sexta-feira, 5 de setembro de 2008

:: The Smiths ::

THE SMITHS,
"Strangeways, Here We Come" (1987)

por Jardel Sebba
(no Noite Passada Um Disco Salvou Minha Vida)


Eu só não lembro se foi no fim de 1989 ou no começo do ano seguinte. O resto é nítido: minha mãe trabalhava no centro do Rio e eu, de férias, ia junto para me enfurnar pelos becos da Cinelândia. Algumas paradas eram obrigatórias, duas em particular. As bancas dos partidos políticos, na porta da Câmara dos Vereadores, onde discutia-se acaloradamente sobre a esquerda no Brasil e o novo Marxismo (existiam essas duas coisas na época). E a rua adjacente ao Teatro Municipal, onde colecionadores (e alguns recém-adeptos ao CD) se encontravam para trocar e vender discos de vinil. Ali foi a minha primeira prévia do Soulseek, onde conheci e ouvi milhões de coisas que não estavam à venda nas Lojas Americanas, e onde, numa dessas levas, trouxe para casa o disco mais importante da minha vida.

Naquele momento, eu tinha quinze anos e a triste convicção de que a música pop era burra. Gostosa de ouvir, dançante, excitante, intrigante, pegajosa, porém burra. Da voz rouca do Paul Young na Rádio Mundial AM aos primeiros números da Bizz, passando pela temporada histérica do RPM no Canecão e pelo meu primeiro disco, o sensacional Colours by Numbers, do Culture Club, o gosto pela canção pop já havia se instalado de forma irreversível em mim ao longo dos anos 80. Eu gostava daquilo, meu pé não negava, meu coração menos ainda. E não fazia diferença se fosse o Ritchie de óculos escuros no Chacrinha ou o absurdo show do Motorhead no Brasil que passou na Manchete. "A Vida tem Dessas Coisas" e "Ace Of Spades" nunca estiveram tão próximas.

Acontece que estávamos entrando nos anos 90, e os tempos eram outros. A América Latina tinha presidentes liberais, o Leste Europeu era um território livre, o mundo começava um ciclo sem Guerra Fria e o Brasil entrava na era Collor. Mais importante, eu estava naquele preciso momento deixando de ser um moleque descompromissado para me tornar um moleque chato, pedante, metido em discussões sobre a estética da crueldade enquanto bandeira ideológica em Saló, de Pasolini, ou sobre o impacto dos ensaios de Camus sobre a condição humana. Nesse contexto, a minha adorada música pop continuava grudenta como gel New Wave, mas parecia burra, muito burra.

Foi nesse contexto que, umas duas semanas depois de ter sido comprado nas bancas do centro, Strangeways, Here We Come, dos Smiths, tocou pela primeira vez na minha vitrola e mudou a minha maneira de encarar a música. Ele tinha a resposta. Nunca, em nenhum outro momento da história da música pop, a canção obteve um tratamento tão luxuoso quanto no derradeiro álbum dos Smiths. Ali, a música pop deixava a seção de enlatados e passava a integrar a de biscoitos finos.


Num primeiro momento, Strangeways... parecia uma mulher linda mas sem assunto; você se apaixona por ela, mas não entende muito bem o motivo. Algo que não estava claro então, mas que já se instalava no inconsciente, era que aquele disco fazia algo sublime a quem gosta de música: elevava a música pop à categoria de obra de arte. Se deixar apaixonar pela obra-prima dos Smiths é entender um disco de música pop de outra maneira, é perceber o artigo de luxo que aquela embalagem pode conter. Nunca o mundo foi tão simples e tão intenso, nunca poderia imaginar que meia dúzia de canções poderiam ser tão ricas, tão vivas, tão belas. Tão admiráveis e, principalmente, tão coesas entre si.

A partir de então, passei a entender que havia uma diferença entre os discos: havia aquele, como o Strangeways..., que precisam ser admirados como uma obra de arte, com a continuidade e coesão que se enxerga um quadro ou uma peça de teatro, e outros cujas canções podem figurar na próxima coletânea caça-níqueis da gravadora ao lado de meia dúzia de hits e lados Bs sem constrangimento algum para o consumidor. Algum estraga prazer há de mencionar a expressão "disco conceitual" para lembrar que discos para serem entendidos de forma contínua não eram novidade em 1987. Bullshit. Nenhum disco pode ser mais conceitual e coeso do que um que abre com "Oh, I Think I'm In Love" e fecha com "I Won't Share You".

