Traficando informação. Pirateando conhecimento. Plugando consciências no amplificador. Dentre outros atentados ao pudor... Você está no http://www.depredando.blogspot.com
"Deixo você com os Estados Unidos, que é o mais fácil". Ao ouvir essas palavras do Sr. Depredando me tranquilizei. Mal sabia eu que destino me esperava. Foi então que compreendi o significado do conselho de Ben Parker. Mas chega de bullshit. Let's rock! Começamos com "Fortune Fated" da velharada de craques que ainda jogam como meninos. Habilidade nesse time é o que não falta, com Dave Mathews Band, Medeski Martin & Wood e Bad Plus tudo por ali, no meio de campo, fazendo aquele noise (sem maldita vuvuzela). E nada de retranca no meu time! 3 atacantes nervosos pra agredir qualquer outra seleção; "Purgatory Blues" da menina malvada Julietta, os danados do rock de pedra do Queens Of The Stone Age e a raça do Ben Harper com Relentless7. Ainda tem espaço para alguns jogadores mostrarem suas habilidades individuais: o veterano de vários campeonatos Eddie Vedder e a Regina Spektor com toda sua simplicidade e meiguice. Só espero que ex relacionamentos amorosos não tragam problemas ao time. Pra completar o dreamteam, Strokes e Raconteurs, mostrando que se inspirar nos grandes mestres ainda traz ótimos resultados. Tive que cortar muitos Ronaldinhos Gaúchos pra ver como os novatos se sairiam. Enfim, irei sofrer mais que o Dunga. Go Yankees!
P.S. Jogadores menores de idade tem autorização, registrada em cartório, para participar do time.
P.S.2 Clique na imagem da abertura para ver a seleção em detalhes.
01. Red Hot Chili Peppers - "Fortune Faded"
02. Dave Matthews Band - "Shake Me Like a Monkey"
03. Ben Harper & Relentless7 - "Shimmer And Shine"
04. The Raconteurs - "You Don't Understand Me"
05. The Bad Plus - "And Here We Test Our Powers Of Observation"
06. Regina Spektor - "Dance Anthem Of The 80's"
07. The Strokes - "You Only Live Once"
08. Juliette & The Licks - "Purgatory Blues"
09. Queens Of The Stone Age - "In My Head"
10. Eddie Vedder - "Hard Sun"
11. Medeski Martin & Wood - "Where's The Music" técnico: Marco Souza
Tadinho do Canadá: como o México, tá tão longe de Deus e tão perto do Tio Sam! Apesar da infelicidade de estar em tão má vizinhança (tóin!), é ele quem ruleia na América do Norte em termos de I.D.H. e qualidade de vida. E nos últimos anos o país, que já apresentou ao mundo talentos imensos como a Joni Mitchell e a (Bob Dylan's) The Band, vem tentando arrancar dos ianques também sua contestável supremacia musical no continente. Quem vem pra Copa como capitão é ninguém menos que Neil Young, que vai jogar montado num Crazy Horse que há de deixar a zaga americana desmaiada no chão a base de coices. Outros craques já mundialmente reconhecidos fortalecem a esquadra, caso de Arcade Fire (também conhecido como "Incêndio no Flíper"), New Pornographers (power-pop tão grudento que é quase sacanagem...) e Hot Hot Heat (que fez um show arrasador no Brasil num Motomix, anos atrás). Quem também já esteve dando show de bola pelos palcos brazucas é o Black Mountain, que foi um dos headliners do Goiânia Noise 2008, e que vem para este jogo acompanhado por outros pelejadores supimpas da cena indie canadense: Broken Social Scene, Death From Above 1979, The Dears, The Stars. Pra finalizar, a musaFeist surge pra competir de igual pra igual em fofureza e charme feminil com a Regina Spektor, a beldade do time adversário. Ah! E os fãs de Rush fiquem à vontade pra xingar este técnico por não tê-los convidado pr'esta Copa, mas galera... aquela voz do Geddy Lee me dá uma enxaqueca!
[01] Arcade Fire - Wake Up (5:35)
[02] New Pornographers - Mass Romantic (4:03)
[03] Hot Hot Heat - You Owe Me an IOU (3:04)
[04] Broken Social Scene - Ibi Dreams of Pavement (4:30)
[05] Black Mountain - No Satisfaction (3:47)
[06] Stars - Your Ex-Lover Is Dead (4:16)
[07] Feist - Mushaboom (3:42)
[08] The Dears - No Cities Left (5:23)
[09] Death From Above 1979 - You're A Woman, I'm A Machine (2:53)
[10] Constantines - Shine a Light (4:47)
[11] Neil Young & Crazy Horse - Devil's Sidewalk (5:17) técnico: Luscious Spongicus
E ae, depredadores? Quem segue para as semi-finais para encarar a Inglaterra, que despachou a Escócia nas quartas e vai firme e forte rumo ao título? Votem pela enquete no menu à direita e dêem seus pitacos (e cartões vermelhos) nos comments!
"Cansadas dos seus papéis fabulares, a cigarra e a formiga resolveram associar-se para reagir contra a estereotipia a que haviam sido condenadas.
Deixando de parte atividades mais lucrativas, a formiga empresou a cigarra. Gravou-lhe o canto em discos e saiu a vendê-los de porta em porta. A aura de mecenas a redimiu para sempre do antigo labéu de utilitarista sem entranhas.
Graças ao mecenato da formiga, a cigarra passou a ter comida e moradia no inverno. Já ninguém a poderia acusar de imprevidência boêmia.
O desfecho desta refábula não é róseo. A formiga foi expulsa do formigueiro por lhe haver traído as tradições de pragmatismo à outrance e a cigarra teve de suportar os olhares de desprezo com que o comum das cigarras costuma fulminar a comercialização da arte."
