sexta-feira, 7 de novembro de 2008

:: Arrigo Barnabé ::


ARRIGO BARNABÉ

"Clara Crocodilo" (1980)

por ROGÉRIO SKYLAB


Eu não vivi a experiência do tropicalismo nem a ditadura militar. Para a minha geração essas duas referências nunca chegaram a ser marcantes no sentindo vivencial do termo, muito menos para mim que sempre tive uma família pacífica, para não dizer alienada. Conheci filhos de pais torturados pela ditadura militar e para esses, de uma certa forma, 68 continua. Pra mim não: nada mais longe do que isso.

Esse preâmbulo serve para dar a devida dimensão a um acontecimento aparentemente sem nenhuma importância: a chegada às minhas mãos de uma fitinha cassete, contendo as músicas do disco Clara Crodolilo. Quem me apresentara foi Sérgio Shuller. Na ocasião, 1982, fazíamos Faculdade de Letras na UFRJ, localizada na Av. Chile. É curioso que Sérgio dizesse parte daquele contingente citado acima de "filhos de pais torturados", porque todo seu movimento era justamente no sentido de negar esse fato. Fazíamos parte de grupos de poesia, líamos Rimbaud e fundamentalmente ele discutia muito com a mãe, formada no quado do antigo partido comunista. Claro que Caetano era uma referência, assim como Chico Buarque e toda mpb. E eu ia vivendo essa estória meio a contragosto, como se tivesse sido empurrado para dentro dela.

Até que a fitinha chegou. Muito mal gravada por sinal. Que som quebrado era aquele? Não compreendi nada. Uma voz gutural, e outra, mais aguda, que eu já tinha ouvido. Os sons de metais, a guitarra, a bateria, as canções completamente esquisitas. A minha turma não estava compreendendo nada, com exceção do Sérgio que lançava-me uns olhares cúmplices. Aquela primeira audição foi marcante: eu sabia que tinha um disco importante em mãos, mas não compreendia nada. Eu sabia naquele momento que haveria de ouvi-lo por muito tempo. E assim foi.

Hoje pensando no choque que representou Clara Crocodilo, produzido em 1980 (produção independente de Robinson Borba) com Arrigo Barnabé e a banda Sabor de Veneno, e trazendo no cast pessoas como Paulo Barnabé (Patife Band), o baixista Otávio Fialho, Itamar Assunção, Vânia Bastos, Tetê Espíndola, para não mencionar o texto das músicas e a capa do disco, é que de fato um novo mundo se descortinava. Era um golpe de karatê na MPB já moribunda.

Fodeu!!! Caetano deve ter percebido o estrago, tanto que tentou seduzir o inimigo. A música "Língua" traz uma menção explícita a Arrigo. A partir daí, o rock Brasil entra em cena. Basta pensarmos na Blitz, a 1a das bandas a surgir: uma versão carioca e ipanemense de "Clara Clocodilo". Estamos sob um outro sistema: a partir de Clara Crocodilo a reflexão dá lugar à ação; o banquinho e o violão dão lugar aos gritos e aos movimentos largos; a música tônica dá lugar aos ruídos, ao atonal e ao dodecafonismo.

Em referência à MPB, em nível de texto, desde a bossa-nova, tem-se a idéia da meditação, da reflexão, da mensagem a ser codificada. Quando a gente pensa no axé, nos grupos de pagode, ou mesmo numa música sertaneja, ainda que sejam formas exorbitantes, a MPB permanece dentro delas, senão como estrutura musical, ao menos como um modelo ao qual elas se aproximam ou se afastam. O sujeito na MPB está preservado: é ele que dá unidade a possíveis dissonâncias que são rapidamente resolvidas na tônica.

A pergunta "onde andará Clara Crocodilo?", pergunta essa que eu reintroduzo no "SKYLAB III", abre uma nova perspectiva: não se fala mais do sujeito, mas sobre o sujeito; se está além dele. Após possíveis respostas sobre onde andará Clara, chega-se nesta: "Será que ela está adormecida em sua mente, esperando a ocasião propícia para despertar e descer até seu coração, ouvinte meu, meu irmão?" Essa última possibilidade nos desloca para fora do sujeito, objetivando-o e dando-lhe um campo de foco. E esse é o último momento do disco, como se para chegarmos a tal revelação fosse preciso uma longa travessia: não só pelas músicas anteriores como pelos 20 anos que passou aprisionada num disco de sebo. De fato essa idéia de tempo contrasta com o imediatismo do mercado. E talvez tenha sido esse o pecado capital do rock brasileiro.

Em verdade, o rock Brasil traiu suas origens. A Blitz é um bom exemplo, porque foi a partir dali que o rock brasileiro dava os seus primeiros passos - isso, claro, sem considerar experiências isoladas e anteriores como os Mutantes. Mas foi com a Blitz que se desencadeou um movimento articulado que viria a dar no "Rock Brasil". E a experiência bem sucedida do movimento deve-se única e exclusivamente a essa traição: aproveitam-se as inovações no tocante a idéia de coro, a narrativa descolada da música, a total informalidade do narrados, coisas que estão presente em Clara Crocodilo, mas a estrutura musical continua intacta, dentro do universo da MPB - tão convencional como esta. Daí porque a sensação de que o rock brasileiro foi muito mais reformador que revolucionário: muda-se exteriormente toda a mis-èn-scène da MPB, mas interiormente a estrutura é intocável.

