A tentação de chamá-los de “supergrupo” é quase irresistível – por mais que o rótulo soe um tanto idiótico. O Them Crooked Vultures possui um
line-up tão espetacular que não há como evitar que nossas expectativas atravessem o teto e adjetivos hiperbólicos se amontoem na descrição deste fodástico power-trio. Afinal, o “dream team” formado pelo ex-batera do
Nirvana (e líder do Foo Fighters), o ex-baixista do
Led Zeppelin e o guitarrista do
Queens Of The Stone Age (e do Kyuss) é de deixar qualquer roqueiro salivando. Mas e o resultado? Está à altura da reputação destes mito vivos que são Grohl, Jones e Homme?
Os céticos tinham sua parcela de razão se previam que este álbum seria um embuste ou uma decepção: estivemos testemunhando, nestes últimos anos, uma carrada de “superbandas” atingindo resultados duvidosos e nos fazendo suspeitar que gananciosas intrigas corporativas, muito mais do que projetos artísticos consistentes, eram os verdadeiros móveis por trás dessas uniões. Chris Cornell, p. ex., juntou-se a Tom Morello e sua cozinha, mas o
Audioslave não se tornou exatamente um monstro mítico que juntasse o poder de fogo do Soundgarden e do Rage Against the Machine. O grupo se desfez depois de 3 bons álbuns (num caso em que ser “bom” é quase uma vergonha: esperava-se deles nada menos que “de-excelente-pra-cima”!), e a “ressaca” pós-fim-de-banda pareceu deixar Cornell desnorteado, sem-noção e na pior fase de sua carreira (a julgar por seu medonho álbum solo mais recente... que saudades de
Euphoria Morning e de
Superunkown!).
Já Scott Weiland uniu esforços ao Slash, mas o
Velvet Revolver ficou longe de ser tão explosivo quanto o Guns N Roses ou o Stone Temple Pilots na história do rock moderno. Jack White, por sua vez, também meteu-se em “projetos” grandiosos – o
Racounteurs e o
Dead Weather – sem conseguir algo que se assemelhasse ao que conquistou com a genial simplicidade do White Stripes. O que impediria, pois, o Them Crooked Vultures de se tornar mais um tiro no escuro, e um tanto fora do alvo, destinado a se tornar um “item menor” na discografia de seus membros?
É que superbandas e superbandas... Algumas são montadas pelas grandes gravadoras e produtores, interessados num grande estouro comercial que lhes encha o rabo de verdinhas - e nada parece mais promissor que juntar no mesmo time músicos de bandas famosas, “raptando” para o novo grupo os fãs somados das bandas-de-origem dos membros... Mas há “superbandas” que se juntam de modo muito mais genuíno e espontâneo: pois os artistas se admiram, apreciam os trabalhos uns dos outros e sentem um baita tesão com a idéia de tocarem e criarem algo juntos.
Este segundo caso é claramente o que se aplica aos
Crooked Vultures. O importante a frisar é aqui não estão caras jovens, deslumbrados com a fama e querendo fazer sucesso a qualquer preço. Todos os três já possuem pançudas contas bancárias, milhares de fãs devotos e reconhecimento artístico de sobra: já estão muito além das mesquinharias do pop.
Os que são (justificamente) céticos em relação às superbandas – que por vezes soam mesmo como o equivalente dos arrasa-quarteirão hollywoodianos: muita pirotecnia e efeito especial, mas conteúdo pífio e história tosca – podem ir sem medo ao Crooked Vultures.
This is the real thing! A sonzeira matadora que este debut magistral carrega em seus dez mil decibéis de potência é um advogado de defesa perfeito, nos provando que química, entusiasmo, criatividade e pegada não faltam a estes três músicos no topo de seu jogo.
Desmorona logo às primeiras músicas qualquer suspeita de que isto pudesse se tratar de um “projeto paralelo” (“cada uma que inventam!”, ralhou Josh Homme numa entrevista ao deparar com este rótulo indigesto!). Nenhuma banda com 3 músicos deste naipe, que são ouro maciço do mais puro quilate, merece ser rotulada como “projeto paralelo” (no sentido de algo secundário e periférico em relação às “bandas centrais”). E certamente o Crooked Vultures não está sendo vista assim (como um mero “projetinho de lazer”) por nenhum de seus integrantes.