[do livro Socráticas, 2002. in: Poesia Completa, pg. 490]
La Fontaine de cu é rola! A graciosa fábula acima é de autoria do poetaço brazuca José Paulo Paes (1926-1998). Seu Poesia Completa, nestes últimos tempos, tem sido minha leitura prediletíssima. Convido quem se interessar a conhecer mais sobre a vida e a obra deste mestre da poesia nacional a dar um pulo na Casa de Vidro. Por lá também fiz uma homenagem fúnebre ao José Saramago (1922-2010), falecido estes dias, e que deixa órfã não só a língua portuguesa, de que era um dos maiores mestres, mas este mundinho ainda tão cheio de fanatismo e intolerância e que ele soube tão bem confrontar e questionar com o mais lúcido e ferino dos olhares.
E logo mais a Copa Pirata continua, com a entrada em campo de EUA e Canadá para a segunda pelada do nosso arranca-toco sônico. Aguardem!
:: COPA PIRATA! ::
- 1a Copa do Mundo Depredando -
Ééé: por esta a FIFA não esperava. Depois de arranjar treta com o Google, com o Blogger e com o complô da Indústria Fonográfica, o Depredando o Orelhão agora vai cometer de seus crimes contra a pimpona da Copa do Mundo e se mete a... pirateá-la! Ééé: sejam bem-vindos à primeiríssima Copa Pirata, o primeiro campeonato mundial de seleções sônicas da blogosfera brasileira!
As peladas aqui tem a vantagem de não possuírem nenhum dos perigos físicos do ludopédio. Nada de paulistinhas, camas-de-gato, carrinhos por trás, zagueirões carniceiros, voadoras na carótida e outros métodos incivis de agressão contra o adversário. Aqui só se permitem lutas-livres civilizadas, com trocas de ritmos, melodias, grooves, batuques, solos, riffs, licks e arpejos. Puro fair play, sem cartolas ou cabeçadas!
No processo de "agitar" com os camaradas para fazer acontecer este especial do Depredando, a Copa do Mundo da Música, percebi que a tarefa seria hercúlea, digna de uma epopéia homérica, se a gente selecionasse 32 países. Correr atrás de "escalar" as melhores músicas produzidas na última década em 32 nações seria um trampo de meses (ou mesmo anos), só realizável por um antropólogo musical com muita paixão pela música e muito tempo hábil para se dedicar ao "mergulho" em ambientes culturais gringos.
Por isso limitamos nossa primeira e modesta Copa Depredando a OITO seleções, mas já com a ambição de, em futuras edições (quem sabe role um campeonato anual?), aumentar estes número, dando espaço também para a música africana e asiática, que ficaram completamente de fora da peleja, e ofertando mais espaço no palco para outras sonoridades latino-americanas.
Abrir os ouvidos para a música proveniente de outros cantos que não dos grandes centros econômicos, na América do Norte e na Europa, é uma ação que muito alargaria os nossos horizontes e campos de visão, tenho certeza. E a internet, na era da banda-larga e do MP3 já incorporado ao zeitgeist, inexterminável por seus perseguidores e pretensos carrascos, fornece um campo aberto para audições ecléticas de que todas as gerações humanas anteriores a nós não gozaram que se equipare. Fica, pois, o projeto ambicioso de futuras Copas Piratas ainda mais recheadas de variedade cultural e sonora!
A Copa Depredas, já que não gostamos de lenga-lenga e achamos a primeira fase uma chatura, já começa nas Quartas-de-Final, direto no mata-mata, com os seguintes duelos:
INGLATERRA vs. ESCÓCIA
FRANÇA vs. AUSTRÁLIA
IRLANDA vs. BRASIL
CANADÁ vs ESTADOS UNIDOS
Para cada um destes países, a gangue Depredando selecionou 11 canções que representam o que de mais interessante vem sendo produzido por aquelas bandas nos últimos tempos. Partindo do princípio que não dá pra escalar o Pelé na canarinho de 2010, combinamos que "jogador velho não vale": bandas que já acabaram tiveram sua entrada barrada, do mesmo modo que quem pendurou as chuteiras não tem mais chances de ir pra Copa.
Combinamos ainda que os jurássicos tiranossauros do rock, ainda sobreviventes, como os Rolling Stones, Mr. Bob Dylan ou Neil Young, poderiam muito bem entrar nas respectivas seleções de Inglaterra, Estados Unidos e Canadá; mas somente com uma composição recente. Só vale música de 2000 pra frente. Pois seria um bizarro anacronismo uma seleção americana ou inglesa duma Copa Depredas em 2010 que tivesse "Like a Rolling Stone" ou "I Can't Get No Satisfaction", é ou não é?
A Copa tem principalmente o objetivo de oferecer um panorama do som de cada um dos oito países entre 2000-09, mas, para a analogia futebolística ser honrada até o fim, bolamos um esquema "competitivo" em que a interação do público é essencial. São vocês, leitores do Depredando, quem aqui farão os gols e selecionarão os classificados e o grande campeão! Nos comentários e nas enquetes no menu à direita, vocês podem (e devem!) votar na seleta que mais curtiram. Se quiserem, podem até sugerir um "cartão vermelho" para uma música que julgam indigna de figurar numa seleção nacional; ou, no extremo oposto, dar o pitaco de quem foi, na vitória, o artilheiro ou o nome do jogo...
Que role a gorduchinha!
p.s.: Ah, e aqui não tem anti-doping ao fim da peleja, porque senão... num sobrava uma seleção viva. Portanto, picos, tiros, doces e tragadas à vontade, pelejantes! Para alegria geral, a seleção do Vaticano não foi convidada, e vai ficar lá, quietinha na dela, com sua corja de cânticos, árias, harpas e versos em latim (cruz credo!)...
