Luiz Tatit |
...um tributo à assimetria. Acho que sem ela a canção brasileira não seria o que é. Ou seria pela metade. Teríamos as soluções métricas e harmônicas impecáveis de Tom Jobim e João Gilberto, repletas de defasagens e dissonâncias, mas não poderíamos saborear os miraculosos desencaixes silábicos e acentuais que nos põem de frente com a estética crua da nossa linguagem oral. Isso é com Jorge Ben, que, a pretexto de fazer canções para "animar a festa", tem demarcado um território único de criação para a nossa música pop.
A Tábua de Esmeralda, 1974, é talvez a expressão mais concentrada de seu mundo mitológico, povoado por heróis, profetas, semideuses e espaços siderais que não estão no gibi mas parecem dele ter saído. Como é bom ouvir a 2a parte de "Os Alquimistas Estão Chegando", aquela que poucos conseguem lembrar e reproduzir pela irregularidade da linha do canto, e poder dizer, junto com o autor, que "[os alquimistas] evitam qualquer relação com pessoas de temperamento sórdido, de temperamento sórdido". Sempre repito esse trecho e, em seguida, lastimo à maneira de Itamar Assumpção: "Por que que eu não pensei nisso antes?"
Todas as brincadeiras rítmicas ou melódicas de Jorge Ben geram temas que vão do singelo ao surpreendente. Do "homem da gravata florida" aos "planetas de possibilidades impossíveis". A partir de um motivo como "vou torcer...", o compositor cria o refrão "...pelas moças bonitas", ou seja, nada mais simples e esperado. Mas logo percebemos que isso é apenas uma "cama" inicial para acomodar as imagens menos prováveis que serão disparadas na sequência. "Vou torcer: pelas coisas úteis que se pode comprar com dez cruzeiros... pela agricultura celeste... pelo Santo Tomás de Aquino... pelo meu irmão... pelo gato Barbieri... pelo meu amigo que sofre do coração", e assim por diante.
É desse disco ainda o clássico "Zumbi", em sua versão mais feliz, que, inexplicavelmente, nunca mais foi reproduzida pelo autor (Caetano Veloso, às vezes, reinterpreta essa versão). Trata-se de um dos seus melhores épicos --- os outros são "Charles, Anjo 45" e "Jorge da Capadócia" ----, que já inicia com uma engenhosa enumeração rítmica de regiões africanas de onde proveio boa parte dos nossos antepassados: "Angola Congo Benguela Monjolo Cabinda Mina Quiloa Rebolo". A melodia que sustenta as estrofes contém um desenho de lamento a cada final de verso. E que versos! "Aqui onde estão os homens / De um lado canas de açúcar / Do outro lado o cafezal / Ao centro os senhores sentados / Vendo a colheita do algodão branco / Sendo colhido por mãos negras / Eu quero ver / Quando Zumbi chegar..."
Sinto como se não pudesse viver sem essa música. E não há cenário melhor para curti-la que uma ilha deserta.
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Texto originalmente publicado na série
"Ilha Deserta", da Folha de São Paulo, p. 124-125.
Ed. PubliFolha. 2003. Editor: Arthur Nestrovski.
p.s.: Em breve, Jorge Ben promete tocar ao vivo este disco na íntegra,
atendendo a intensas tuitagens e a campanhas blóguicas como a do Eu Ovo.
2 comentários:
eu ovo quem? tem que ver essa sua fonte ae...
Mano, esse disco é só a melhor coisa que eu já ouvi na vida.
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