No alvorescer da década do Grunge, Neil Young cometeu um disco seminal: Ragged Glory (1990). Acompanhado pelos comparsas do Cavalo Doido, com quem já tinha gravado algumas das obras mais clássicas do rock setentista (colossos do quilate de Zuma, On The Beach e Everybody Knows This is Nowhere...), o canadense adentrou os anos 90 com esta obra magistral onde convivem várias tendências: a nostalgia e a melancolia, a amargura e o utopismo, a auto-afirmação triunfante e a auto-piedade lamentosa... Como toda obra-de-arte digna desse nome, Ragged Glory é um álbum ambíguo, complexo, irrotulável, fascinante...
É escancarado, em muitos trechos do álbum, um certo ímpeto nostálgico, típico de quem olha para o passado sessentista com doçura e sente falta do "all you need is love" dos Verões-do-Amor de outrora. Duas canções épicas apontam nesta direção - "Love to Burn" e "Love and Only Love" (ambas com mais de 10 min de duração) - nas quais Young celebra em fórmulas simples e marcantes um dos credos elementares da geração Hippie: "love was a winner there... overcoming hate!" Sem vergonha de soar extremadamente otimista, Young anuncia messianicamente que, apesar dos pesares, "love and only love will endure!"
Ecos da utopia hippie dos anos 60 marcam presença também em canções como "Mansion on The Hill", que retrata uma idílica comuna-na-montanha onde "a música psicodélica preenche o ar". "Peace and love live there still", canta Young, saudoso de uma amorosidade fraterna cujo destroçamento Lennon anunciou com seu "the dream is over". Pois Ragged Glory, como seu título sugere, não é apenas uma celebração otimista da Glória, mas também o lamento pelo esfacelamento de um sonho, pelos rasgos no tecido da Utopia outrora forjada em Verões do Amor, em cultos ao Poder da Flor...
Young está longe de ser ingênuo ao cantar seus louvores ao amor e à paz: seu "romantismo" só é convincente, só soa tão autêntico, pois têm como pano de fundo uma outra tendência, esta bem mais crítica e reprovadora. Logo na primeira música, que ilumina bastante as razões de Young para seu estilo-de-vida um tanto recluso, de eremita em seu rancho, ele aponta sua gratidão por sua "casinha na roça" e pela possibilidade de caminhar por aí e se esquecer na paisagem: "I'm thankful for my country home, it gives me peace of mind. Somewhere I can walk alone and leave myself behind."
Profundamente enraizado na cultura norte-americana mais roots (folk, country, blues; Whitman, Steinbeck, Thoreau...), Neil Young não sente-se bem-adaptado à vida nas grandes metrópoles, estes fervilhantes formigueiros humanos e selvas-de-concreto onde é impossível uma caminhada solitária e contemplativa - e onde as neuroses e a "Síndrome de Porco-Espinho" (Schopenhauer) são bem mais frequentes do que o "ideal" younguiano de peace of mind.
Cerca de 7 anos mais tarde, outro dos álbuns cruciais da década, OK Computer, traria esta sensação de sufocamento e asfixia com a megalópole para um novo paroxismo, com Thom Yorke lamentando-se: "vivo numa cidade onde não se pode sentir o aroma de nada... e andamos tomando cuidado com os cracks na calçada". Neil Young, em sua rancheira celebração da vida "caipira", próxima da terra e da vastidão elementar da Natureza, traz o bucolismo para o calor da hora e confronta, por esta via, o desenvolvimento cheio de efeitos colaterais das sociedades capitalistas/industriais. É só passar um tempinho numa grande cidade, canta Young, e logo vêm um enojamento, uma náusea, uma sensação de que "é preciso pensar para sorrir"...
Michael Löwy, no seu magistral A Estrela da Manhã - Marxismo e Surrealismo, frisa as conexões que existem entre romantismo e crítica ao capitalismo, tendência que, me parece, estão intimamente vinculadas em Neil Young, este hopeless romantic que simplesmente não aceita engolir o aburguesamento mesquinho da existência. Como diz Löwy, o romanstimo não deve ser compreendido apenas como uma escola literária do século XIX, mas como
“algo muito mais vasto e profundo: a grande corrente de protesto contra a civilização capitalista/industrial moderna, em nome de valores do passado, que começa no século XVIII com Rousseau e que persiste, passando pela Frühromantik alemã, pelo simbolismo e pelo surrealismo, até os nossos dias. Trata-se, como o próprio Marx já constatara, de uma crítica que acompanha o capitalismo como uma sombra a ser arrastada desde o seu nascimento até o dia (bendito) de sua morte. Como estrutura de sensibilidade, estilo de pensamento, visão do mundo, o romantismo atravessa todos os domínios da cultura – a literatura, a poesia, as artes, a filosofia, a historiografia, a teologia, a política. Dilacerado entre nostalgia do passado e sonho do porvir, ele denuncia as desolações da modernidade burguesa: desencantamento do mundo, mecanização, reificação, quantificação, dissolução da comunidade humana. Apesar da referência permanente à idade de ouro perdida, o romantismo não é necessariamente retrógado: no decorrer de sua longa história, ele conheceu tanto formas reacionárias quanto formas revolucionárias.” (pg. 83)
Neil Young encarna como poucos compositores esta tensão entre a aspiração romântica pela harmonia fraterna e pelo amor entre os homens e a constatação amargurada de que a hostilidade, a guerra e a ganância não cessam de emperrar a concretização das utopias. As promessas de felicidade que não se cumprem conduzem a um estado de espírito que eu chamaria de grungy, uma espécie de rabugência mau-humorada que não é inteiramente desprovida de potencial revolucionário. Em "Fuckin' Up", por exemplo, Young esbraveja com fúria incontida sobre um desnorteio e uma falta de rumo típica de um "mindless drifter on the road" que não pára de se perguntar: "Why do I keep fuckin' up?" As guitarras desvairadas do Crazy Horse acompanham com um pandemônio estes ataques proto-nirvanescos, varrendo o romantismo e água-açúquice e instaurando um clima de catarse e revolta...