Inglaterra. Time de contrastes. Primeira ou segunda potência do mundo, dependendo do tipo de indie pra quem você perguntar. Vem a campo com uma seleção do tipo mistão velharia/molecada, com os estreantes em copas e preferidos das mocinhas incautas Arctic Monkeys no gol (A Certain Romance, 2006) e zaga formada pela experiência do veterano David Bowie (New Killer Star, 2003) e do beque sensivo-arranca-toco preferido da ilha, Morrissey (The Wolrd Is Full Of Crashing Bores, 2004), mais a juventude lépida dos Kaiser Chiefs (Never Miss A Beat, 2008). Mais à frente — sem saber o que é impedimento sim, e daí? — a dupla de volantes do soul, Amy Winehouse (You Know I'm No Good, 2006) e Joss Stone (Super Duper Love, 2003). Na armação, mais à frente, Sir Paul McCartney (Only Mama Knows, 2007) , sabendo o que faz com a pelota há quase cinquenta temporadas. Pelas pontas, a ilha vem com Placebo (The Bitter End, 2003), pela direita, e os recém-saídos da clínica de reabilitação Klaxons (Gravity's Rainbow, 2007), pela esquerda. Pra desbaratinar, ataque formado pelos camisas 10 do Radiohead (There There, 2003), mais recuado pra buscar jogo, e Muse (Supermassive Black Hole, 2006), malucão lá frente como um bom ponta de lança trombador e inconsequente. E é isso aí. Já foi melhor nos anos 70? Certeza... mas *$¨#$-se os anos 70, wanker!
SELEÇÃO INGLESA:
01. Arctic Monkeys - A Certain Romance (5:24)
02. David Bowie - New Killer Star (4:40)
03. Morrissey - The World Is Full Of Crashing Bores (3:51)
04. Kaiser Chiefs - Never Miss A Beat (3:06)
05. Amy Winehouse - You Know I'm No Good (4:16)
06. Joss Stone - Super Duper Love (4:20)
07. Paul McCartney - Only Mama Knows (4:17)
08. Klaxons - Gravity's Rainbow (2:36)
09. Placebo - The Bitter End (3:12)
10. Radiohead - There There (5:24)
11. Muse - Supermassive Black Hole (3:31)
técnico: Bernardo Santana
DWLD: nos comments.
V E R S U S
E S C Ó C I A
Breacaça de uísque e trançando os kilts, a seleção escocesa chega com um time de peso. Nos gramados, é verdade, essa negada lá da Terra Celta é tudo perna-de-bagre. Mas quando se trata de música, os escoceses possuem uma escalação de primeiríssima linha e entram em campo pra pelejar de igual pra igual contra a favoritinha Inglaterra. E ameaçando: a zebra vai zurrar! Time experiente, que conta com um monte de quarentões enxutos: Mogwai, os vovôzinhos do post-rock; Primal Scream, a grande banda de Bobby Gillespie pós-Jesus & Mary Chain; Roddy Frame, ex-vocalista do Aztec Camera (o Echo and The Bunnymen de Glasgow); e Emma Pollock, cantora do The Delgados. A molecada promissora, que tem marcado muitos gols nos Sub-23 da vida, também marca presença com Fratellis, Idlewild, KT Tunstall. A promessa de espetaculares gol-de-placa fica a cargo também do artilheiro sem misericórdia Franz Ferdinand. E também não falta fofura e sensibilidade com o Belle and Sebastian, Camera Obscura e Teenage Fanclub, provando que na Copa Pirata não se joga só na base da cavalice e da quebração de canelas, mas sin perder la ternura jamás (salve Che!). Que venham estes inglesinhos, e Deus salve a Rainha!
SELEÇÃO ESCOCESA:
[01] - Primal Scream - Kill All Hippies (4:57)
[02] - Franz Ferdinand - The Fallen (3:42)
[03] - Idlewild - These Wooden Ideas (3:52)
[04] - The Fratellis - Creepin Up the Backstairs (3:06)
[05] - Belle & Sebastian - White Collar Boy (3:20)
[06] - Teenage Fanclub - The Town And The City (4:18)
[07] - Camera Obscura - Lloyd, I'm Ready To Be Heartbroken (3:49)
[08] - Emma Pollock - Here Comes The Heartbreak (3:20)
[09] - Roddy Frame - Surf (4:14)
[10] - KT Tunstall - Other Side of the World (3:34)
[11] - Mogwai - 2 Rights Make 1 Wrong (9:31) técnico: Eduardo Carli
DWLD: nos comments.
E aí, qual das duas seleções vocês, depredadores, mais curtiram? Quem merece um lugar nas semi-finais? Votem nos comments abaixo ou na enquete no menu à direita! Pois aqui são vocês que fazem os gols!
:: GAROTOS PODRES :: “Mais Podres do que Nunca” (1985)
- Fred Di Giacomo -
Na capa um menino saudável brinca com uma mamadeira, na contra um pequeno africano desnutrido chora esperando a morte chegar. Mais Podres do que Nunca, produzido pelo Redson (Cólera), primeiro disco de Oi! do Brasil, é um clássico do rock brazuca. Todos citam Dois do Legião Urbana, Nós Vamos Invadir Sua Praia do Ultraje à Rigor ou, "para quem curte um som mais agressivo", Cabeça Dinossauro dos Titãs, mas se esquecem dessa pérola tosca que vendeu mais de 50.000 cópias independentes, ganhou as rádios rock com "Johnny" e "Vou fazer cocô" e ainda cravou dois clássicos no punk nacional: "Papai Noel, Velho Batuta" e "Anarquia Oi!".
