Uma das representações mais antigas da melancolia que se conhece, ao menos no Ocidente, remonta à Idade Média. Está associada ao rígido controle das pulsões imposto pela Igreja Católica aos monges recolhidos ao isolamento dos mosteiros. Na iconografia medieval da melancolia encontra-se com freqüência a figura de um pobre monge assolado por figuras diabólicas que representam toda a sorte de tentações a que ele deveria resistir. A acedia, prostração da vontade que acometia o cristão dedicado a sacrificar todos os prazeres mundanos para melhor servir a Deus, é uma forma melancólica de rendição diante das exigências imperiosas de um corpo que, como viria a proclamar Lacan sete ou oito séculos mais tarde, não tem condições de sublimar todas as demandas de satisfação pulsional.
A repressão auto imposta exige tanto esforço da consciência e tamanha disciplina do corpo que acaba por enfraquecer o próprio sentido do sacrifício. A acedia, “retração da alma diante do objeto de seu desejo” (Yves Hersant), apela ao Diabo, uma vez que o penitente sente-se esmagado pelo tamanho da renúncia que se obriga a fazer. A figura lendária de Santo Antonio atormentado pelas tentações foi objeto de uma novela escrita por Flaubert, já no século XIX. “No fundo, não amo a Deus...”, queixa-se o personagem, abatido pelo “demônio do meio-dia” da melancolia.
O princípio do prazer é o que dá sentido à vida, escreveu Freud, já bem perto da nossa era. A recusa radical a todos os prazeres destrói o sentido da nossa passagem por este mundo, ainda quando esta se orienta em direção aos mais altos ideais.
Tão longe, tão perto. O que sabemos nós sobre a acedia medieval, em pleno século XXI? Existe alguma afinidade entre os sacrifícios auto-impostos pelos antigos monges e a liberdade com que os filhos do terceiro milênio predispõem-se ao desfrute de todos os prazeres? Existe alguma semelhança entre a antiga condenação cristã contra o gozo e a convocação permanente que apela a que o sujeito contemporâneo se entregue sem reservas a todas as tentações?
Bem: nem todas. As tentações da gula, por exemplo, são hoje ainda mais malditas do que na idade das trevas. As da preguiça e da indolência, nem se fala. O prazer, em nossa era, está intimamente vinculado ao movimento e à atividade. Os corpos pós-modernos têm que dar provas contínuas de que estão vivos, saudáveis, gozantes. Ao trabalho, moçada! A quietude não tem nenhum prestígio na era da publicidade, das raves embaladas a ecstasy, dos filmes de ação. Estamos liberados para usufruir todas as sensações corporais, mas para isso o corpo deve trabalhar como um escravo, como um remador fenício, como um condenado a trabalhos forçados. Anorexias, bulimias, seqüelas causadas pelo abuso de anabolizantes e de moderadores de apetite sinalizam a permanente briga contra as tendências do corpo a que se entregam, sobretudo, os jovens, numa sanha disciplinar de fazer inveja ao pobre Santo Antonio.
Tão longe, tão perto. Temos a liberdade, ou melhor, temos a obrigação de nos permitir todos os prazeres sexuais. Seria ótimo, se não fosse obrigatório. Quem não conhece o caráter desmancha-prazeres até das práticas mais libertinas, quando impostas pelo superego? Seríamos livres se não nos sentíssemos obrigados a dar provas permanentes de nossa capacidade de gozar. Seríamos mestres do hedonismo se não estivéssemos tão vigilantes em relação às performances sexuais, tão preocupados com as menores imperfeições de um corpo que se oferece ao outro como pura imagem. Seria ótimo, enfim, se estes corpos estreitamente vigiados não tivessem perdido algumas de suas capacidades básicas, essenciais ao próprio prazer.
Como por exemplo, a capacidade do abandono contemplativo. Há muita atualidade em Aristóteles, que inspirou Freud a escrever que o prazer dá sentido à vida. A Ética de Aristóteles não prega contra os prazeres, como viria a fazer o cristianismo, mas propõe uma hierarquia entre eles. Aristóteles não condena os prazeres puramente corporais: considera-os inferiores. Para ele, o prazer superior é o da contemplação: esta capacidade de conectar-se com o mundo num certo estado de silêncio do corpo e de desligamento da consciência auto-vigilante. A contemplação exige que se esteja em paz com o corpo e que a consciência esteja aberta ao momento, livre da pressão das fantasias e das exigências do superego. Condições semelhantes às exigidas para o desfrute dos prazeres sexuais. Mas nunca estivemos tão submetidos à tirania das fantasias prêt-à-porter e aos imperativos superegóicos da moral do gozo.
A modernidade resulta de um longo processo de disciplina e de auto-observação dos corpos. O Processo Civilizador, do sociólogo alemão Norbert Elias, é uma minuciosa investigação sobre a gênese da formação do que é hoje, para nós, o corpo civilizado normal. A socialização das crianças pequenas, desde as primeiras formações das sociedades de corte, consistia (como ainda hoje) no aprendizado de uma série de controles corporais. Aprende-se desde cedo como é que se anda no meio dos outros, como é que se come em presença de estranhos, como se controlam os impulsos corporais em público.
