, “oferece como resposta uma teoria na qual a
prosperidade nada tem a ver com a virtude moral dos jogadores” (GIANNETTI:
1993, p. 120). Smith faz referência a uma característica que ele supõe ser
universal, inerente à natureza humana, que “vem conosco do útero materno e
nunca nos abandona até que ingressemos no túmulo”: “o esforço natural que cada
homem faz de forma contínua a fim de melhorar sua condição” (SMITH, Wealth
of Nations, p. 341-343). De modo que “Smith transforma o auto-interesse
individual – o desejo de melhorar de vida – no protagonista do enredo que leva
da escassez à opulência na biografia nacional.” (GIANNETTI: 1993, p. 121) A
doutrina em prol do Livre Mercado de Adam Smith alega que
"cada homem, desde que ele não viole as leis da justiça, fica perfeitamente livre para perseguir seu próprio interesse a sua maneira, e colocar sua diligência e seu capital em competição com os de qualquer outro homem. (…) Ele busca apenas seu próprio ganho e nisso ele é, como em muitos outros casos, conduzido por uma mão invisível a promover um fim que não era parte de sua intenção. (…) Pela busca de seu próprio interesse ele com frequência promove o da sociedade mais eficazmente do que quando de fato tenciona promovê-lo." (SMITH: The Wealth of Nations, pgs. 687 e 456)
Esta
doutrina contrapõe-se à tese de Keynes, que recomenda um intervencionismo e
controle estatal constantes, típico do chamado welfare-state, instalado
por Roosevelt nos EUA dos anos 1930, com seu New Deal, na tentativa de
controlar a depressão desencadeada em 1929. O liberalismo à la Adam
Smith sustenta que o melhor para a sociedade é que o “Estado fique desobrigado
do dever de supervisionar a economia”, gerando um “sistema no qual os
indivíduos são livres para tentar satisfazer seus objetivos à luz dos seus
próprios recursos e conhecimentos, sem uma disciplina ou plano imposto de fora
pela autoridade estatal” (Giannetti: p. 109-110). Em suma: a “prosperidade é o
produto de ações individuais independentes do Estado (e até à revelia dele) em
busca de uma vida melhor” (GIANNETTI: p. 123).
Isto
não significa que Adam Smith advogasse em prol da extinção do Estado. O
“exercício da autoridade política é imprescindível (…) para garantir a proteção
de cada membro da comunidade contra a violência e opressão de cada outro
membro” (GIANNETTI: p. 124). Um governo que zele pela justiça prossegue
necessário, alega Smith, já que “a prevalência da injustiça irá causar a total
destruição da sociedade. (…) A justiça, ao contrário, é a viga mestra que
mantém de pé todo o edifício. Se ela for removida, o imenso tecido da sociedade
humana irá num momento se esfacelar em átomos.” (SMITH: Theory of Moral
Sentiments (1759), Oxford, 1976, pgs. 86, 175-6). De modo que o Estado
aparece como limitado à posição de mero árbitro no jogo do livre mercado,
responsável por exigir dos agentes econômicos o fair play:
"Na corrida por riqueza, por honrarias e por promoções, o indivíduo pode correr tão esforçadamente quanto for capaz, esticando cada nervo e cada músculo a fim de ultrapassar todos os seus concorrentes. Mas se ele porventura acotovela ou derruba qualquer um deles, a disposição tolerante dos espectadores termina por completo. Trata-se de uma violação do jogo limpo que eles não podem admitir". (SMITH: ibidem, pg. 83).
Com
sua famosa “Mão Invisível”, Smith fabrica uma espécie de secularização do Deus
protestante, supondo com desenfreado otimismo que haveria “um deus providencial
que habitaria o processo econômico” (Foucault: 2008, p. 379). A busca do
auto-interesse egoísta, sem escrúpulos morais ou freios à competitividade,
geraria benefícios públicos. O vício é o pai da prosperidade. A responsável
pela transmutação miraculosa de vícios privados em benfeitorias públicas seria
esta “Mão Invisível” que “ata os fios de todos esses interesses dispersos”
(Foucault: idem).
