Não é nova a idéia de pôr um festival de música a serviço de uma causa política, seja o auxílio a refugiados e famintos, seja vítimas de guerras ou catástrofes naturais: do Concert For Bangladesh (organizado por George Harrison no começo dos anos 1970) ao Tibetan Freedom Concert, do Live Aid (de Bod Geldof, que falou na SWU-2011) ao Porão do Rock brasiliense (que já arrecadou 174 toneladas de alimentos em suas 14 edições), para ficar em poucos exemplos.
Em sua segunda edição, o festival SWU, realizado com verba de 6 milhões e 200 mil reais liberados pelo Ministério da Cultura Brasileiro, reuniu quase 180 mil pagantes em Paulínia (SP) em três dias de shows, conferências, mesas-redondas e muita CHUVA e LAMA. O que é um tanto inquietante, além desta quantidade de verba pública do MinC aí investida, é que a SWU não é exatamente um evento "benificiente" cujos lucros seriam revertidos em prol da Sustentabilidade Ambiental, tão propalada pela organização como uma espécie de eixo temático do festival.
Um evento tão faraônico, que recebe um público que bate nos 200.000 pagantes (e que ainda por cima consomem em quantidades colossais dentro do festival), deixa no ar o mistério: quanta grana se ganha com isso? E ela vai para o bolso de quem? Não há muitos lucros privados envolvidos neste evento realizado com verba pública? Tenho muita curiosidade de saber qual o faturamento da SWU e qual o destino que será dado a esta dinheirama. Acho até que o festival deveria ser obrigado, em nome da transparência, a divulgar estes números diante da sociedade para que possamos ter uma idéia mais clara do que está rolando nos bastidores deste mega-evento que promete acompanhar-nos década afora, ano a ano, sempre com atrações internacionais de alto calibre. E caso esteja servindo para o enriquecimento de poucos, ou seja, para a piora da condição já terrível de concentração de capital e má distribuição de renda, teremos que olhar o festival e suas pretensões benévolas com ceticismo e confrontação!
Suspeitar é necessário. Quem não pergunta não pensa. Quem não põe em questão acaba engambelado, manipulado, feito de trouxa. Cabem as questões: a tal da "sustentabilidade" é uma genuína preocupação do SWU ou seria mais uma espécie de fachada filantrópica que esconde outros interesses inconfessáveis? Claro que é de bom-tom, muito politicamente correto, dizer que o objetivo por trás de tudo é ajudar a salvar o planeta Terra. Mas será que isso é dito meio que da boca-pra-fora, com o talento maquiavélico dos sofistas contemporâneos, mestres na arte do lobby, como uma justificativa aceitável perante o Estado, ou existe de fato algo equivalente a um movimento cultural/social de relevância sendo colocado em movimento? Sei não, sei não... é conveniente demais este bom-mocismo todo, gerador de tamanhos dividendos e lucros, ornado de tamanha espetaculosidade e campanhas midiáticas, para que uma pulga atrás da orelha não fique a me cochichar nos ouvidos: aí tem coisa, aí tem mutreta!
No intervalo entre os shows, os telões lá em Paulínia foram dominados pelas "vinhetas" oficiais da SWU. Mensagens edificantes sobre a necessidade de cuidarmos com carinho de nosso planetinha ameaçado mesclavam-se a tuitagens escolhidas por uma única razão: a auto-glorificação do festival. Não me lembro de nenhum tweet minimamente contestador, questionador, minimamente politizado. Só um amontoado de "valeu SWU, você é demais, que coisa foda, parabéns, concretizei meu sonho" - e por aí vai. Já as liçõezinhas de edificação, destinadas aparentemente a despertar no público a "consciência ecológica", vinham num estilo altamente publicitário, não sendo muito diferentes do que se veria nos reclames do plim-plim da rede Globo...
