segunda-feira, 11 de abril de 2011

<<< Ninguém segura esse rojão (Coleção Chico da Abril, #03) >>>


Lançado em meio a uma tensa transição dos chamados "anos de chumbo" da ditadura militar para uma atmosfera política um pouco mais respirável, Meus Caros Amigos foi o último dos discos de Chico Buarque a enfrentar problemas com a censura. Tanto a crítica quanto o público consideram-no um dos trabalhos mais fecundos da carreira do compositor. Com ele, Chico tornou-se uma unanimidade nacional.

Entre suas faixas figuram algumas das composições mais marcantes da carreira do autor: "Olhos nos Olhos", uma de suas mais tocantes incursões pelo universo feminino, e a faixa-título "Meu Caro Amigo", que consolidou sua parceria com Francis Hime. A canção mais emblemática do disco, porém, é "O Que Será". No cenário político volátil de 1976, ela se transformou numa espécie de senha para que muitos brasileiros se engajassem na luta pela volta das liberdades democráticas.

Quando seu 13º LP, Meus Caros Amigos, chegou às lojas em dezembro de 1976, Chico Buarquue fechou um ciclo criativo em sua vida. Tanto pessoal quanto criativa. No ano anterior, Chico decidira abandonar os shows. Exceto raríssimas aparições ou canjas ocasionais, ele só pisaria novamente num palco, como cantor, 12 anos mais tarde. (...) Manteve-se, ao longo de 1976, numa espécie de recolhimento voluntário. Além de sua notória aversão Às apresentações em público, ele temia ser transformado num símbolo da luta contra a ditadura ou ser tragado pela voracidade da indústria fonográfica. Paradoxalmente, com o lançamento de Meus Caros Amigos, esse Chico que se afastara do público tornou-se mais popular e querido do que nunca. O disco fez um sucesso tremendo.

Seu tom despojado, finamente irônico e de uma confiança contagiante no futuro retratava muito bem o Brasil - um país que, apesar de ainda sufocado pela ditadura, começava a flertar com o estado de direito. Meus Caros Amigos foi um fenômeno de vendas nesse cenário. Algumas de suas canções, como "Olhos nos Olhos" e "Vai Trabalhar, Vagabundo" tocavam incessantemente nas rádios. Foi outra obra de Chico, porém, de rara beleza poética, que se propagou feito um hino. A empolgante "O Que Será (Flor da Terra)" catalisou, de maneira quase profética, o descontentamento e o desejo difuso por mudanças que começava a conquistar o coração dos brasileiros.

Apesar das ainda tímidas promessas de redemocratização feitas pelo general-presidente Ernesto Geisel, o Brasil vivia então aos solavancos. Tais acenos, aliás, tiveram um duplo efeito. Injetaram, decerto, uma dose de ânimo no espírito dos que se opunham ao regime. Por outro lado, no entanto, elas semearam descontentamento e reações da chamada linha-dura das Forças Armadas, uma facção truculenta liderada pelo próprio Ministro do Exército de Geisel, general Sylvio Frota. A queda de braço entre os dois persisttiu até 12 de outubro do ano seguinte, quando Geisel enfim exonerou o auxiliar. Esse fato delimita a passagem dos chamados "anos de chumbo" para um período um tanto mais brando. A palavra distensão tornou-se um mantra desses dias carregados de ambiguidade.

Até que o projeto de abertura enfim se impusesse, o clima ainda esquentaria muito no Brasil. A Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e outras entidades civis foram alvos de atentados a bomba. Levas de deputados oposicionistas, como Marcelo Gato, Lysâneas Maciel e Jorge Miranda, tiveram seus mandatos e direitos políticos cassados. Por fim, duas mortes repulsivas expuseram as entranhas do regime: o jornalista Vladimir Herzog, diretor da TV Cultura (encontrado enforcado numa cela do DOI-CODI em São Paulo), e do operário metalúrgico Manuel Fiel Filho (morto nas mesmas instalações do DOI-CODI). O episódio causou a primeira séria fissura na até então monolítica ditadura.