Não
são poucos os que olham com desconfiança para o otimismo implicado na suposição
de uma ação benéfica de mãos invisíveis – nos termos de Arendt, “the so-called
liberal concepts of politics (...) such as unlimited competition regulated by a
secret balance which comes misteriously from the sum total of competing
activities...” (ARENDT, The Origins of Totalitarianism, p. 194) Com
sarcasmo, Foucault sintetiza a doutrina:
"Só se pensa no próprio ganho e, afinal, a indústria inteira sai ganhando. (…) Graças a Deus os comerciantes são uns egoístas consumados, e são raros, entre eles, os que se preocupam com o bem geral, porque, quando eles começam a se preocupar com o bem geral, é nesse momento que as coisas começam a não dar certo." (FOUCAULT: 2008, p. 380).
Uma
das representações mais eloquentes da tese “vícios privados, benefícios
públicos” encontra-se em A Fábula das Abelhas, texto satírico
publicado em 1705 por Mandeville, médico holandês radicado na Inglaterra. A
colméia da fábula, segundo Giannetti, é uma “miniatura da sociedade inglesa tal
como a percebia Mandeville”:
Vencedor do Prêmio Jabuti 1994 (Melhor Ensaio)
"A principal característica da colméia era a profunda dissociação entre, de um lado, suas brilhantes realizações práticas e econômicas, e, de outro, o descontentamento ético das abelhas consigo próprias. (…) A pujança e afluência da colméia resultavam de um espetáculo pouco edificante: milhões se esforçando arduamente com o intuito de suprir a vaidade e os apetites lascivos uns dos outros. Ao gastar seus rendimentos, as abelhas se entregavam a um hedonismo insaciável. Eram escravas da volúpia, do exibicionismo e do capricho da moda. (…) O grande sonho de cada abelha individual, não importando a classe a que pertencesse, era encontrar o caminho mais fácil e curto para sobrepujar as demais em fama, poder, riqueza. (…) Tudo lá transcorria sem maiores abalos, até o dia em que um deus impaciente expulsa o vício, a má-fé e a hipocrisia de suas vidas. Em pouco tempo, as abelhas da colméia se descobrem condenadas a uma existência insípida e medíocre, porém virtuosa, no interior de uma árvore oca. (…) Sem guerras não há indústria de armamentos; sem o desejo de ostentar não há produção e comércio de bens de luxo; sem vaidade e inconstância não há indústria da moda..." (GIANNETTI: p. 135-136)
Mandeville
retrata, na primeira parte da fábula, uma colméia de abelhas furiosamente
competitivas. Nrsta colméia, a prosperidade material decorre da selvageria de
suas rivalidades, suas invejas, seus desejos-de-posse. O vício, novamente, é
tido como o pai da prosperidade. Estas abelhas “franklinianas” entendem que
tempo é dinheiro, tal como recomenda Benjamin Franklin, e não querem “perdê-lo”
com considerações éticas ou empreendimentos filantrópicos para o auxílio de
abelhas miseráveis. Acreditam que uma árvore oca, e não uma colméia pujante e
próspera, seria o resultado de uma comunidade de abelhas que se freiam demais
com escrúpulos morais. A ética, para elas, é um entrave na produção do mel.
A
“moral da história” da fábula de Mandeville já começa a se delinear: são os
vícios que produzem o “progresso”, não as virtudes. Mas as abelhas o ignoram:
“não eram apenas aproveitadoras, corruptas e egoístas; também eram míopes e
incapazes de ver que o esplendor econômico da colméia, do qual tanto se
orgulhavam, resultava precisamente de seus vícios e taras” (Giannetti: op cit).