E sempre batia-se na mesma tecla: "começa com você". Um slogan que não ficaria mal se escolhido pela Nike ou pelo McDonalds. Me incomoda a dimensão marketeira da bagaça toda. A SWU nos cutuca as orelhas com um matraquear cansativo sobre o "starts with you!", mas... não faz muita coisa além disso: sugerir que a mudança começa no indivíduo. E que "pequenas atitudes geram grandes mudanças". Que simplismo! O que pode um indivíduo solitário, por exemplo, para que as Guerras do Petróleo cessem no Oriente Médio? E isso tem tudo a ver com sustentabilidade: caso o Império Norte-Americano, maior consumidor mundial de petróleo e maior poluidor atmosférico do mundo, recuse-se a diminuir a marcha de seu desenfreado "progresso" e continue a cagar em cima de Protocolos de Kyoto e resoluções da ONU, a bioesfera vai tornar-se cada vez menos capaz de sustentar a Vida em toda a sua diversidade... E não ouço a SWU falar nada sobre o tema.
Só estive lá no 3o dia de festival e não acompanhei o Fórum de Sustentabilidade, que teve cerca de 3.000 presentes (segundo a Super Interessante), um índice mísero que representa MENOS DE 2% do público total do festival. As "iniciativas que podem mudar o mundo" que a matéria da Super relata que saíram do debate me parecem mais como paliativos ou soluções parciais do que como idéias realmente revolucionárias. Parece que em momento algum se põe em questão o principal: que este sistema econômico capitalista-neoliberal, cujo combustível é um petróleo que tende a uma escassez progressiva, baseado no consumismo desenfreado que transforma nossas metrópoles em lixões poluídos e selvas-de-pedra desarvorizadas, é o X da questão. Eis aí uma "verdade inconveniente" (bem mais que aquela do Al Gore!) e que um festival como SWU, que está inserido neste sistema, não tem a coragem (ou o interesse) de questionar. O Occupy Wall Street e o Movimento Zeitgeist, por exemplo, estão dizendo que a solução passa necessariamente pela derrubada da Tirania das Finanças e do Capital Especulativo: não há como falar em Sustentabilidade sem falar numa radical transformação do próprio capitalismo. Sobre isso a SWU se cala. E é um silêncio inquietante.
Mas convenhamos: uns 90% do público presente estava lá pelas bandas, pela festa, pela bebedeira, pela azaração, não ligando a mínima para debate ideológico, discussão política, fórum ambiental... É, no mínimo, um enorme desperdício de potencial quando um festival que se diz preocupado com Sustentabilidade não faz mais esforços no sentido da conscientização da multidão que ali estava.
Na Praça de Alimentação, é verdade, havia a opção de rango vegetariano, ainda que com preço salgado (tudo acima de 10 conto e tudo refeições em doses míseras...). Havia também uns cartazetes, bem pequenos, que perguntavam: "Se você ama alguns animais, por que come outros?" Acho uma bela iniciativa oferecer esta alternativa à alimentação carnívora e despertar este tipo de questionamento naqueles que amam seus cãezinhos e gatinhos e não vêm nenhuma contradição em devorar pedaços de cadáver de boizinhos e franguinhos...
Tudo bem. Mas por que uns cartazinhos miúdos ao invés de outdoors gigantescos? E por que não fazer uma campanha mais bem-bolada para explicar aos presentes qual a relação entre vegetarianismo e sustentabilidade? Pois grande parte da galera não tem a mínima noção de que existe uma relação entre o consumo de carne, o aquecimento global e o desmatamento da Amazônia. Se a SWU se diz tão dedicada à ampliação da consciência social a respeito de problemas ambientais, deveria utilizar meios mais eloquentes e poderosos para fazer-nos compreender que a devoração maciça de hot-dogs, hambúrgueres e almôndegas é bem menos "inocente" do que muitos carnívoros com consciência-tranquila pensam. Para responder à demanda dos consumidores por carne, as empresas precisam, por exemplo, derrubar florestas para colocar no lugar suas "fábricas de carne". O Pulmão do Mundo, a Amazônia, sendo retalhada, substituída por uma pecuária-de-linha-de-montagem, onde os animais vivem nas condições mais grotescas e degradantes, e isso porque milhões, inconscientemente, não querem trocar seu strogonoffe por soja-e-legumes... Cadê a SWU chamando a atenção para a questão do consumo consciente?