Aqui não há nada que lembre o punk cheiroso de NX Zero e Good Charlotte. A produção é suja e os instrumentos, amadores. A gravação era pra ser uma demo, mas acabou virando disco independente "devido ao resultado surpreendente" pra época. Três faixas gravadas nunca foram lançadas devido à péssima qualidade, as 11 que ficaram trazem a marca dos Garotos Podres; punk simples, mais lento e candenciado que o feito por seus contemporâneos (Ratos de Porão, Olho Seco, Cólera...) e letras críticas/ sarcásticas carregadas de humor negro.
Afinal, quem nos dias de hoje teria a manha de fazer uma letra como a de "Papai-Noel": "Papai-Noel, filho da puta/ Rejeita os miseráveis/ Eu quero mata-lo/ Aquele porco capitalista/ Presenteia os ricos/ Cospe nos Pobres." Ou "Vou fazer cocô": "Enquanto você, de paletó e gravata/ Aparece na tv/ E diz coisas que eu não consigo entender/ O que que eu faço?/ Vou fazer cocô."
Não, não, muito sujo, politicamente incorreto, prejudicaria as vendas. Rock sem esse espírito de contestação tem o mesmo valor que axé. Mesmo porque, tanto faz ter na rádio Luan Santana e Exaltasamba ou Restart e Fresno. O lixo é o mesmo, aí talvez até seja melhor o Exaltasamba porque é lixo 100% nacional, os caras das "bandas de pop/rock" de hoje em dia ainda tem a moral de copiar lixo dos gringos. Cada país tem a trilha sonora que merece...
Bom, voltando aos Garotos Podres, seu disco de estréia gravado em 1985 e relançado com a música "Meu Bem" (uma daquelas 3 que tinham ficado "péssimas") é o retrato dos anos 80, conturbados, marcados pelo fim da ditadura (que censurou duas faixas do disco), pelas greves de metalúrgicos (ali perto dos Garotos, que são do ABC) e pela hegemonia do Brock.
Uma história retratada nas 11 faixas desse disco. Uma curiosidade bizarra é a música Füher ("Os imundos querem dominar o mundo, com o poder de suas armas/ Sob suas estrela maldita/ Fanáticos religiosos, assassinos malditos/ Eu quero mata-los"). A letra acabou gerando acusações aos Garotos Podres (socialistas) de nazismo. Essa acusação ainda ecoa nos meios anarcopunks. Em uma entrevista concedida a mim por e-mail, Mau explica o assunto. "A intenção da música é colocar no mesmo saco os nazistas e a extrema direita israelense que defende a matança indiscriminada e a deportação em massa dos palestinos". E a história segue vinte e cinco anos depois do lançamento do disco, os palestinos continuam sendo massacrados pela extrema direita israelense e os Garotos Podres ainda são uma das poucas bandas interessantes do rock nacional...
De imediato, a música do Liars se destaca pela teatralidade, pela dramaticidade. Evoca Bauhaus e filmes de terror obscuros, com sua atmosfera sinistra instaurada através de ritmos ritualísticos, ecos, batidas profundas que dão aquela sensação terrível de paredes estreitas, e vocais que ora emulam os grandes vilões zombeteiros do cinema, ora as pobres vítimas de olhos petrificados que já não falam coisas muito compreensíveis. Um conjunto de sonoridades que a banda foi burilando ao longo de seus discos e que atinge um novo patamar de excelência neste Sisterworld, lançado no início de 2010.
Não que seja uma trajetória calculada, uma ambição adolescente materializada no encontro de dois ou três amigos que descobriram em comum as compulsivas sessões de filmes do Argento e do Romero e os discos do Morbid Angel e do Marduk nos armários. Conhecendo algo sobre a banda — e as leituras e imagens internet afora ajudam bastante nisso — percebe-se que os caras não levam nada muito a sério e taí o primeiro disco, They Threw Us All In A Trench And Stuck A Monument On Top, para dar algumas outras indicações importantes.
A impressão que tenho é que ao longo de seus discos, Aaron Hemphill e Angus Andrew, núcleo fundador do Liars, foram descobrindo suas inclinações criativas, se apegando ao retorno sempre muito positivo que suas ideias iam gerando, e hoje o Liars é isso, uma banda que, sem apelar para vocais guturais, vestimentas demoníacas e instrumentos tocados em velocidades extremas, faz discos de atmosferas imersivas e divertidíssimas na base da criatividade e até, com frequência, da sutileza.
Tudo bem, há algum apelo para a violência explícita, vez ou outra, mas não é o ingrediente principal — o que os caras fazem com perfeição é alternar estas opções, lançando mão de quaisquer possibilidade e influência, e não há momento em que as escolhas soam erradas; tudo colabora de maneira precisa para o efeito visceral e sui generis da música do Liars. Há de se respeitar e muito isso; são pouquíssimas as bandas que de fato inventam algo, ou que fundam para si personalidades inequivocamente originais e espontâneas. Vou além: neste tempos atuais, são poucas as bandas que eu diria, sem enrubescer, que fazem música naquela acepção antiga da palavra, aquela que a associava umbilicalmente com arte. Pois a música do Liars é arte barroca em pleno século XXI, envolvente e tétrica.