O
“tempo é dinheiro” e a conclamação à multiplicação dos dólares de Benjamin
Franklin não está distante: “Lembra-te que o dinheiro é procriador e fértil. O
dinheiro pode gerar dinheiro, e seus rebentos podem gerar ainda mais... Quem
mata uma porca prenhe destrói sua prole até a milésima geração. Quem estraga
uma moeda de cinco xelins, assassina tuodo o que com ela poderia ser
produzido: pilhas inteiras de libras esterlinas... Lembra-te que – como diz o
ditado – um bom pagador é senhor da bolsa alheia. (…) Jamais retenhas
dinheiro emprestado uma hora a mais do que prometeste, para que tal dissabor
não te feche para sempre a bolsa de teu amigo...” (FRANKLIN: 1736)
Esta
fúria aquisitiva, esta monomania da multiplicação, esse “dinheiro fazendo
dinheiro” visto como um fim-em-si-mesmo, chega às vezes à obscenidade de
reduzir todas as relações humanas ao fator monetário – p. ex. os amigos, longe
de serem apreciados como fonte de companhia e diálogo, passam a não ser mais
que “bolsas”. Todos os indivíduos são concebidos como fundos monetários
ambulantes. Max Weber,referindo-se a Franklin como um dos paradigmas do
“espírito do capitalismo”, escreve:
"Todas as advertências morais de Franklin são de cunho utilitário: a honestidade é útil porque traz crédito, e o mesmo se diga da pontualidade, da presteza, da frugalidade também, e é por isso que são virtudes... Um excesso desnecessário de virtude haveria de parecer, aos olhos de Franklin, um desperdício improdutivo condenável. (…) O ser humano em função do ganho como finalidade da vida, não mais o ganho em função do ser humano como meio destinado a satisfazer suas necessidades materiais: essa inversão da ordem 'natural' das coisas é tão manifestamente e sem reservas o Leitmotiv do capitalismo, quanto é estranha a quem não foi tocado por seu bafo." (WEBER: 2004, p. 45-47)
Um autor como John Stuart Mill “rejeitou a noção de
uma natureza humana fixa e imutável dominada exclusivamente por desejos
egoístas e em oposição a Bentham e Ricardo argumentou que a psicologia moral
dos homens era dotada de uma espantosa maleabilidade e que o auto-interesse
estreito nem sempre prevalecia, uma vez que, para muitos homens, 'motivos como
a consciência ou a obrigação moral haviam sido de fundamental importância'. O
fulcro da posição milliana foi trazer o princípio da 'perfectibilidade humana'
para o centro do palco.” (GIANNETTI: 1993, p. 42)
Mill
critica Bentham por este último considerar a natureza humana como “fixada” na motivação
economômica utilitária: “Bentham imagina a humanidade como uma calculadora mais
fria do que ela realmente é...” (MILL: “Remarks on Bentham's Philosophy”, Works,
vol. 10, pg. 16-17). Stuart Mill enfatiza o elemento de “plasticidade” da
chamada natureza humana, destacando o impulso de auto-aperfeiçoamento, de
auto-transcendência, esta “capacidade ilimitada de aprimoramento” nos âmbitos
do estético, do ético e do cognitivo que não está distante da concepção de
Nietzsche sobre o espírito-livre e o além-do-homem [1].
Segundo Mill, um homem digno deste nome, longe
de ter como ambição diretriz tornar-se tão rico e famoso quanto possível, não
importando que atinja a prosperidade e o engrandecimento por meios perversos e
danosos, “prefere ser um Sócrates insatisfeito do que um porco satisfeito” (citado por GIANNETTI: p.43).
[1] Ansell-Pearson,
em Nietzsche Como Filósofo Político, aponta Mill como um dos filósofos
políticos com quem Nietzsche tinha mais afinidade, sugerindo também uma
afinidade com Tocqueville e Taine.
O NEOLIBERALISMO E A PRIVATIZAÇÃO GENERALIZADA DOS SERVIÇOS PÚBLICOS
É bem conhecido o estratagema ideológico de mascarar realidades espúrias detrás de belas palavras de tonalidade positiva: ao invés de falar em demissões em massa, fala-se em “reestruração das empresas”; para não se referir aos brutais cortes de recursos destinados aos serviços públicos essenciais, refere-se à “redução dos gastos sociais”; para justificar as cada vez mais célebres “medidas de austeridade”, que sufocam atualmente as populações de países como a Espanha e a Grécia, fala-se na necessidade de “manter a confiança dos investidores”. São alguns dos muitos exemplos desta “retórica eufemística que corre hoje nos mercados financeiros” (BORDIEU: 1998, p. 65) e domina o dialeto economiquês. O uso que o neoliberalismo faz da palavra “Liberdade” também fede a abuso, o que Todorov soube bem destrinchar em sua obra mais recente: “Não sabemos que os tiranos do passado invocavam regularmente a liberdade? (…) Somos verdadeiramente a favor de toda liberdade, incondicionalmente, inclusive a da raposa no galinheiro?” (TODOROV)
Através de discursos repletos de eufemismos e termos técnicos, que escondem realidades sujas, os apologistas do neoliberalismo põe a “estabilidade dos mercados financeiros” em uma posição privilegiada em relação às necessidades mais urgentes das populações. O que ocorre de fato sob a vigência do neoliberalismo é a “privatização generalizada dos serviços públicos, a redução das despesas públicas e sociais, (…) o agravamento extraordinário das diferenças entre as rendas, o desaparecimento progressivo dos universos autônomos de produção cultural em virtude da intrusão crescente das considerações comerciais...” (BOURDIEU: Contrafogos 1, p. 143)
Será que não estaria em jogo, com o termo “globalização”, um procedimento semelhante de eufemismo, mascaramento e enganação? Não estaríamos diante de um processo que consiste em “unificar para melhor dominar”, como diz Bourdieu? Afinal de contas, esta tal de globalização será algo além do processo de imposição das doutrinas neoliberais em escala planetária? Não esconderá uma divisão internacional do trabalho que prossegue, tal qual nos dias do colonialismo, a favorecer os países capitalistas avançados em detrimento dos países por eles explorados? “Em suma”, afirma Bordieu, “a globalização não é uma homogeneização, mas, ao contrário, é a extensão do domínio de um pequeno número de nações dominantes sobre o conjunto das praças financeiras nacionais.” (BOURDIEU, idem, p. 54).
“'Globalização é uma palavra que, funcional como uma senha e uma palavra de ordem, é com efeito a máscara justificadora de uma política que visa universalizar os interesses e a tradição particular das potências econômica e politicamente dominantes, sobretudo os Estados Unidos, e estender ao conjunto do mundo o modelo econômico e cultural mais favorável a essas potências apresentando-o ao mesmo tempo como norma, um tem-que-ser e um fatalismo, destino universal, de modo a obter a adesão ou, pelo menos, resignação universais. (…) A globalização econômica é o produto de uma política implementada para fins específicos, a saber, a liberalização do comércio (trade liberalization), isto é, a eliminação de todas as regulações nacionais que freiam as empresas e seus investimentos. (…) Assim, nas economias emergentes, o desaparecimento das proteções destina à ruína as empresas nacionais e, para países como a Coréia do Sul, a Tailândia, a Indonésia ou o Brasil, a supressão de todos os obstáculos ao investimento estrangeiro acarreta a ruína das empresas locais, adquiridas frequentemente por preços ridículos pelas multinacionais. (…) As diretrizes da OMC sobre as políticas de concorrência e de mercado público teriam por efeito, ao instaurar uma concorrência 'de armas iguais' entre as grandes multinacionais e os pequenos produtores nacionais, provocar o desaparecimento maciço destes últimos.” (BOURDIEU: 2001, pg. 90 e 101-102.)