Como se pressentisse que um novo terremoto cultural seria deflagrado no rock norte-americano em pouco tempo, Neil Young cometeu em Ragged Glory certos temporais elétricos que "preparavam o terreno" para a tomada-de-assalto que viria, a partir de 1991, com Nirvana, Pearl Jam, Alice in Chains e Soundgarden. Não é à toa que anos depois Young seria figurinha reverenciada publicamente por Eddie Vedder & cia, chegando a gravar um álbum inteiro - Mirrorball, de 1995 - tendo o P.J. como banda-de-apoio.
Como se pressentisse que um novo terremoto cultural seria deflagrado no rock norte-americano em pouco tempo, Neil Young cometeu em Ragged Glory certos temporais elétricos que "preparavam o terreno" para a tomada-de-assalto que viria, a partir de 1991, com Nirvana, Pearl Jam, Alice in Chains e Soundgarden. Não é à toa que anos depois Young seria figurinha reverenciada publicamente por Eddie Vedder & cia, chegando a gravar um álbum inteiro - Mirrorball, de 1995 - tendo o P.J. como banda-de-apoio.
Esta tendência profética e antecipatória, que anuncia a emergência de algo mais bombástico, irado e revoltado nos horizontes da Cultura, às vésperas do estouro de 1991 (the year punk finally broke), é um dos charmes maiores de Ragged Glory. Mas no álbum também há uma faceta melancólica, de quem teme pelo destino da "Mother Earth", submetida aos caprichos insanos de homens-de-poder ególatras e cegos por ambições de enriquecimento...
Os anos 80, convenhamos, foram uma desgraça para as carreiras de muitos artistas respeitáveis: as discografias de Bob Dylan, convertido ao cristianismo e à música gospel, e de Lou Reed, apostando no barulho arbitrário e na poesia blasé, sofrem uma decadência vertiginosa. Neil Young também não conseguiu manter a qualidade de seus trabalhos dos anos 60 e 70 na década de Reagan e Tatcher. Por isso Ragged Glory é também uma espécie de Triunfo Redentor, que reabilita Neil Young para a nova década e o transforma numa espécie de precursor do grunge. Na aurora do grunge, Neil Young volta a ser o maioral.
É como se Young tivesse chegado aos anos 90 com a vasta experiência acumulada de quem viveu na pele vários zeitgeits: a coloridice lúdica e libertária dos sixties, a pretensão megalômana e ególatra do prog, o levante rebelde (e às vezes niilista) do punk, o consumismo descerebrado e cocainômano dos yuppies, e agora estivesse, no limiar de uma renovação cultural iminente, prestando seu testemunho, portando-se como mentor, anunciando um evangelho...
É como se Young tivesse chegado aos anos 90 com a vasta experiência acumulada de quem viveu na pele vários zeitgeits: a coloridice lúdica e libertária dos sixties, a pretensão megalômana e ególatra do prog, o levante rebelde (e às vezes niilista) do punk, o consumismo descerebrado e cocainômano dos yuppies, e agora estivesse, no limiar de uma renovação cultural iminente, prestando seu testemunho, portando-se como mentor, anunciando um evangelho...
Neil Young, que sempre se declarou um peregrino "buscador" de um coração dourado ("keep on searchin' for a heart of gold... and I'm getting old..."), atinge com Ragged Glory uma espécie de cume de sua criação artística. Agindo com grande simplicidade e espontaneidade, Young parece deixar emanar de si, com rédeas soltas, versos e melodias, solos e refrões, desprendidos de uma criatura que o ouvinte sensível não falhará em reconhecer como pródigo e generoso, cálido e fraternal... Uma obra cheia de luz e saudade, ferida por eclipses de amargura, polvilhada de urros de fúria, nostálgica e profética em doses equivalentes, em que a glória rasgada de outrora alimenta o sonho de uma glória por vir... Como toda grande obra-de-arte, Ragged Glory soa como a tentativa de um artista objetivar, fora-de-si, uma espécie de síntese de sua sabedoria.
Ragged Glory (1990) [download] |
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