Outra questão que não vejo colocada: a SWU aconteceu por duas vezes no interior de São Paulo, em Itu (em 2010) e em Paulínia (em 2011), sendo que uns 95% do público presente teve que chegar ao local do evento... utilizando algum tipo de transporte emissor de CO2. A organização do festival não foi ridícula a ponto de dizer "venha de bicleta pra SWU!" pois ninguém encararia a odisséia de pedalar umas 30 horas e chegar já moído no festival. O que a SWU fez foi bombar o preço do estacionamento para a estratosfera – 100 REAIS a diária para os carros com 1 ou 2 passageiros! E com um bônus: carros atolados na LAMA! Convenhamos que é um tremendo incentivo para que não se vá de caranga até lá. Mas e daí? Vai-se de busa, de van, de moto... E as emissões de poluentes desses quase 200 MIL migrantes, em um fim-de-semana, são algo considerável. E aí, como é que fica o papinho de Festival Sustentável diante deste quadro?
E o quadro se complica ainda mais quando pensamos no seguinte: a SWU não quer nos deixar entrar no recinto com comida e bebida que trazemos de casa. Na entrada, uma revista rigorosa nos priva dos "excessos" de comes-e-bebes: cada pessoa só pode entrar com um mísero copinho de 200ml de água mineral e 2 pacotinhos míseros de salgadinho/bolacha/etc. A intenção por trás disto, como me parece óbvio, é nos prender dentro dos muros e NOS FORÇAR A CONSUMIR. Se eu quiser levar para a SWU um sanduíche natural feito em casa, uma garrafa de 2 litros de suco de laranja caseiro, uma salada de frutas, não me deixarão entrar com o rango e me forçarão a gastar uma FORTUNA para comer e beber lá dentro. E comendo lá dentro encherei o bolso de alguma empresa de grana. E bebendo por lá encherei o bolso da Heineken de grana. E assim gira o mundo "sustentável"...
Ora, é como se a SWU fingisse não perceber nenhum tipo de vínculo entre CONSUMISMO e DESTRUIÇÃO AMBIENTAL. A SWU se faz de boba nesse ponto. Quer-nos consumindo loucamente (o que não faltavam naquele lugar eram CAIXAS!) e jamais faz o mínimo esforço no sentido de conscientizar o público de que o estilo-de-vida consumista é um dos fatores que está esmerdeando nossa biosfera.
O preço do ingresso, aliás, já é evidência suficiente de que a SWU – tal qual outros grandes festivais como o TIM, o Planeta Terra, o Rock In Rio... - interessa-se pelos bolsos da classe média para cima. Pagar 200 paus para um dia de balada não é mole. Pagar mais de 500 mangos para 3 dias... é um tremendo luxo. E enquanto nós nos divertimos com nossos shows prediletos, alguns penam com um isopor de bebidas sobre a cabeça ou pesando nas costas, como burros-de-carga que circulam por entre o público em horário de penosa labuta...
Não querem politizar ou conscientizar o público mais do que é conveniente para garantir um desenrolar impecável do mecanismo lucrativo. Não nos deixemos enganar: SWU não é o nome de uma ONG. Não é filantropia, humanitarismo, beneficência... A SWU me parece ser uma das manifestações de uma Sociedade do Espetáculo sobre a qual Débord nos alertou já fazem algumas décadas. E ainda nem começamos a nos questionar de verdade se nosso Entretenimento e nosso Consumo são tão "inocentes" quanto gostamos de acreditar - ou se realizamos, em plena inconsciência, aqueles atos que, repetidos por centenas de milhões, pesam sobre o lombo do Planeta a ponto dele entrar em pane...
E outra: cadê a força do SWU para as bandas independentes? Aquele palco menor, toda hora que eu passava por lá, estava bem meia-boca, tomado por bandinhas bem paia. Seria muito mais interessante que houvesse um palco dedicado ao Cenário Independente brasileiro, que poderiam ser escolhidas em várias seletivas estaduais durante o ano, ganhando a chance para se apresentar para o maior público de suas vidas... O fato do Black Drawing Chalks ter sido escalado no ano passado me pareceu um ótimo sinal, mas a SWU 2011 deu um passo atrás. Por mais polêmicas e hostilidades que o Circuito Fora do Eixo esteja despertando, acho que seria imensamente mais bacana se este palco menor da SWU fosse "gerido" pelo FDE, que com certeza traria um conteúdo e uma diversidade muito maiores àquele espaço. A SWU quer realmente auxiliar a música independente brasileira a ampliar sua repercussão e sua ressonância, quer apostar nos novos talentos que estão surgindo às pencas no excitantíssimo cenário dos Festivais FDE/Abrafin, ou vai abraçar de vez o mainstream, trazer só figurões gringos e botar mais lenha na fogueira da americanização da cultura brasileira?