Dave Grohl e Josh Homme já são amigos de longa data – tanto que já tocaram juntos em
Songs For The Deaf, álbum de 2002 do Queens. Os dois já tinham combinado faz tempo que trampariam juntos “assim que os calendários batessem” e parecem muito empolgados com a chegada deste momento. Mas não parecem ser camaradas daqueles que se zoam por serem uns cuzões, mas muito mais do estilo “lendas vivas que se respeitam”.
E talvez seja preciso ser músico para entender o tesão quase sexual que Josh e Dave devem sentir ao pensar: “
bloody hell, 'tamos tocando com o cara do Led Zeppelin!” Mas o imenso prazer de estarem juntos, que transparece claramente no álbum, certamente não apaga a “responsa” que uma união destas carrega. E eles não fugiram dela, nem deixaram de honrá-la: este é certamente um dos discos de estréia mais responsa da década. E já nos faz começar a torcer para que não seja o único.
A sensação que fica, logo às primeiras ouvidas, é que eles quiseram fazer algo
clássico, o que é irrealizável sem que se tome certos riscos e sem que se negue a trilhar as estradas mais fáceis. E é bem provável que o tenham realizado: não temos ainda o veredito da história, que só as décadas futuras darão, mas este é o tipo de álbum que causa um terremoto tamanho quando o ouvimos as primeira vezes que soltamos expressões exageradas (“clássico instantâneo!”) achando que são as únicas
“mots justes” que fazem juz a nosso entusiasmo...
Que Josh Homme é um mago-das-guitarras dum
punch fenomenal já sabemos faz tempo. Desde sua puberdade no
Kyuss, quando mal tinha pêlos no saco mas já era dono do ampli mais diabólico do deserto, Homme vêm reinventando o instrumento como poucos músicos vivos. Mas neste álbum ele se supera: passeia por riffs, licks, hooks e solos com tamanha verve e feeling que mereceria o apelido de Capitão Gancho – como bem sabe quem foi “enganchado” por “New Fang”, o excelente primeiro single.
“Elephants” é mais mastodôntica que qualquer coisa que Jack White já tenha feito – e pesa, sozinha, toneladas mais do que o clássico álbum dos
White Stripes. Quem curte o tal do “heavy metal inteligente” (andam dizendo que isso existe...), certamente irá se esbaldar com esta sonzeira que remete ao stoner-rock das antigas ao mesmo tempo que pisca os olhos para o Mastodon ou para o Converge, celebradas bandas do novo metal.
Já “Scumbag Blues” nos leva para um chapado rolê pelo lado mais noisy dos anos 60, evocando o Cream e o Blue Cheer, com a tecladeira de Jones e a cantoria
à la Jack Bruce de Homme tornando-a uma pepita digna de figurar no
Disraeli Gears.
Inúmeras provas se encontram neste álbum matador de que Josh Homme não está interessado em desfilar seu virtuosismo como fazem os estranguladores-de-peru profissionais, à maneira de Steve Vai e Malmsteen. Homme é um músico econômico, conciso e preciso. O que não impede seu som de ser luxurioso e sofisticado, ao mesmo tempo robótico e dançante, pesado mas cheio de groove, e que vai transando com perfeita química com as linhas de Jones e a batera de Grohl. Por todo canto do álbum estão “ganchos” irresistíveis que certamente seriam aprovados por Jimmy Page, Angus Young ou Keith Richards – e que nós, reles mortais, também ouvimos com a plena empolgação de nossos pescoços head-bangantes e nossas air-guitars esporradas.
Ouçam o solo matador de “Warsaw”, que mais parece uma gaita harmônica que atravessa um pedal wah-wah, e tentem não pirar com a molecagem esperta de Homme. Eis um guitarrista que brilha ao apostar na simplicidade memorável muito mais do que na complexidade dispersiva. Ele costuma centra foco em sequências breves de notas, que entram numa espécie de
loop, tão cativantes e memoráveis que voltam para assombrar nossas insônias ou nossas filas-de-espera. O efeito é chapante, sublime, mortífero!
Até suspeito que daqui a algumas décadas, quando os historiadores da guitarra olharem para trás tentando encontrar, nesta década que se acaba, os grandes inovadores e subversores das 6 cordas, talvez os encontrem principalmente em Homme e Frusciante.