Talvez o futuro da música brasileira acene numa outra direção e algumas bandas, muito precariamente, já começam a dar sinais nesse sentido. A semelhança com a MPB é puramente externa - porém ao nível da estrutura, internamente falando, há uma profunda inversão. E a idéia de perversão é justamente essa. Os refrões não foram abolidos,mas têm uma outra função. O canto continua presente, assim como a guitarra, o violão, o baixo. Como em Clara Crocodilo, tudo isso está presente, mas a sensação de estrago, de terra arrasada é grande. Revivendo aquela primeira audição, a primeira idéia que surge é a falta de chão. Nada disso foi sentido ouvindo os grandes ícones da música brasileira. Seja Tom Jobim, seja Villa Lobos, você está em território seguro: nenhum susto, nenhuma sensação de mal estar; tudo já foi devidamente explorado antes: em Tom Jobim o jazz americano, em Villa Lobos o folclore nacional com a dignidade da música clássica. Mas em Arrigo há uma junção insólita: a música contemporânea com suas dissonâncias e seu atonalismo mais a cultura de massa. E isso deixa no ouvinte uma certa perplexidade: tudo que é dito em Clara Crocodilo é estranho e familiar ao mesmo tempo. "Você, ouvinte incauto, que no aconchego do seu lar, rodeado de seus familiares, desafortunadamente colocou esse disco na vitrola... o pesadelo começou."

É claro que esse pesadelo foi recalcado. A cultura tem essa função e o rock brasileiro serviu para isso. Em todas essas palavras, eu confesso que sempre tive em mente a idéia de não universalizar o sentido do rock. Até mesmo porque, ainda que o modelo do rock brasileiro seja o britânico ou o americano, a sua histórica começa com o declínio da MPB. Por outro lado, Beatles não seriam o que são sem o "Álbum Branco" e "Sargeant Peppers", experiências que estão longe de ter uma correspondência no rock nacional. A mesma coisa em relação a Frank Zappa. Portanto, é importante que relativizemos os termos.

Mas todo o recalcado volta. Outro dia, entrevistado por um grupo de estudantes, eu ressaltava a importância para a arte contemporânea da idéia da diferença. E um desses estudantes me perguntara na ocasião "por que a idéia da diferença seria a mais importante?". Eu diria que não é uma questão de importância, mas de ocultamento. Assim como a História da Filosofia é a história da Metafísica ou do ocultamento do Ser, segundo Heidegger, poderíamos também pensar na arte e portanto na MPB, esse mesmo processo de ocultamento. O prívilégio à loucura ou ao "non sense", que podemos vislumbrar hoje em algumas bandas independentes, participaria desse mesmo movimento da arte contemporânea no sentido de um desnivelamento. E o que é ocultado senão a physis (natureza para os gregos) ou o que se convencionou chamar modernamente de "politicamente incorreto"? Tudo aquilo que não tivesse uma lógica aparente ou fosse contraditório em si; tudo que estivesse fora do minimamente aceitável, estaria alijado do processo produtivo. Pensar a diferença é justamente pensar o que está à margem, o que ainda não foi domesticado, o que ainda não tem nome. E para tanto é preciso ser trágico.

Não existe uma história do trágico. Até mesmo porque ele aparece repentinamente, abruptamente. "Araçá Azul" é o momento trágico na MPB, rapidamente ocultado. Assim como foi "Cabeça Dinossauro" no rock brasileiro. Daminhão Experiença é tão trágico que a MPB permanece resoluta em desconhecê-lo. Mas Clara Crocodilo, mais do que Tubarões Voadores ou Gigante Negão, é a expressão mais acabada do que poderíamos denominar "trágico" na música brasileira. Até mesmo porque tudo aquilo foi construído conscientemente. E também porque não existe antecedente nessa junção da música erudita, via atonalismo e dodecafonismo, com a música popular. Essa junção insólita extrapola todos os códigos: é algo novo no Brasil e no mundo.

Fazer música para mim é não encontrar ressonância no punk, nem no Rock Brasil, e nem no hip-hop - esse último, hoje em dia, tão em voga através da MTV e selos supercultuados como o Instituto. O que significa estar também a mil milhas da MPB. Porque fazer música é fundamentalmente captar o que ainda não foi transformado em ideologia. O mais terrível é ouvir artistas supercultuados, como é o caso de Marcelo D2, passando pelos Racionais MCs, Nação Zumbi, e sentir em toda a verborragia exposta o laivo de moralismo que a sustenta. Fazer música pra mim é de uma certa forma repetir Clara Crocodilo. Ou então repetir infinitamente aquele momento inusitado quando ouvi pela 1a vez aquela fita cassete. Sérgio Schüller continua me olhando enquanto eu vou combinando alguns acordes para uma nova música. Logo ele que nunca mais encontrei. Lógico que existe um abismo entre essas minhas músicas e Clara Crocodilo. Mas o processo de repetição é esse mesmo: o eterno retorno do diferente.


(in: Noite Passada um Disco Salvou Minha Vida
- org: Alexandre Petillo. Ed. Geração Editorial)



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3 comentários:

Anônimo disse...

Ótimo blog, ótimo disco, ótimo texto do skylab!
Muito obrigado por disponibilizar maravilhas como essa!

Anônimo disse...

valeu pelos elogios e pela força! que bom q os posts tão sendo curtidos! ;)

 ­adan ­arruda. disse...

olha, eu venho aqui sempre que posso. na maioria das vezes não pego nada.
acho que vou falar no meu blog sobre o blog de vocês.
foi a alessandra quem me indicou vocês.
abraço.