E outra: cadê a força do SWU para as bandas independentes? Aquele palco menor, toda hora que eu passava por lá, estava bem meia-boca, tomado por bandinhas bem paia. Seria muito mais interessante que houvesse um palco dedicado ao Cenário Independente brasileiro, que poderiam ser escolhidas em várias seletivas estaduais durante o ano, ganhando a chance para se apresentar para o maior público de suas vidas... O fato do Black Drawing Chalks ter sido escalado no ano passado me pareceu um ótimo sinal, mas a SWU 2011 deu um passo atrás. Por mais polêmicas e hostilidades que o Circuito Fora do Eixo esteja despertando, acho que seria imensamente mais bacana se este palco menor da SWU fosse "gerido" pelo FDE, que com certeza traria um conteúdo e uma diversidade muito maiores àquele espaço. A SWU quer realmente auxiliar a música independente brasileira a ampliar sua repercussão e sua ressonância, quer apostar nos novos talentos que estão surgindo às pencas no excitantíssimo cenário dos Festivais FDE/Abrafin, ou vai abraçar de vez o mainstream, trazer só figurões gringos e botar mais lenha na fogueira da americanização da cultura brasileira?
Ficam as questões. Seguimos aguardando as respostas.
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7 comentários:
cara concordo c quase tudo q tu falou...agora q coisa hein um rango mais barato a 10 ...e a porçao uma ninharia...mas fazem parte de tudo q entra money hj ne.sempre um abuso e foi q tu falou muita grana q entra mas p onde vai?
Pois é, cara! Segue a questão: p/ onde vai essa dinheirama toda?
peguei a calculadora aqui pra especular sobre os lucros do festival... 179.000 pagantes, se a gente multiplicar por R$ 200 reais de ingresso (alguns pagaram meia, é verdade, mas alguns compraram mais caro nos últimos lotes, então acho que 200 é uma boa média...): isso dá 35 MILHÕES e 800 MIL reais.
Qto ao consumo lá dentro, se a gte colocar uma média de 25 REAIS por pessoa, a entrada de capital é de mais ou menos... 4 MILHÕES e 475 MIL reais.
Qual o custo do festival todo (somando cachês, passagens de avião, estrutura de som, iluminação, aluguel)? Qual o lucro que a SWU tira disso e qual o destino da grana? Segue o mistério!!!
Eduardo, que texto, cara!
Análise completa e super ácida.
Realmente são questionamentos muito pertinentes.
Vou passá-los pra frente, tentar conscientizar o máximo possível.
É uma contradição tão absurda que paradoxalmente é ignorada.
Grande abraço.
Isso sem contar que os funcionários de lá (os terceirizados da segurança, dos restaurantes, da faxina, organização, etc.) recebem pouco também!
Valeu demais, camarada '! Acho importante colocar em questão as contradições e os abusos de grandes festivais assim para que os mesmos males não se repitam nos próximos anos. O Brasil parece cada vez mais "visado" como mercado consumidor destes mega-eventos e cabe a nós ficar de olho bem aberto para irregularidades, falcatruas e mutretas, né? Ah, tou lendo aqui teu blog Grito Entrópico, já favoritei aqui pra ler com mais calma... Volte sempre!!!
Roger: com certeza! Fiquei pensando, por exemplo: quanto é que deve pesar aquele barril de chopp portátil da Heineken que tinha gente carregando no lombo? Imagino que deve ser um dia de labuta duríssima, extremamente cansativa, ficar ziguezagueando por horas e horas pela multidão com aquele trambolhão pesando nas costas. Enquanto uns se divertem, outros penam como burros-de-carga...
Li todos os artigos sobre o festival. Muito bons. Texto de "prima". Aliás, o blog todo prima pela qualidade, tanto das palavras quanto das postagens. Parabéns. Há tempos que é um dos meu prediletos.
Valeu demais, caro Musicômano! Fico feliz que você esteja acompanhando e curtindo o blog. Com incentivos assim a energia não faltará para que o Depredando prossiga primando ao máximo pela qualidade dos textos e do material compartilhado... Siga antenado e volte sempre! Abraços!
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