Como vocalista, Josh também mostra-se cada dia melhor e mais confiante: sua voz soa expressiva, agradável e cool. Ele nada têm das frescurites e exibições-de-culhão de muitos “cantores de rock pesado” (não está tentando ser Dio ou Dickinson, e nem tem potência de voz pra isso); mas criou um estilo vocal próprio e que mostra-se a cada dia mais versátil. Quando o esporro se acalma, pode-se ouvir mais claramente toda a beleza do seu canto - como acontece em vários momentos da power-balada “Bandoliers”, onde ouvem-se claramente as lições que aprendeu com seu camarada Mark Lanegan. Decerto que falta a Josh o vozeirão rouco e sujo-de-uísque que o vocalista do
Screaming Trees emprestou a algumas sublimes músicas do Queens, mas a imitação/homenagem que ele faz a Lanegan é digníssima. Até seu “ataque” vocal mostra-se capaz de ferocidades quase juvenis: como quando canta “Reptiles” ou declama, no maior gás, o refrão in-bloomesco de “Mind Eraser, No Chaser”.
As letras, também, estão excelentes – ainda que grande parte dos ouvintes “passe batido” por elas, sem entendê-las, por serem altamente crípticas e misteriosas. Josh parece estar escrevendo uma poesia suja e contracultural que nos faz suspeitar de uma certa influência de Brody Dalle, a líder dos
Distillers com quem Josh é casado e têm uma filha.
"I know how to burn with passion / Hold nothing back for future raction!”, canta Josh logo na primeira canção do Crooked Vultures, “No One Loves Me & Neither Do I”. E o ouvinte acredita plenamente que está, sim, frente a um homem que sabe arder de paixão e que não poupa nada para usar no futuro.
“Use me up! Use me up!”
“I know how to get lost in lust / Not because you should, but because you must”, canta ainda Josh, soando deliciosamente herético nesta celebração da luxúria como um “must” (o que já ficava claro no magnífico videoclipe de “Go With The Flow”, do Queens, uma das mais acachapantes
experiências sensoriais em clip da década!). Provando que hedonismo não é futilidade nem ignorância, Josh canta a beleza da entrega ao oceano de sensações da vida. Não acho que seria exagero dizer que é uma
inversão de valores a que ele vem proclamando, quase nieztschianamente: um apelo para que Dionísio, com guitarras em punho, levante-se contra o Apolo e seu séquito de almofadinhas, coroinhas e salta-pocinhas!
“Innocence has no resistance / Against a wicked counselor / Such as I am”, canta em “Scumbag Blues”, brincando de ser uma “tentação encarnada” à qual “inocente” algum saberá resistir. Mais à frente, na música em que cria o brilhante neologismo com o cruzamento entre “amor” e “Calígula”, canta:
“Darling, there are no taboos in lust!” Já na música dedicada a seus amigos-rua-sem-saída (ótima expressão, aliás!), garante:
“Law is just a myth to herd us off the cliff”.
É como se a “luxúria”, que o mundo careta sempre insistiu em considerar pecaminosa, e que o cristianismo transformou em crime e os padres nos proibiram através de mitos (“law is just a myth...”), é celebrada e transformada em musa por esta luxuriosa entidade artística que são os Crooked Vultures. Este estilo-de-vida que entrega-se às “misérias da carne” e aos sujíssimos “prazeres dos sentidos”, como dizem os chatos-de-galocha de todos-os-tempos, é retirada do opróbrio e alçada a um trono. Para o Crooked Vultures, viver de verdade é abrir as portas da percepção, vastamente, ao tumultuoso e luxuriante universo das sensações. Não para se perder “futilmente” nelas, é claro, já que por trás de tudo há um profundo “sentimento de missão” que Josh canta faz tempo – como naquele seu verso clássico do Queens, em “Go With the Flow”:
“I want something good to die for / To make it beautiful to live”.
Se há uma certa influência da lírica sombria característica do grunge, tanto no Queens quanto no Crooked Vultures, isto é sempre transcendido e superado: eles jamais estacionam nas sombras. Vejam, por exemplo, que há escondida nos meios de “Elephants” um momento de trevas quase soundgardenianas, que remetem a “Black Hole Sun” ou mesmo a “Crown of Love”, do Arcade Fire. Mas o interlúdio sombrio está lá só para que no momento seguinte uma imensa onda afogue o desânimo com carradas de entusiasmo. Josh canta: “
No, I can never stay melancholy for long / I've got the memory of your face” [ Não posso permanecer melancólico por muito tempo / Possuo a memória do teu rosto]. Ao fim desta música, Homme celebra sua própria mutabilidade eterna e sua imunidade contra a melancolia - e conclui com o genial verso/corruptela: “
I can never stay anything for long”.
