quinta-feira, 21 de agosto de 2008

:: Nina Simone ::

NINA SIMONE
por CLARAH AVERBUCK
(escritora e blogueira)


"The blues are the roots; everything else is the fruits."
WILLIE DIXON

O blues é a raiz. Todo o resto são os frutos. Por que algumas frases perdem a poesia quando traduzidas? Bom, perdem a poesia mas não o significado. O blues é a raiz de tudo. De todo o rock que escuto hoje. Quando os brancos tentaram tocar blues, saiu o rock. E cá estamos nós hoje no mundo do rock, tão longe da simplicidade e da singeleza e da tosqueira do blues. Tosqueira no melhor dos sentidos, porque eu sou a favor do tosco. O tosco é bom. O tosco é verdadeiro. Seja tosco você também.

A Nina Simone, pra mim, era uma blueswoman. Ela lançou milhares de discos, muitos com big bands, muitos com orquestras e firulas. Mas a essência da Nina é ela e o piano. Só. Espancando e acariciando, doçura e fúria, revolta e candura, rebeldia e inocência. Simplicidade. A Nina blueswoman é quem eu levaria para uma ilha deserta se soubesse fazer uma vitrola de folha de bananeira e espinha de peixe.

Ela me mata. Ela me toca e me mata e me torce e me faz ouvir discos inteiros incessantemente por dias a dio, me faz cantar de olhos fechados e os punhos cerrados deitada no escuro do meu quarto, me faz aprender uma língua que não sei só para poder cantar "Ne Me Quitte Pas" direito, me faz escrever por noites e noites e noites só por causa de uma frase. A frase pode nem ser dela, mas parece que tudo que vem dela, é dela. (...) Ela rouba as músicas e ninguém nunca consegue pegar de volta.

Tem uns discos ao vivo onde ela fica conversando com o público e rindo, e obrigando-os a cantar e tendo total controle sobre aquela gente. É impossível dizer "não" à Nina Simone. Dra. Nina Simone. E quando ela ri muito porque esqueceu um pedaço da letra, também fico rindo aqui, porque eu amo aquela mulher e a risada dela me deixa feliz. E quando ela chora cantando "Why? (The King Of Love Is Dead)", em homenagem a Martin Luther King, eu choro junto, porque é muito real, muito fodido, muito forte. Como tudo que ela canta. A voz dela tem a densidade de uma bofetada, não dá para ficar impassível. (...) Pelo amor de deus. Quantas vezes já rebolei sozinha em casa de salto ouvindo essas músicas, quantas vezes já fui uma negra em um palquinho esfumaçado cantando essas músicas só para mim, quantas vezes já chorei sozinha, só eu e ela.

O jeito que a Nina tocava piano era único. Um acorde e já dava para saber quem era. Um jeito que só quem sentiu muita dor consegue, só quem tem um tornado por dentro consegue, só que tem o blues consegue. Nina, Nina. Que vontade de abraçá-la. Abraçá-la por tudo que ela fez e foi. Vi a Nina em 99, em um lugar cheio de brancos ricos que estavam lá para ver um show de jazz, daqueles que os ricos gostam, bem asséptico, bem sem emoção, sem cor como eles. Coitados. Mal sabiam eles que era a Nina, a Nina bêbada e acabada, sofrida, velha, mal-humorada e sem saco. Ninguém entendeu nada. Uns poucos ali sabiam que a Nina era só a cantora e a pinista de jazz (blues!) mais foda de todos os tempos. Só queria abraçá-la naquele dia. Abraçá-la, dizer obrigada e eu te amo. Fiquei com medo de levar um coice, achei melhor ficar na minha quando ela passou no meu ladinho nos bastidores, bem pertinho de mim, sem nem saber quantas vezes dormiu comigo.


A Nina era minha amiga. Uma grande companheira de momentos fodidos e solitários onde ninguém estava lá, ninguém escutava, ninguém entendia, estava a Nina do meu lado, cantando você tem que aprender, minha nêga, a sofrer e quebrar essa sua carinha bonita. Você tem que aprender e baixar a cabeça às vezes e se resignar e conviver com um coração partido. Me mostrando que mesmo não tendo casa, nem amor, nem diploma, carro ou um aparelho de som, nem roupas de inverno, nem pilhas no discman, nem comida ou um corte de cabelo, nem cheque, dinheiro ou cartão, nem perfume, nem meias sem furos, nem giletes, nem chuveiro quente, nem gás na cozinha, eu ainda tinha a minha vida e sangue correndo nas minhas veias. Me fazendo dizer "vai, faz o que você tem que fazer, mesmo que eu nunca mais possa te beijar, vai viver a sua vida." E ele foi. E eu fiquei, eu e a NIna e os meus blues. Melhor assim. Porque segundo o Son House, a única maneira de ter os azuis (ai) é sofrendo por amor, é quando o coração dói. Eu e a Nina sofremos. Eu e a Nina temos os blues.