O governo militar mal conseguia disfarçar seus primeiros sinais de fadiga. Abatido pelas sucessivas crises mundiais do petróleo, apegara-se a um nacionalismo infantil. Seu modelo de desenvolvimento isolava cada vez mas o Brasil, com medidas como as reservas de mercado, a política de substituição de importações... Agravando o cenário, a inflação ameaçava fugir do controle, e inúmeros escândalos na administração pública passaram a ser denunciados pela imprensa, cujos principais veículos, como a Veja e O Estado de São Paulo, haviam sido recém-liberados da censura prévia.

O Brasil descobriu então uma nova palavra: mordomia. Abusos e irregularidades eram frequentes na administração. Todos esses fatores, somados, foram responsáveis pela corrosão crescente da confiança popular na ditadura e por uma esperança crescente nas reformas democráticas. Foi esse misto de desencanto e confiança no futuro que o LP Meus Caros Amigos captou com extrema sensibilidade. Nele estão as duas faces do brasil da época. A da ditadura ainda desenvolta, tão bem expressa no verso "mas o que eu quero lhe dizer é que a coisa aqui tá preta", e a desconcertante certeza de que os dias de desmando estavam contados, uma visão expressa ao longo de toda a letra de "O Que Será": "O que será que será / Que andam suspirando pelas alvocas / Que andam sussurrando em versos e trovas/ Que andam combinando no breu das tocas". Chico, em sua profunda intuição poética, fizera, em forma de canção, uma "Polaroid" da história brasileira.


Boa parte de suas 10 canções foi produzida sob encomenda. A melancólica "Basta Um Dia" integra a trilha da peça Gota D'Água. "Mulheres de Atenas" que situa em sua terra natal as recorrentes Penélopes criadas por Chico, foi tema de uma peça homônima escrita pelo dramaturgo Augusto Boal. O próprio Boal, aliás, que vivia então em Lisboa, é o real destinatário da letra do irressitível chorinho "Meu Caro Amigo". Tanto esta quanto a pré-ecológica "Passaredo" e a singela "Noiva da Cidade" (tema de um filme homônimo de Alex Viany) foram compostas em dobradinha com Francis Hime, seu mais assíduo parceiro à época. A divertida "Vai Trabalhar Vagabundo" também se destinava ao cinema: foi composta como tema para o filme homônimo de Hugo Carvana, grande amigo de Chico.

Foram duas, no entanto, as canções de Meus Caros Amigos que tomaram de assalto as rádios e os corações dos brasileiros. A primeira foi "Olho nos Olhos", que Chico compôes após ter passado uma tarde no hospital com Paulo Pontes. O posto mais alto no pódio do disco, porém, coube de cara à magnífica "O Que Será", composta para o filme Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Bruno Barreto. Hoje, passados tantos anos, ela pode até ter perdido uma parcela de seu impacto. Sua eloquência e requinte poético, porém, mantêm-se inalterados. Foi com seus versos espiralados que Chico convenceu muita gente de que já era mais do que hora de se começar a mudar o Brasil.


(A Coleção Chico da Abril está despejando nas bancas de jornal, a 15 pilas reais, 20 álbuns cruciais, com encarte luxuoso, contendo ótimas fotos e reportagens, que esmiuçam a vasta e rica obra de Chico Buarque de Hollanda. O Depredando, que quer compartilhar com a galera que por aqui aporta o que de melhor se escreve e pensa sobre música por aí, além de tornar acessível as próprias obras, tomou a liberdade de reproduzir acima uma parte do texto do volume #03 da coleção, com reportagem de Ruth Barros e edição de José Ruy Gandra. Aproveitem e disseminem!)


CHICO BUARQUE Meus Caros Amigos [1976]

Um comentário:

Anônimo disse...

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