Nem tudo é perfeito neste álbum genial, porém. Muitos ouvintes acharão “Interlude With Ludes” de um experimentalismo meio mala e torcerão para que o esporro rocker retorne logo. Já “Caligulove”, com seu jeito canhastrão, é uma das poucas músicas onde a lírica joshiana, sempre tão criativa e afiada, soa um pouco afeita à clichês: “I don't need a reason, baby / Put your arms around me”, canta Josh, parecendo um Al Green sedento por um let's-stay-together (ao menos por esta noite!). O clima é quase de pornografia e perversão – bem ao estilo do filme de Tinto Brass que “celebra” a devassidão de Roma sob o império de Calígula...
É uma safadeza que remete a uma das músicas recentes mais charmosas do Queens: “I Wanna Make It Witchu” - na qual o “it” do “make it” não refere-se, certamente, a jogar xadrez ou dominó. Talvez sejam estas as piores música do disco, mas isto não as desqualifica – do mesmo modo que ser a pior música de
Nevermind ou
Back In Black é coisa digníssima, ser a pior música do
Crooked Vultures é ainda ser uma bela coisa. Sem falar que músicas que se chamam “Interlude With Ludes” e “Caligulove” não tem a mínima necessidade de serem boas: títulos tão sensacionais dispensam as músicas de quaisquer outros deveres!
Pra Josh Homme, não há sentido em ter uma banda se não for para fazer a música que você sempre quis ouvir. A música que te dá tesão, que te causa uma ereção, que é vulcão em erupção! Ele mesmo descreve seus objetivos nestes termos: sempre tentou compor álbuns que ele mesmo gostaria de pôr no som ou na vitrola e curtir adoidado. Os discos do Kyuss? Ele garante que os ouve direto – e os adora. Resume seu evangelho numa fórmula magistral: “
Make your favorite music or go fuck yourself”.
Concepção que Dave Grohl também deve ter abraçado em muitas fases de sua vida, e que talvez tenha perdido um pouco sendo um rock star do mainstream à frente dos Foo Fighters, mas que ele certamente recupera neste “retorno-ao-autêntico” que dá com o Crooked Vultures. A sensação que temos é que Grohl toca bateria, neste disco, como se estivesse redescobrindo o que é o verdadeiro rock and roll. Ele não somente é extremamente preciso; toca com entusiasmo, fazendo a bateria parecer algo vivo e pulsante, e não um ritmado mecânico que algum robô poderia imitar. Dave Grohl toca como nenhuma bateria eletrônica existente do mundo, ou que venha a ser inventada, é capaz de fazer: injetando vida no ritmo e expressão às pancadas.
E Jones? Ele, que nos últimos anos andou produzindo loucuras de Diamanda Galas e dos Butthole Surfers, parece aqui reencontrar... sim! os tempos de rock and roll em plena curtição que viveu com o Led Zeppelin! E estou longe de achar que ele encare este projeto como algo secundário em seu percurso como músico, como se o mais importante tivesse ficado para trás... Deve ser também pra ele um grande orgulho e prazer estar fazendo um som com estes dois “moleques” que estão entre as mentes mais brilhantes do rock dos anos 90 e 00.
Os três, juntos, soam como camaradas inspirados numa jam, sim, mas não exatamente “descompromissada”: uma jam dentro da qual todos os participantes sentem que estão prestes a criar algo seminal. Neste sentido, os Crooked Vultures podem até ser vistos como dotados de um certo espírito “jazzístico”, já que no jazz os “super grupos” existem de longa data: pensem no exemplo supremo e clássico absoluto,
Kind Of Blue, que reuniu Miles Davis, John Coltrane, Cannonball Adderley e Bill Evans!
“Can't afford to lose my cool”, canta Josh em “Warsaw”. Mas o Crooked Vultures não conseguiria perder o cool nem se tentasse. Como ensinavam os Sonics, banda garageira dos anos 60, que Homme certamente curtiu muito, estes caras conseguem numa bowa conquistar a virtude do roqueiro veterano: ir
maintaining his cool. O que ouve-se em todos estes 66 minutos do debut dos Crooked Vultures é uma banda que não têm ansiedades neuróticas nem exibicionismos narcísicos – e que por isso soa desencanada e poderosa, original e aventureira, cheia de entusiasmo e frescor, na curtição suprema de um rock and roll fodástico. O resultado é um discaço estupendo, que emerge dos lodaçais do pop como um monstro do pântano, contendo uma concentração rocker explosiva e intensa, coquetel perfeito para encerrar a década com um esporro impecável.