Drum's Not Dead, um dos grandes álbuns da banda
Quanto a este Sisterworld, pode não ser a obra-prima destes nova iorquinos desavergonhados, posição que é consensualmente ocupada pelo Drum’s Not Dead, muito justamente, diga-se. De meu lado, gosto igualmente de todos os discos lançados pela banda após o seu incerto debut, mas sendo Sisterworld o último, ele é, portanto, e momentaneamente, meu preferido. Ok, a essa altura, não é lá um disco muito surpreendente. Mas é certeiro. Menos experimental? Talvez, mas produção e melodias estão em ótimos estágios, afiadíssimas do início ao fim do disco, o que é sempre uma façanha muito digna de nota. Traz toda a pinta de ápice criativo dos caras — vejamos se algum sinal de declínio irá surgir na próxima empreitada do Liars, para corroborar minha tese. Ou isso, ou eles surpreendem e pulam para o grupelho fundado pelo Radiohead no início do século e até hoje ocupado solitariamente pelos próprios — o grupo dos qualidade-e-originalidade-anos-a-frente-de-todo-o-resto. Não duvido.
Mas antes disso, Sisterworld traz material suficiente para nos entreter por algum tempo. Começa muitíssimo promissor e alegórico com "Scissor", sua introdução vocal carregada de mistério e fantasia adornada por uma leve melodia de conto de fadas, e então decapitada brusca e sanguinolentamente, sem misericórdia. A atmosfera cruel prontamente estabelecida é um pouco amenizada com a faixa seguinte, "No Barrier Fun", onde o encanto ardiloso surge não do caos, mas dos violinos e de alguns truques hipnóticos de estúdio que vão, apesar da tenuidade, gradualmente elevando o clima de estranheza geral da coisa. “Algo de horrível está para acontecer” — a tensão de uma nova e violenta investida de guitarras e bateria e machados permanece à espreita o tempo todo. Mas, desta vez, o horror fica assim, subentendido.
Já é um discaço e então "Here Comes All The People" surge prometendo mais sustos com seus vocais dobrados, sussurrados, pausas inundadas de intenções malignas, a guitarra à distância prestes a invadir o ambiente e sujar os corredores de sangue a qualquer momento. “Life possession could be fun, counting victims one by one”, entoam uns pobres miseráveis sem salvação, delirantes. O clima fica mais opressivo no final, mas por ora a coisa segue no âmbito do divertimento diabólico que "Drip" trata de estender atmosfericamente, abafadamente, quase que abrindo mão de melodia ou de qualquer sonoridade mais coesa. Pode ser tudo um pesadelo, ou mera paranoia, é o que sugere este desorientador interlúdio.
Mas em "Scarecrows On A Killer Slant", o sadismo dos malditos mentirosos é no talo, “AND THEN KILL THEM ALL!”, enfurecido, exaltado. É também um dos destaques individuais do disco — porque, sim, algumas músicas do Liars, tiradas de seus contextos, podem não ser tão admiráveis assim. Não é o caso de "Scarecrows On A Killer Slant". Acalmando levemente o espírito, "I Still Can See An Outside World" traz nova mudança de tom, mas o estado de apreensão meio desnorteado e remoto vai crescendo e tornando-se intolerável à medida que vamos nos perdendo pelos corredores da mansão escura e labiríntica de leves cortinas rasgadas acariciadas pelo vento. A certeza que queríamos não ter, de estarmos nos afastando cada vez mais da saída, da luz, torna-se inconteste e de repente a coisa fica perversa de verdade, sufocante… e enfim, alívio.
"Proud Evolution" destoa deste crescente clima de angústia e terror, mas é uma música tão boa que não há problema algum nisso. Feita de guitarras lúdicas, cintilantes, batidas e repetições maníacas, ruídos, tudo isso precedido, claro, por uma introdução feita de confusão e suspense, que deixa o coração na boca e os sentidos em alerta, escolados que estamos pelas experiências anteriores. É a música peculiar do Liars em um momento de brilho intenso e ainda mais formidável.
Na sequência, "Drop Dead" traz de volta algumas guitarras de cenas anteriores, de volta ao enervante caminho em direção ao inevitável aterrorizante, que talvez houvesse ficado em suspenso ao longo de "Proud Evolution". Nada inesquecível, ainda mais pelas fronteiras que faz com duas faixas brilhantes, pois o que vem a seguir é a fantástica "The Overachievers." Direta, insana, uma verdadeira porrada, o momento do confronto físico, que desencadeia enlouquecido o final do disco, e agora tudo pode acontecer.
Mas é só um disco — um belo dum discaço, mas ainda assim um disco, limitado em suas possibilidades sensoriais. E a banda trata de, depois de "The Overachievers", colocar as coisas em termos razoáveis e deixar todo mundo vivo. "Goodnight Everything" reestabelece, com instrumentos de sopro impregnados de gravidade e fatalidade, o clima mais hermético e sobrenatural dantes, esforço continuado pela faixa final, "Too Much, Too Much", que rememora não somente algumas guitarras como também algumas melodias. O disco acaba e o gosto prolongado que fica é de intensa diversão, acima de tudo. Não fica claro o que é o tal do Sisterworld, mas que é um lugar bacana para se voltar muitas outras vezes, disso eu não tenho dúvida.
"Exaltar a era dos festivais — onde surgiram grandes nomes da MPB como Caetano Veloso e Chico Buarque — é um argumento clássico dos saudosistas. Bem, agora eles não têm mais do que sentir saudade: a era dos festivais está de volta. Nunca houve tantos festivais de música popular no Brasil, nem mesmo no tempo em que Nara Leão usava saia acima do joelho e Sérgio Ricardo atirava o violão na plateia. Em geral realizados em capitais brasileiras fora do eixo Rio-São Paulo, pelo menos 38 são vinculados à Abrafin, Associação Brasileira de Festivais Independentes (sim, existe até uma entidade que reúne dados sobre o assunto). De acordo com a Abrafin, em 2008 cerca de 800 artistas se apresentaram em eventos como o Bananada, o Rec-Beat, em Recife, e o Calango, em Cuiabá. Estima-se que tenham reunido, ao todo, um público da ordem de 250 mil pessoas.
No essencial, os festivais do século 21 têm a mesma função dos realizados na década de 1960: revelar novos talentos. No restante, e a começar pelo fato de que não são competitivos, são completamente diferentes. Essas diferenças estão ligadas às mudanças que o mundo da música experimentou nos últimos anos. A década de 60 do século passado foi o período em que a televisão se consolidou como principal meio de divulgação de música popular, superando o rádio. Os festivais eram promovidos por emissoras como a Tupi e a Excelsior. Quando apareciam na televisão, artistas como Caetano Veloso e Chico Buarque passavam a fazer parte de uma espécie de mainstream da música e, assim, conseguiam contratos com grandes gravadoras. Hoje o conceito de mainstream não existe mais. A internet vem substituindo o rádio e a televisão como principal meio de divulgação de música. As gravadoras enfrentam dificuldades financeiras, e os artistas, novos ou não, sobrevivem sobretudo de shows. É justamente esta uma das principais funções dos novos festivais: ver quem se sai bem no teste do palco." - JOSÉ FLÁVIO JR,Revista BRAVO!, Maio de 2009
:: FAÇAMOS JUNTOS! ::
Uma das coisas mais impressionantes que venho notando, conforme vou conhecendo mais e mais a cultura de Goiânia, tendo marcado presença no último Bananada e Goiânia Noise, sem falar em outros shows esporádicos nos pubs da cidade, é o quanto a “cena” por ali é forte. Não sei se "cena" é palavra mais adequada para descrever o troço, mas é aquela que foi consagrada pelo uso --- tanto que falamos hoje em “cena de Seatlle na era grunge”, “cena de Manchester na época dos Stone Roses”, “cena de Brasília no rock brazuca dos anos 80” ou “cena de Recife quando estourou o manguebeat”, e entendemos mais ou menos bem o que queremos dizer...
“Cena musical”, me parece, é um conceito que descreve o “complexo” de eventos e acontecimentos relacionados à música que ocorrem em sincronia e de modo simultâneo em uma certa cidade, num certo período, incluindo aí não só uma profusão incomum de bandas e artistas, mas de gravadoras e selos, fanzines e blogs, pubs e festivais, cartazes e panfletos, articulados de modo que a cooperação entre estas partes ocorre num grau bem superior ao comum. Pois uma cena é essencialmente uma questão de comunicação --- entre pessoas, artistas, bandas, empresas, jornais, instituições, ativistas... em suma: pessoas em sinergia. Uma cena forte é uma cena em que a comunicação é intensa, a troca de idéias é constante, o “agito” não cessa, de modo que qualquer um sinta, sem dúvida, que há uma “efervescência cultural” rolando.
Não é a quantidade de bandas tocando que constrói uma cena. Qualquer metrópole tem trocentas bandinhas de garagem, o que não impede uma hierarquia entre a “qualidade” das respectivas cenas. São Paulo e Rio De Janeiro, apesar de seu gigantismo e importância econômica, não possuem nada que se assemelhe a uma "cena" que seja capitaneada por um grande festival de rock independente como um Abril Pro Rock ou Rec Beat (Recife), um Goiânia Noise ou um Bananada (Goiânia) , um Casarão (Porto Velho), um MADA (Natal), um Calango (Cuiabá) ou um Porão do Rock (DF). A Nova Era dos Festivais, como aponta o Zé Flávio Jr., se desenrola "fora do eixo" Rio-São Paulo.
É importante frisar que estes dois festivais que ocorrem anualmente em Goiânia, cidade que já foi apelidada pelo Jornal O Globo como "a nova capital do rock", já se tornaram instituições sólidas, que ocorrem todos-os-anos com uma certeza e uma pontualidade digna de um ritual religioso. O Bananada comemorou em 2010 seu 12º aniversário, e o Noise irá comemorar seu 16º neste ano, o que é um feito pra lá de louvável para um festival de rock independente neste país. "15 anos não são 15 dias". Chegar à "adolescência" (a mais rock and roll das idades!) é um prodígio num país que vê tantos recém-nascidos morrendo no nascedouro (como ocorreu com o Groselha Fuzz, no interior de São Paulo, evento muito bacana que rolou anos atrás como uma espécie de Woodstock ribeirão-pretense, mas que naufragou logo no primeiro dia, tendo cancelado o seu segundo dia e sua segunda edição).
"O tempo também garantiu ao Noise, ano a ano, o título de maior festival independente do Brasil. Mas o “maior” da honraria diz respeito menos ao seu tamanho que à sua importância. Em dimensões físicas e quantitativas, o Noise não é o maior festival independente do País, mas é seguramente o mais influente. E talvez sua posição estratégica, tanto no calendário quanto no mapa, tenha favorecido o destaque: Goiânia se localiza no epicentro do território brasileiro, o que facilita o deslocamento de visitantes e bandas vindos de qualquer outra grande cidade. E o fato de ser o último grande festival do ano faz do Noise um grande ponto de encontro de produtores, bandas e jornalistas, que interagem tanto numa espécie de balanço anual das realizações do circuito, quanto nas projeções para o ano seguinte."
Indispensável frisar também o imenso mérito da Monstro Discos neste quadro. Guardadas as devidas proporções, sinto que a Monstro tem feito por Goiânia aquilo que a Sub Pop fez por Seattle. E foi fascinante pra mim conhecer pessoalmente o headquarter monstruoso, lá no número 1.000 da Avenida Circular, notando que de dentro duma salinha apertada, minúscula, quase uma kitnet, repleta de Cds, vinis, pôsteres e camisetas (smells like teen spitit?), essa galera têm feito tanto para botar combustível novo no rock'n'roll nacional.
E que diferença entre o tamanhico do escritório da Monstro e a literal monstruosidade dos dois festivais anuais idealizados e concretizados pelos caras! O Bananada (no 1o semestre) e o Goiânia Noise (no 2o) não são somente 5 dias de música, em maio e em outubro, onde dúzias de bandas se reúnem numa grande festa. São algo que “articula” toda a cena de modo a deixar O ANO INTEIRO com cara de que “algo tá acontecendo”.
Isto quer dizer o seguinte no cotidiano das bandas locais: todo mundo sabe que, com certeza, todo ano tem Bananada e Noise, e isto é um baita dum incentivo pra tocar, ensaiar, compor, se mexer. Uma banda iniciante de Goiânia já nasce com a perspectiva muito instigante de ser escalada pro line-up do próximo ano, já que a organização sempre reserva um pequeno espaço para as “bandas mirins” --- caso do Ultra Vespa, do Coerência, do Space Monkeys e do !Oye!, que tiveram 20 minutos cada no Bananada 2010.
Mas Dizer que a “cena local” é forte pode levar à idéia enganadora de que se trata de uma cidade auto-centrada, “fechada” em si mesma, quando o oposto é o verdadeiro: as portas de Goiânia estão abertíssimas para quem vem de fora. O Bananada e o Noise, apesar de recheados de atrações da região (incluindo aí Brasília, Anápolis e outras...), representam um apanhado geral do que de melhor acontece na cena independente nacional, latino-americana ou mesmo mundial.
O Bananada 2010, por exemplo, contou com bandas de 11 Estados e do Distrito Federal: Paraná (1), Minas Gerais (1), Rio Grande do Norte (1), Sergipe (1), Bahia (1), Ceará (1), Acre (1), Paraíba (2), Brasília (2), São Paulo (3), Rio Grande do Sul (3) e Goiás (27), além de um grupo do Chile, totalizando 45 shows. Já o Noise do ano passado, também recheado de atrações nacionais, contou com bandas do Chile, do Canadá, da Suíça, da Argentina e dos Estados Unidos.
* * * * *
O que temos visto, nos últimos tempos, é uma profusão de festivais espetaculosos e super-produzidos, financiados por grandes multinacionais, especialmente do ramo da telefonia e da internet --- como o TIM Festival, o Claro Que é O Rock, o Motomix e o Planeta Terra. São eventos grandiosos, elitizados, carésimos, centrados em grandes atrações internacionais ou bandas brasileiras que tem contrato assinado com majors. São paquidermes capitalistas que tomaram o lugar dos velhos Free Jazz e Hollywood Rock, que aliás eram bancados pelos propagores-de-câncer da indústria tabagista tão bem satirizados no Obrigado Por Fumar. E estes "mega-eventos" às vezes soam como “duelos de esgrima”, no palco da nossa economia privatizada e dominada por mega-corporações, entre a Tim, a Claro, a Motorola, a Terra, a Campari, dentro outras grandes empresas. Não acho que seria uma tese ingênua dum comunistinha simplório sugerir que são feitos mais em vistas do lucro do que da promoção de uma cultura genuinamente popular.
A lógica vigente no Bananada, no Noise e nesta profusão de festivais de música independentes hoje operantes no país é outra, completamente. Os ingressos, ao invés de custarem 200 reais, o que já “recorta” o público, "tesourando" toda a imensidão de gente abaixo da classe média, custam em média umas 20 pilas/dia. E pensem bem: 20 conto pra ver 15 bandas é uma pechincha supimpa!
Um dos fatores mais pé-no-saco dos grandes festivais são os longos intervalos entre os shows. Lembram da era geológica inteira que decorreu até que os Strokes surgissem depois do Kings of Leon naquele TIM? Ou daquele atraso monumental que fez com que o show do Killers, anos atrás, começasse umas 3 horas depois do horário previsto? E daquele quase insuportável aperto, no meio da muvuca e da suvaquiera, enquanto vocês esperavam aquela trupe de dúzias de roadies e engenheiros de som preparando o palco de acordo com as ultra-pessoais exigências de mega-artistas como Björk e Radiohead?
Sem dúvida que, na maioria dos casos, a treta compensa. Mas o Bananada e o Noise trazem um outro modelo de festival, muito mais curtível e agradável, onde o som ao vivo rola quase sem interrupção num ping-pong muito bem sincronizado entre os dois palcos. No Centro Cultural Martin Cererê, fundado em 1988, os shows ocorrem em dois espaços fechados, de acústica excelente (de modo que a música não se “dispersa” como ocorre em grandes espaços abertos), distantes um do outro uns míseros 50 passos ou 30 segundos de caminhada. Ou seja: são praticamente um do lado do outro.
Os shows são estritamente limitados a 30 minutos de duração, sem exceção. Não adianta a galera pedir bis. Acabou o show, todo mundo vaza rapidinho do teatro; as portas são fechadas e a próxima banda inicia a passagem de som; imediatamente, começa no outro palco um novo show; quando este acabar, o mesmo processo se repete.
Revista Bravo!
Este método é excelente por vários motivos. Primeiro: no Bananada e no Noise não existem aquelas pragas que eu chamaria de “lesmas de grade”. Ninguém consegue ficar grudado lá na frente do palco o tempo todo, feito um centro-avante que só fica na banheira, porque ao fim de cada show a galera é obrigada a circular. Isto também significa que cada show é um novo show: a galera entra junta no espaço, se aloca nele de modo sempre original e diferente em relação ao show anterior e ao posterior, numa excitante e constante “mobilidade” que contraste radicalmente com a “estagnação” que se nota nos grandes “shows de multidão”, onde é tão difícil andar quanto dentro dum busão lotado em Sampa na hora do rush.