A criação da moderna esfera privada nas sociedades liberais é indissociável da introjeção dos mecanismos de controle dos impulsos e dos afetos, na vida pública. Freud considerava o desenvolvimento de uma instância psíquica encarregada do auto-controle como um avanço da civilização. A auto-disciplina afetiva e corporal é condição do engajamento dos sujeitos na ordem social, diria Foucault, para quem a submissão voluntária é o braço subjetivo do poder. O auto-policiamento permanente é o preço a ser pago pela vida moderna, sobretudo nas cidades.
Mas houve uma transformação importante nos termos desse controle, acompanhando a mudança do capitalismo, desde a fase produtiva do início do século XX até a fase consumista dos nossos dias. Passamos de uma economia psíquica do adiamento do prazer para outra, do imperativo do gozo. A moral do self made man foi substituída pela moral do body-building. Isto não significa que em nossa era os corpos em exibição no mercado da imagem não estejam submetidos a formas de controle talvez tão rigorosas quanto as que torturavam os monges medievais. Fazer do corpo uma imagem oferecida ao olhar crítico do Outro exige muita disciplina, muito controle e, sim, muita repressão.
Body-building americanófilo: o puritanismo pós-mê? |
A quietude contemplativa, assim como a fruição sexual, só são possíveis se o corpo não estiver permanentemente vigiado pelo eu, auto consciente da imagem que pretende apresentar em público. Não devemos confundir a dimensão libertária do desejo com a dimensão superegóica da cultura do narcisismo corporal. Jean-Jaques Courtine detectou uma continuação do puritanismo na cultura norte-americana do body-building. Para Courtine, a sanha do fisioculturismo que data dos anos 1980 “não corresponde a um laisser-aller hedonista, mas a um reforço disciplinar, a uma intensificação dos controles. Ele não corresponde a uma dispersão da herança puritana, mas antes a uma repuritanização dos comportamentos cujos signos, de modo mais ou menos explícito, multiplicam-se hoje”.
Hoje, o chamado amor próprio depende da visibilidade. Não se trata apenas da beleza. Não basta ter um rosto harmonioso, um corpo bem proporcionado. É preciso aumentar a taxa de visibilidade, ocupar muito espaço no mundo. É preciso fazer a imagem crescer. Inflar os bíceps, as nádegas, os peitos, aumentar as bochechas, esticar o comprimento dos cabelos. A receita de beleza no terceiro milênio deve ser: muito tudo.
Não importa que com isso as mulheres fiquem mais ou menos parecidas com os standarts oferecidos pelos esteticistas. Um homem pode olhar as moças no bar ou na fila do cinema e classificá-las pelas características das intervenções que elas fizeram: seios de silicone, olhos arregalados por botox, cabelos alongados, lifting, dentes branqueados. Do ponto de vista delas o que importa é garantir um lugar de destaque nas vitrines do mercado das imagens.
Foto: Silvio Ribeiro |
Seria ingenuidade criticar a nova onda das formas siliconadas em nome de um ideal de corpo natural. O corpo humano nunca foi natural. As tribos mais primitivas se distinguem umas das outras pelas alterações estéticas, simbólicas e rituais nos corpos de seus membros. Do botox aos botocudos, do silicone às anquinhas, das escaras às tatuagens atuais, os corpos humanos são sempre desnaturados pelas práticas culturais. O que há de novo é o poder da tecnologia intervir cada vez mais na estrutura dos corpos, e o poder do marketing, que torna essas intervenções quase imprescindíveis. Não deixa de ser irônico que o padrão estético imposto pela tecnologia mais avançada se assemelhe ao dos corpos femininos do século XIX: as nádegas protuberantes, modeladas nas academias, substituem as anquinhas; as barrigas lisas imitam as cinturinhas de vespa obtidas com o uso de espartilhos. As filhas do pós-feminismo não medem sacrifícios para atrair os olhares masculinos. Ou a inveja das outras mulheres. Ou a aprovação do espelho, esta versão caseira da telinha.
E a prova dos nove do sucesso, qual será? O acesso aos mistérios do sexo e do desejo sexual? Não creio. O desejo não se dirige à perfeição, dirige-se ao enigma. Quanto ao erotismo, será que o sexo praticado entre os bombados e as siliconadas é mais interessante, mais inventivo, mais sacana do que o sexo entre pessoas fisicamente comuns? Conseguiremos ser, ao mesmo tempo, escravos da imagem e mestres da libertinagem?
Como o Santo Antonio de Flaubert, que já não é mais capaz de amar o Deus que lhe impõe tantas renúncias, os jovens escravizadores dos corpos do século XXI já perderam de vista a divindade à qual oferecem seus sacrifícios. A forma contemporânea da acedia medieval é o tédio que vitima jovens casais, apartados do saber inconsciente sobre o desejo sexual na medida em que obedecem cegamente à exigência superegóica de construir um corpo reduzido à dimensão de imagem sem interioridade, sem história, sem nenhum vestígio das imperfeições da vida.
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in: A Fratria Órfã - Conversas Sobre a Juventude
Editora Olho D'Água, 2008.
Editora Olho D'Água, 2008.
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