Eu nunca colhi algodão. Eu nunca sofri porque um líder da minha causa foi assassinado. Eu nunca vou saber o que era ter que entrar pela porta dos fundos e usar um banheiro diferente. Eu sou branca. Translúcida, para ser mais exata. Apesar de ter certeza que sou uma negra cantora de 111kg, nascida no Mississipi, sacudindo os quadris no calor, apontando o dedo com uma unha de quinze centímetros e falando alto enquanto mexo o pescoço, não, não: eu sou branca. Não adianta, não vou cantar como uma negra, nem sentir na pele o que todos os negros sentiram e ainda sentem. Nunca. Mas tudo bem, porque mesmo sendo desbotada, eu tenho os azuis. E quem me ensinou isso foi a Nina Simone, que agora está lá em cima, na grande jam session do céu, com uma garrafa de Bourbon e um sorriso no rosto, cantando pra sempre no meu coração.


(in: Noite Passada um Disco Salvou Minha Vida
- org: Alexandre Petillo. Ed. Geração Editorial)


DOWNLOAD:

NINA SIMONE ANTHOLOGY (THE COLPIX YEARS)

Disco 01
: http://www.mediafire.com/?evab2m5k1qs (76 MB- 160kps)
Disco 02: http://www.mediafire.com/?hwagokrecla (82 MB - 160kps)

6 comentários:

Anônimo disse...

Um dos textos mais passionais, empolgantes e idiossincráticos de um livro muito legal. De agora em diante, Depredando vai publicar alguns capítulos interessantes do "Noite Passada Um Disco Salvou Minha Vida", que tem 70 relatos de gente legal sobre álbuns de importância vital. Como fã da prosa da Clarah, não podia deixar de começar por esse fodástico tributo à Nina Simone - uma homenagem digna para a diva!

p.s.: txt publicado aqui com permissão da clarah. valeu, lady averbuck!

Dida disse...

Salve galera, tudo bem !

Muito bacana este blog, já está entre meus favoritos ! Convido o pessoal do Depredando pra fazer uma visita lá no meu blog, o Noise Brigade (http://www.bringnoise.blogspot.com)
Se quiserem trocar links, só deixar um recado por lá !

Grande abraço a todos e continuem com o trampo!

Dida disse...

Obrigado Fran ! Tem muita informação e coisas interessantíssimas aí no Depredando, mais coisas bacanas pra minha discoteca !

E já estamos linkados Eduardo, tudo nosso, rsrsrs

Vamos espalhar boa música por aí !

Abração a todos

Dida

P.S.: Convido vcs para darem uma fuçada no meu outro blog, só de ska e raridades from Jamaica: http://www.skafoundation.blogspot.com

Anônimo disse...

Valeu rapá! Tô vendo que vou expandir meus conhecimentos de ska pra carai com essas tuas dicas. 'Cê conhece TOKYO SKA PARADISE? O Marco, outro dos Depredadores, me apresentou esses japas loucos esses dias e eu achei fodaço... Vale mó a pena!

Abs!

Dida disse...

Opa, conheço sim, e deve ter lá no Ska Foundation, se não me engano uns 3 disquinhos do Tokio Paradise !

Se vc curte ska do Japão, recomendo tb Determinations,The Ska Flames e The Miceteeth, só o puro creme do milho (tem tudo lá)...

Hj tem show do Slackers no Club Inferno da Augusta, programa imperdível...

Abxxx

Unknown disse...

OTIMO!!! AS PALAVRAS SEM COMENTARIOS E DIFICIL EU ESCREVE-LA, MAS DIANTE DESSE TEXO O QUE POSSO DIZER? ISSO E MAIS UMA PESSOA QUE SABE O QUE A VIDA E MUSICA BOA. EU ESTAVA ASSISTINDO UM FILME OS DONOS DA RUA, COM A PARTICIPAÇÂO DO RAPPER ICE-CUBE
EM UMA CENA TEM O PAI COM SEU FILHO NO CARRO, DE REPENTE TOCA UMA MUSICA, UMA VOZ QUE FIQUEI OUVINDO E O ATOR DISSE: E MINHA MUSICA FAVORITA DAQUELE MOMENTO ERA MINHA TAMBEM... ME INFORMEI ATE ACHA-LA..... UM ABRAÇO