Um festival de relevância na cultura não se limita à esfera da música, mas transborda para o domínio do comportamento. A galera, por exemplo, acende béques compridérrimos na frente dos seguranças, que tratam aquilo com a naturalidade de quem vê alguém comendo pamonha. Fica a sensação de que foram instruídos a levar numa boa o consumo de substâncias de expansão da consciência e só ficar de olho para coibir tretas --- que, aliás, se ocorrem, são extremamente raras. Eu mesmo não testemunhei nenhuma, no Noise e no Bananada inteiro, em que vige um clima de brôdágem e de zueira que nada tem a ver com animosidade ou violência. Nos grandes festivais capitalistas, há também uma cisão radical entre artista e público: nenhuma das 50 mil pessoas que estavam lá no About Us assistindo ao Radiohead poderiam acreditar que daria pra “trocar uma idéia” com o Thom Yorke ou o Johnny Greenwood ali no gramadão da Chácara do Jockey. Estamos frente a artistas que andam com guarda-costas armados, em carros blindados, que ficam em camarins inacessíveis, que só conversam com pouquíssimas pessoas da produção e quiçá um outro membro da grande impresa...
Mais uma vez, uma lógica totalmente diferente rola no Bananada e no Noise. Aqui não só não há fronteiras entre público e artistas; os artistas, aliás, são grande parte do público. São bandas prestigiando bandas, bandas aprendendendo com bandas, numa reunião-celebração que desdenha de hierarquias e separações. No começo da noite de sábado, por exemplo, os caras do Black Drawing Chalks, grandes headliners do festival, bebericavam e conversam numa bowa, no meio da galera, fundidos sem frescura no público.
Outro fator de fortalecimento da cena é a capacidade da “galera” de lidar com as diferenças sem rachar-se em panelinhas. Neste quesito, também, vejo o Bananada e o Noise como festivais muito positivos onde os punks, os metaleiros, os indies, os emos, os grunges, os folkies, os hippies, os roqueiros tiozões, dentre outras tribos e etiquetas, all come together. Seria impossível, aliás, que uma festival com 45 bandas conseguisse atingir algo parecido com uma “homogeneidade” musical --- e isso seria mais uma limitação de perspectiva do que uma virtude, creio eu. Muito melhor que seja como é: uma celebração da diversidade (de sons, batuques, melodias, ritmos, sotaques, cores, tribos e visões-de-mundo) que convivem em paz, deixando-se mutuamente se influenciar.
Estes são festivais pra quem leva a Independência a sério. Pra quem não quer comer só aquilo que já foi mastigado e empacotado pelo mainstream. Pra quem quer fazer acontecer uma cultura que não nasça escravizada pelas grandes corporações. Pra quem não deixa seu gosto ser moldado pela MTV ou pelas FMs movidas a jabá. Pra quem tem fome de novidade e curiosidade para ouvir as bandas que despontam, ainda sem renome ou reputação, mas que nascem, muitas vezes, empolgadas, deslumbradas, cheias de sonhos e planos. Pra quem acredita no do-it-yourself. Ou melhor: no do-it-together, como sugeriu o Fábrico Nobre, do MQN, da Monstro e da Abrafin, em sua matéria para o Nagulha. Vale frisar, ainda, o quanto a cibercultura, com sua troca de dados e idéias de modo descentralizado e sem-censura, tem possibilitado uma discussão e um diálogo entre as diferentes "cenas" brasileiras inimaginável antes da internet --- vejam, por exemplo, os imensos debates-por-comments no Scream & Yell e n'O Inimigo.
Pra terminar, queria sugerir um paralelo instigante desta "Nova Era dos Festivais" na música brasileira com as sugestões do "baderneiro" e "crítico cultural" Hakim Bey. Pois nem me parece absurdo dizer que aquilo que se cria durante um Noise ou Bananada é uma daquelas Zonas Autônomas Temporárias de que fala o Bey: espaços de florescimento cultural e libertação comportamental, provisórios mas cíclicos, onde as pessoas ganham voz e uma possibilidade de agirem longe das repressões costumeiras.
Hakim Bey chegou a pensar na "TAZ como festival" no capítulo 3 - "A Psicotopologia da Vida Cotidiana", onde destaca o valor de um acontecimento coletivo
"no qual todas as estruturas de autoridade se dissolvem no convívio e na celebração", com a "emergência de uma cultura festiva distanciada ou mesmo escondida dos pretensos gerentes do nosso lazer. 'Lute pelo direito de festejar!', hino do grupo Beastie Boys, não é, na verdade, uma paródia da luta radical, mas uma nova manifestação dessa luta, apropriada para uma época que oferece a TV e o telefone como maneiras de 'alcançar e tocar' outros seres humanos, maneiras de 'estar junto'! (...) Seja ela apenas para poucos amigos, como é o caso de um jantar, ou para milhares de pessoas, como um carnaval de rua, a festa é sempre 'aberta' porque não é 'ordenada'. A espontaneidade é crucial.
A essência da festa: cara a cara, um grupo de seres humanos coloca seus esfoços em sinergia para realizar desejos mútuos, seja por boa comida e alegria, por dança, conversa, pelas artes da vida. Talvez até mesmo por prazer erótico ou para criar uma obra de arte comunal, ou para alcançar o arroubamento do êxtase. Em suma, uma 'união de únicos' (como coloca Stirner)..." (Zona Autônoma Temporária, pg. 25-27, editora Conrad).