domingo, 8 de janeiro de 2012

"O torcer é parente do orar..." (por Eduardo Giannetti)




"O futebol foi a religião da minha infância. O Cruzeiro de Tostão, Piazza e Dirceu Lopes - como esquecer a glória daquele time? - era o santuário. Eu narrava o futebol de botão jogado a sós no assoalho de casa, colecionava figurinhas de craques e torcia pela Raposa com um fervor de devoção mais intenso do que quando ia à missa e comungava. A memória do drama íntimo de certos jogos é das lembranças mais remotas que tenho de estar vivo. Se o sofrimento é a única causa da consciência de si, como diz o homem subterrâneo de Dostoiévski, então a paixão sofredora do torcedor mirim foi o berço da minha vida consciente.

Taça Brasil, anos 60. Chegou a tarde da grande final. Tenho cinco ou seis anos e estou grudado ao pé de uma radiovitrola Telefunken. O Cruzeiro perde do Santos por dois a zero - Pelé endiabrado em campo. Termina o primeiro tempo: silêncio e consternação. Bate o desespero, começo a chorar. O tempo corre, e a reação não vem; passo a chorar convulsivamente. Os adultos ficam preocupados com o meu estado. Quando mamãe faz menção de desligar o rádio e pôr um fim à agonia, o meu pai, Cruzeiro roxo, desautoriza-a secamente e me fulmina com seu olhar-fuzil. "Homem não chora!"

Súbito, porém, ressurge a esperança: Tostão marca e Dirceu Lopes logo empata. O jogo prossegue, mas não paro de chorar. "Por que agora?", perguntam todos. Já não há razão, não há o que dizer. A angústia da decisão por pênaltis me sufoca. Então o milagre acontece. O ponta Natal faz o gol da virada! Os céus explodem. O meu choro, misturado à balbúrdia, já não perturba ninguém. Do ponto extremo da dor, como num parto, rompe a alegria. Hoje ainda, quando penso naquela tarde de aflição e júbilo, os gritos do locutor - "Natal! Natal!" - ressoam nas dobras do ouvido interno; a entonação, o timbre esganiçado, o desafogo da voz deixaram marcas indeléveis no meu cérebro de menino.

O Cruzeiro de hoje não é o da minha infância: mudou o futebol, e mudei eu. Assisto aos jogos na TV; torço e vibro por meu time (e pela seleção, é claro); estico cada fibra da alma quando chegamos às finais, mas perdi o dom da entrega daqueles tempos. Não há drama futebolístico concebível que me transporte aos píncaros do desespero e da alegria como no passado. Foi-se o vigor da pulsão furiosa, a seiva enérgica  das origens; tornei-me um torcedor maduro, amarrado, incapaz de ir até o fim no desatino. O tempo esfria a alma. Não sou metade do que fui de nascença e a vida esgarçou.


Mas o que é, afinal, torcer por alguma coisa? A mesma madureza que esfria trouxe uma certa distância, como que um olhar externo do que vai por mim. É estranho: todos estes anos torcendo, milhares de jogos na bagagem, decisões de vida ou morte, e nunca antes cheguei a me perguntar: o que se passa comigo enquanto estou torcendo? Cada um, é claro, vive e sente as coisas do gramado à sua maneira. O jogo jogado é o mesmo para todoso placar final tem a solidez do granito. Mas, quando se trata do jogo vivido, tudo se transfigura. Qual o segredo do arrebatamento a que nos abandonamos na agonia de torcer? Que tramas e surtos da mais singular subjetividade não se filtram pelos olhos e mentes grudados aos volteios da bola numa tela de TV?

Há toda uma metafísica da mais remota origem embutida na alma torcedora. A palavra torcer, bem compreendida, capta o essencial. Torcer é se contorcer e remoer por dentro. É a sensação de esticar e distender os músculos e tendões dos nossos desejos e vontades: enfiar-se com as emoções campo adentro como se estivessem misturadas aos pés dos atletas e às trajetórias caprichosas da bola. As contorções faciais e os gestos do torcedor são apenas o sinal visível da ginástica interna que o consome. 

Mas não é só. O contorcionismo subjetivo do torcer está ligado a uma crença espontânea indissociável da inclinação torcedora - um modo mágico de pensar e sentir que irrompe na mente com o ímpeto de uma planta selvagem. Torcer é entregar-se à vivência primária e avassaladora de que as contorções que agitam e devoram a alma torcerão o curso dos acontecimentos na direção desejada. A explosão do gol - ou de um pênalti defendido - é a confirmação da potência do meu bruto querer. 

O torcer é parente do orar, só que sem rodeios e intermediários. Na reza, o devoto se concentra e abre o canal da interlocução pela oração: ele se dirige ao santo ou deus da sua predileção, rogando-lhe que interceda a seu favor. Promessas e sacrifícios podem facilitar o trâmite, mas a eficácia da prece não é fruto da vontade crua do devoto. Ela depende de um despacho da autoridade invocada. O torcedor, é claro, também reza e promete, mas no calor da hora ele vai direto ao ponto. Não é algo consciente ou que se possa escolher e evitar. É um processo mental involuntário, de origem arcaica, e que nos transporta para um mundo mítico onde os nossos desejos e emoções gozam de poder causal sobre o enredo aberto e imprevisível do que está em jogo. 

O banco de reservas interiores do torcedor entra em campo, desvia a bola perigosa, corta o passe, mata no peito, cruza o escanteio, espalma e cabeceia, vibra no momento exato em que a sua onipotência se confirma na catarse do gol. Uma teia de medos e desejos, temores e esperanças cerca cada lance e afeta cada movimento da bola. Não é à toa que o verdadeiro torcedor se descobre extenuado no final do jogo. 

No fundo, a fé selvagem de quem torce é a crença de que podemos domar e torcer o curso natural das coisas - coagir o futuro - por meio da força bruta do nosso querer. O mundo, berra em silêncio a alma torcedora, não é surdo e indiferente ao meu desejo. O devir se rende à minha vontade soberana. É por isso que saber de antemão o resultado de uma partida a cujo videoteipe se assiste mina a possibilidade de torcer.

A torcida diante da bola é um caso extremo de família numerosa. Torcemos para que alguém se recupere de uma doença grave; para que o avião vença a turbulência; para que o tempo melhore; para que os bons triunfem e os calhordas afundem; para que o telefone toque ou o e-mail chegue. Diante de um futuro aberto com desfecho incerto, o animal humano não se rende à sua impotência e desamparo cósmicos. Como um apostador inveterado, ele crê na sua vontade como causa de efeitos reais e investe o que pode na roleta mágica do seu louco querer: quando eu me contorço por dentro, o mundo se torce a meu favor. A psicologia do torcer é um escândalo da razão - fé animista que me habita em segredo." 





in: GIANNETTI, Eduardo

A Ilusão da Alma
Editora Cia das Letras
Cap. 26, pg. 121-125





Nenhum comentário: