Muitas vezes um artista não é o melhor juiz de seu próprio valor. Seja por uma tendência ancestral para a auto-depreciação, seja por uma personalidade marcada por uma insuperável timidez ou uma auto-estima vacilante, seja por uma auto-crítica demasiado corrosiva, o criador pode ruborizar perante suas criaturas, as mesmas que outros podem considerar... preciosíssimas pérolas da criatividade e da sensibilidade humanas. O extremo oposto do artista megalômano, que se acha a última bolacha do pacote, é o artista que cria na angústia de sentir-se desvalido e indigno: Franz Kafka, por exemplo, que pede (ó delírios de auto-mutilação!) à Max Brod que queime toda sua obra, que livre a humanidade desta praga que são seus livros que tantos de nós amamos! (Nossa sorte, é claro, foi que Brod desobedeceu ao amigo e Kafka hoje está entre nós, ao invés de ter sido reduzido à cinzas!)

Ironia do destino: a "necrofilia da arte" de que nos fala o Pato Fu também agiu sobre a reputação póstuma de Nick Drake a fim de transformá-lo em um artista mais cultuado e idolatrado depois de morto do que jamais foi em vida. Anos atrás, quando conheci sua obra, ele era incensado em louvores exacerbados, aqui no Brasil, por admiradores como o romancista Daniel Galera e os jornalistas Jonas Lopes e Carlos Eduardo Lima. Queridinho dos críticos, Nick Drake, feito um Velvet Underground, parecia não possuir mais de 100 admiradores, mas todos eles eram altamente entusiásticos e tratavam da obra drakeana como se ela possuísse uma aura de sacralidade... Em tempos onde, segundo Benjamin, o mercantilismo capitalista e o monstruoso desenvolvimento da técnica arrancam a aura de tudo, transformando em mercadoria tudo o que toca, é reconfortante encontrar ao menos algumas obras-de-arte que são reconhecidamente aureolados por enigmáticas auras...

Drake parece ter passado pelo mundo tão silenciosamente quanto seus álbuns tão plácidos e tranquilos sugerem. Legou-nos apenas três discos de estúdio: Five Leaves Left (1969), Bryter Layter (1970) e Pink Moon (1982). Neles, o cantarolar introspectivo de Drake é um suave veludo que flui sobre um instrumental sempre delicado e discreto, na maioria das vezes pontuado por belos dedilhados ao violão, outras vezes por orquestrações suaves e envolventes, numa música que não soa jamais sentimentalóide ou grandiloquente, mas que nos entristece com uma procissão de sonhos frustrados e sombrias meditações sob o signo de Saturno. Tudo nestas canções recende à introspecção, estoicismo, tristeza suportada com resignação, melancolia sublimada em beleza...
Ouço Nick Drake muito raramente, mas me agrada muito que essa música exista e que eu possa dar um pulo por estes recantos de vez em quando. Em tempos onde a música vomitada pelos mass media torna-se ostensiva e apelativa, quando os posers tomam conta de um mercado musical saturado por marketeiros e interesses comerciais, quando o "batidão" do funk e do poperô invadem nosso espaço auditivo sem a mínima cerimônia, a música de Drake é sempre um refúgio onde podemos entrar em contato com toda uma outra concepção da arte: a arte como manifestação, ainda que trêmula e insegura, da fugaz experiência interior de um mortal que só está entre os vivos por tempo limitado e que não suportaria descer ao túmulo em silêncio.
Nick Drake canta e encanta pela autenticidade de sua expressão-de-si: sem máscaras nem sorrisos falsos, transforma em música sua alma atormentada. Ouvi-lo é fascinar-se diante do abismo da alteridade e simpatizar com tantos afetos expressos que, ainda que pareçam tão pessoais e idiossincráticos, têm algo de universal e atemporal. Reconhecemo-nos neles como se olhássemos para um espelho que reflete nosso rosto em nossos dias mais nublados.
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Five Leaves Left (1969) [download] |
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Bryter Layter (1970) [download] |
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Time of No Reply (póstumo, 1986) [download] |
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Pink Moon (1982) [download] |
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