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PRIVATIZAÇÕES & ESTADO POLICIAL
“Há hoje um sentimento amplamente difundido na Esquerda de que o neoliberalismo efetivamente enfraqueceu o poder do Estado nas sociedades ocidentais modernas, e que é chegada a hora de abandonarmos a postura antiestatista e antitotalitarista associada à crítica do stalinismo e ao autonomismo utópico dos anos 60 e 70. Enfim, é tempo de constatarmos, com não pequeno constrangimento, que talvez tenhamos sido cúmplices do Mercado em sua luta para diminuir e subjugar o Estado, última barreira protetora dos direitos do povo contra a sanha do Capital. (…) Não posso deixar de dizer que não acredito nem um pouquinho nisso. A ideia de que o capitalismo globalizado acarretou uma diminuição do poder do Estado parece-me inverossímil. À parte o fato de que foi e continua a ser preciso um gigantesco aparelho regulador e interventor, administrado pelo Estado, para produzir a 'desregulação da economia', jamais o Estado esteve tão presente, tão perto da vida cotidiana. A Grã-Bretanha, por exemplo, com suas câmeras de vigilância penduradas por toda parte, seus agentes secretos infiltrados nos movimentos civis, sua polícia neo-orwelliana, transformou-se em um espaço de autoespionagem universal e perpétua; nos EUA, a Guerra contra o Terror justificou uma invasão dos espaços privados e uma violação das liberdades públicas como jamais se viu na história das democracias modernas, o que tornou a paranóia o modo de produção dominante da subjetividade nativa. E no mundo inteiro, vemos o aparelho jurídico-policial dos Estados nacionais prestando seu apoio solícito aos esforços das corporações transnacionais para cercar definitivamente os commons da noosfera e esmagar com a máxima violência qualquer resistência à bioeconomia política do Capital.” (VIVEIROS DE CASTRO: Posfácio à Arqueologia da Violência, de Pierre Clastres, 2004, p. 325)
Michel Foucault, que investigou o
neoliberalismo em "O Nascimento da Biopolítica" (1979)
Uma certa “fobia ao Estado” parece animar as doutrinas liberais e similares, como sugere Foucault: “o que é posto em questão atualmente e a partir de horizontes extremamente numerosos é quase sempre o Estado: o Estado e seu crescimento sem fim, o Estado e sua onipresença, o Estado e seu desenvolvimento burocrático, o Estado com os germes de fascismo que ele comporta, o Estado e sua violência intrínseca sob seu paternalismo providencial.” (FOUCAULT: 2008, p. 259) Os espectros temíveis dos Estados totalitários do século XX – como a Alemanha do III Reich e a União Soviética sob Stalin estariam na raiz dessa “guinada neoliberal”?
Foucault
esclarece que o totalitarismo não lhe parece decorrer de uma “elefantíase” do
Estado, mas sim do Partido: “esse Estado que podemos dizer totalitário, longe
de ser caracterizado pela intensificação e pela extensão endógenas dos
mecanismos de Estado, (…) constitui, ao contrário, uma atenuação, uma
subordinação da autonomia do Estado, em relação a algo diferente: o partido.
(…) É essa governamentalidade de partido que está na origem histórica de algo
como os regimes totalitaristas, de algo como o nazismo, como o fascismo, como o
stalinismo.” (idem, p. 264)
O
totalitarismo, pois, equivaleria a um “sequestro” do Estado por um partido que
pretende reinar sem oposição - donde os “expurgos” do stalinismo, com tantos
opositores enviados às gulags, e a tentativa do Partido Nazi alemão de
impor a “purificação racial” através do genocídio sistemático. O totalitarismo
como imposição de uma homogeneidade a uma massa, como máquina de varrer
gente para fora do território com a terrível vassoura da limpeza étnica, a
imposição da morte em escala industrial através de “conquistas tecnológicas”
como as câmeras-de-gás que vomitam Zyklon B...
Já
o avanço da aplicação de medidas neoliberais dá a impressão de que o Estado
estaria cada vez mais limitado em sua esfera de ação: tudo o que um dia foi
público vai passando por um inexorável processo de privatização. Outrora
responsável por serviços essenciais à população nas áreas de saúde,
alimentação, moradia e transportes, o Estado privatizador que o
neo-liberalismo prega como ideal tende a conservar apenas funções policiais e
militares, como se sua função fosse somente a defesa, a vigilância, a
segurança. Nisto, este Estado é fidelíssimo à tradição política burguesa que,
segundo Hannah Arendt, “sempre considerou instituições políticas exclusivamente
como um instrumento para a proteção da propriedade individual” (The Origins
of Totalitarianism, p. 199).
“A
filosofia neoliberal pretende apagar todos os vestígios do Estado social como
obstáculos ao funcionamento harmonioso dos mercados” (BOURDIEU: 1998, p. 84). O
neoliberalismo, com sua sanha de privatizações, procura “enxugar” cada vez mais
aquelas funções estatais típicas do welfare state e realiza um “corte,
absolutamente injustificável, entre o econômico e o social, que define o
economicismo” (idem, p. 70). “O programa neoliberal tende assim a favorecer
globalmente a ruptura entre a economia e as realidades sociais.” (idem, p.
138).
Defender
o Estado, diz Bourdieu, não equivale a ser reacionário, defensor de um
arcaísmo: o Estado, “depositário de todos os valores universais associados à
ideia de público” (idem, p. 145), têm agido “rebaixando sua dignidade
estatutária ao multiplicar as reverências diante dos patrões de multinacionais,
ou ao competir com sorrisos e acenos coniventes diante dos Bill Gates...”
(idem, p. 145)
O
Estado, segundo a interpretação de Bourdieu, possui duas mãos: a esquerda,
devotada às necessidades sociais como habitação, saúde, educação, e a direita,
onde concentra-se a burocracia, a polícia, o exército. Nos EUA, por exemplo, é
fácil constatar que a “mão direita” do Estado cresceu desproporcionalmente,
enquanto a mão esquerda foi sendo vendida, sucateada, privatizada, relegada a
um status secundário, transformada em mercadoria. O Público foi privada abaixo.
País
de recordes, alguns deles não tão “gloriosos” quanto aqueles que decoram os Guiness
Books que os americanos adoram consumir, os EUA não é somente o maior
poluidor atmosférico, o mais sedento consumidor de petróleo e a nação do
planeta com o mais alto orçamento militar (“600 bilhões de dólares por ano”,
segundo Todorov [2012: pg. 69]). Em 2008, como relata Ziegler, “pela primeira
vez na História as defesas com armamento dos países membros da ONU
ultrapassaram um trilhão de dólares por ano. Os Estados Unidos gastaram com
armas 41% desse montante (a China, segunda potência militar mundial, 11%).”
(ZIEGLER: 2011, p. 12).
Este
imenso poderio militar é posto em ação em cruzadas no exterior, justificadas
como guerras de legítima defesa (como a do Afeganistão, que seria uma
retaliação contra o atentado do 11 de Setembro) e “guerras preventivas” (como a
do Iraque, que supostamente livraria o mundo de um regime que abrigava armas em
destruição em massa...). “Os valores democráticos, brandidos pelos países
ocidentais como motivo da intervenção, foram percebidos, pela população de
outros países, como a confortável camuflagem de intenções inconfessáveis.”
(TODOROV: 2012, p. 63).
É
nos Estados Unidos, que possui 5% da população mundial, que se concentra a maior população carcerária, cerca de 25% de todos os encarcerados da Terra, o que denota
“um Estado repressor, policialesco”: “No estado da Califórnia, um dos mais
ricos dos EUA, o orçamento das prisões é superior, desde 1994, ao orçamento de
todas as universidades reunidas. Os negros do gueto de Chicago só conhecem, do
Estado, o policial, o juiz, o carcereiro e o parole officer...”
(BORDIEU: 1998, p. 46)
O
fato do cowboy from hell George W. Bush ter podido apontar o presidente da Goldman Sachs,
Hank Paulson, um dos mais bem-pagos CEOs de Wall Street, como seu Ministro do
Tesouro, em 2006, é bem sintomático da infiltração insidiosa e disseminada do big
business no próprio coração do capitalismo neoliberal. Um sistema que,
longe de globalizar o acesso gratuito e universal à alimentação, à saúde e à
educação, é “globalizador” de sua tara economicista e de sua mania obsessiva de
concentrar riqueza e produzir miséria.
Dois
anos depois da Goldman Sachs ganhar da bandeja de Bush o Tesouro, uma crise
monumental estoura nos EUA de 2008: falências colossais (como da Lehman
Brothers e da Merryll-Lynch, esta última comprada pelo Bank of America...) e
símbolos do capitalismo americano indo à beira da falência (a General Motors
quase vai à bancarrota, só sobrevivendo com os bilhões pagos pelo Salvador, o
Estado que gere o dinheiro recolhido dos taxpayers...).
A
inescrupulosidade, ineficiência e a irresponsabilidade do capitalismo comercial
corporativo causou grave crise social e os responsáveis pelo desastre, ao invés
da cadeia ou da demissão, prosseguiram com suas fortunas intactas:“The men
who destroyed their own companies and plunged the world into crisis walked away
from the wreckage with their fortunes intact” (Inside Job, documentário
de Charles Ferguson). O Estado, nesse caso, serviu como aquele que tira do povo
(pobres dos cidadãos, cujo suado dinheirinho foi todo transferido para o
“salvamento” urgencial da Merryll-Lynch e da GM...) e entregue logo aos
capitalistas que causaram a desgraça.
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