quarta-feira, 28 de março de 2012

Millôr Por Si Mesmo: Auto-retrato de um Humorista Nato


Foi-se o Shakespeare do Méier, o Montaigne tupiniquim, o filósofo do Pasquim. O Brasil está um gênio mais pobre. Que desgraça gente assim ter que morrer! Mas que bom um homem desses ter vivido!

MILLÔR FERNANDES (1924-2012) - R.I.P.

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Autobiografia De Mim Mesmo
À Maneira De Mim Próprio (1968)

E lá vou eu de novo, sem freio nem pára-quedas. Saiam da frente, ou debaixo que, se não estou radioativo, muito menos estou radiopassivo. Quando me sentei para escrever vinha tão cheio de idéias que só me saíam gêmeas, as palavras - reco-reco, tatibitati, ronronar, coré-coré, tom-tom, rema-rema, tintim-por-tintim. Fui obrigado a tomar uma pílula anticoncepcional. Agora estou bem, já não dói nada.

Quem é que eu sou? Ah, que posso dizer? Como me espanta! Já não se fazem Millôres como antigamente! Nasci pequeno e cresci aos poucos. Primeiro me fizeram os meios e depois as pontas. Só muito tarde cheguei aos extremos. Cabeça, tronco e membros, eis tudo. E não me revolto. Fiz três revoluções, todas perdidas. A primeira contra Deus, e Ele me venceu com um sórdido milagre. A Segunda com o destino, e Ele me bateu, deixando-me só com seu pior enredo. A terceira contra mim mesmo, e a mim me consumi, e vim parar aqui.


Vêem o que sou? E onde estou? E por que foi? Ah, sim, Millôr, é o que eu dizia. Nasci no Meyer, aos nove anos de idade, onde é que já ouvi isso? Aqui estou porém, tão magro e tonto, vago e preocupado: no escuro não enxergo, não entendo do que não sei, paro onde me detenho, vou e volto cheio de saudades. Pois, se fico, anseio pelo desconhecido. Se parto, rói-me a separação. Sou como toda gente. Já me lembro: estudei na Escola Enes de Sousa, no Meyer, onde, depois, fundei a Universidade do mesmo nome. Mas meus cursos maiores são de rua (e uma ou outra estrada), com seus currículos vitais de malandragem e medo.

Dou um boi pra não entrar numa briga. Dou uma boiada pra sair dela. Aos dez anos de idade vendi meu primeiro desenho pra jornal e me tornei alvo da admiração geral (minha mãe e minha avó). Aos quinze já era famoso em várias partes do mundo, todas elas no Brasil. Pois sou popular por natureza, por mais que me esforce pra ser hermético e profundo. Se eu chego e digo que achei um ninho de mafagafos com sete mafagafinhos, todos percebem logo que quem os desmafagafizar bom desmafagafizador será. Meu maior orgulho profissional é Ter sido publicado, há dez anos, e já como folclore, no almanaque da Saúde da Mulher. Talvez porque esse almanaque fosse uma das publicações mais profundamente populares de minha infância, ou porque as coisas mais preciosas da vida sejam Saúde e Mulher (ôba!). Venho, em linha reta, de espanhóis e italianos. Dos espanhóis herdei a natural tentação do bravado, que já me levou a procurar colorir a vida com outras cores: céu feito de conchas de metal roxo e abóbora, mar todo vermelho, e mulheres azuis, verdes, ciclames. Na bandeira que fiz pra minha Pátria, o lilás representa a cor das nossas florestas, o carmim a cor das nossas riquezas naturais, o amarelo a cor do nosso céu em dias verdes. Tudo isso, naturalmente, sob o dístico Desordem e Retrocesso.

Ordem e Progresso
Desordem e Retrocesso
(charge: Angeli)

Ah, como padeço!

Dos italianos que, tradicionalmente, dão para engraxates ou artistas, eu consegui conciliar as duas qualidades, emprestando um brilho novo ao humor nativo. Posso dizer que todo o País já riu de mim, embora poucos tenham rido do que é meu.

Sou um crente, pois creio firmemente na descrença. Não creio em Deus, mas sei que Ele crê em mim. Creio que a Terra é chata. Procuro em vão não sê-lo. Creio que as paralelas se encontram nos paralelepípedos. Acredito também numa lógica de ferro como base para um pensamento mais amplo que é ilógico, lolobrígido, subjetivo e animal. Como os checos, eu posso dizer SVOBODA SUVERENITA. Ou melhor: ZA SVOBODU DUBCEKA CERNIKA. O que, ambas as frases literalmente, não tenho a menor idéia do que querem dizer. Mas estou disposto a morrer por elas, como tanta gente morre por outras frases que também não entende. Para a vida e para a morte, como dizia Dom Pedro, às margens do Ipiranga, depois de satisfazer suas necessidades básicas.

Não me acho possuidor de um poder divino, mas de vez em quando solto meus trovões, e algum raio que os parta. Quanto a certos chefes de Estado, acho que devemos lhes dar todo o nosso apoio para ex-presidentes. E como recompensa exijo pouco - apenas, se a coisa endurecer, ser fuzilado por último. Pois em matéria de Democracia a que eu aprecio mesmo é a do Papá Doc que, esse sim, não faz discriminações a favor de ninguém. Fuzila amigos, inimigos e parentes na mesma proporção e com a mais serena equidade.

Apesar da escola, sou basicamente um autodidata. Tudo que não sei sempre ignorei sozinho. Nunca ninguém me ensinou a pensar, a escrever ou a desenhar, coisa que se percebe facilmente, examinando qualquer dos meus trabalhos.

A esta altura da vida, além de descendente e vivo, sou, também, antepassado. É bem verdade que, como Adão e Eva, depois de comerem a maçã, não registraram a idéia, daí em diante qualquer imbecil se achou no direito de fazer o mesmo. Só posso dizer, em abono meu, que ao repetir o Senhor, eu me empreguei a fundo. Em suma: um humorista nato. Muita gente, eu sei, preferiria que eu fosse um humorista morto, mas isso virá a seu tempo. Eles não perdem por esperar.


DICIONÁRIO DE IDÉIAS IMEDIATAS

ANATOMIA: Uma coisa que os homens também têm mas que, nas mulheres, fica muito melhor. Embora haja quem discorde.

CIVILIZAÇÃO: Consiste em inventar tantos processos de locomoção que, afinal, ninguém pode andar.

HOMEM: Que macaquinho mais fdp!

MORIBUNDO: Morto que ainda não morreu.

MUNDO: Deste, nada se leva. Dos outros se traz apenas pedras para exame em laboratórios.

MÚSICA: Não há nada que tenha alcançado a suprema grandeza do silêncio.

PAIS: São, geralmente, de outra geração.

REIS: Os que ainda existem demonstram apenas a força da inércia.

SEXO: É completamente incompreensível o interesse em torno do assunto depois de tantos milhares de anos de uso.

VIDA: Se eu tivesse nove andaria miando nos telhados.

MILLÔR FERNANDESPasquim #113.



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