É isso: o primeiro passo para me apaixonar por Strangeways... foi entender, depois de algumas audições, que aquele era um disco que falava essencialmente de amor. O amor da juventude perdida, o amor pelo que se começa e não se termina, o amor pelo ceticismo, o amor pela namorada em coma, o amor que é apenas um pouco menor do que costumava ser, o amor de sonho na noite anterior, o amor pelo ódio de quem não merece amor, o amor pelo que foi sua vida, embora você pudesse ter dito não, o amor de alguém que está perto, o amor que não compartilha seu objeto de amor. Dez faixas, dez tipos de amor. Se um disco podia ser tão simples e complexo, e ao mesmo tempo falar de amor de forma tão cortante e direta, talvezeu não precisasse de nenhum daqueles livros e cineastas e ensaístas, mas tão-smente de um quarteto de Manchester.

Há algo de mágico no testamento dos Smiths. Da capa, com Richard Davalos, à primeira faixa sem guitarras, a sublime "A Rush and a Push and The Land is Ours" (aliás, quantas vezes você começou a ouvir um disco e levou uma pedrada como "Olá, eu sou o fantasma de Joe, o encrenqueiro, enforcado em seu lindo pescocinho 18 meses atrás. Disseram 'há muita cafeína no seu sangue, e uma ausência de sabor na sua vida', eu disse 'me deixem sozinho porque eu estou bem, apenas surpreso de ainda estar sozinho'"?). Da linearidade das faixas nos dois lados do vinil (cinco de cada lado, uma canção "difícil" abrindo, uma canção épica no meio) à primeira participação de Morrissey como intrumentista num disco da banda, no dedilhado de piano da soberba "Death of a Disco Dancer" (aliás, quão profética ela seria sobre o futuro de Manchester e seu clube mais famoso, o Hacienda?). Da descuidada mixagem que deixou a frase de Morrissey no fim de "I Started Something I Could'nt Finish" perguntando ao produtor se aquele era o take final ("Ok Steven, shall we do it again?") ao inusitado solo no meio da inacreditável "Paint a Vulgar Picture", que nada mais era do que um recurso para cobrir o buraco que surgiu com a exclusão de parte da letra em cima da hora (aliás, quantas confissões são tão sinceras e ácidas sobre a vida no showbusiness?). Da introdução doentia de "Last Night I Dreamt That Somebody Loved Me" à declaração de amor de "I Won't Share You" (na época, dizia-se que a gota d'água para a separação da banda teria sido o fato de JoOhnny Marr abandonar as gravações no meio para participar de discos do Bryan Ferry e dos Talking Heads. Seja lá que peso isso tenha tido, "I Won't Share You" faz todo sentido).

Aquilo que para mim era a introudção de uma banda que continuaria a mudar a minha vida, para a própria banda era o epílogo. Strangeways... começou a ser concebido em fevereiro de 1987, depois de uma mini-turnê européia. A banda chegou ao Wool Hall Studio, em Bath, num clima de euforia. Era um estúdio caseiro no meio do nada, e pela primeira vez ninguém precisava gravar correndo para voltar para casa. Bem servidos de álcool numa casa aconchegante, as jams varavam a madrugada. Pelo menos entre Marr, Rourke, Joyce e o produtor Stephen Street, já que mOrrissey dormia cedo, por volta das onze da noite, e não socializava nem quando deveria - há a célebre história do take de "I Started Something..." que o produtor levou para o cantor ouvir na sala de tevê. Street voltou para o estúdio informando que Morrissey não teria gostado de algumas passagens da gravação. Johnny Marr respondeu com um singelo "fuck him".

Na receita dos meses em que a banda se trancou para produzir o disco, muita cerveja, vinho e dancinhas ridículas ao som de Sign O' The Times, o então recém-lançado disco do Prince. Era o fim, mas nem parecia. Havia problemas, claro, as relações já haviam se desgastado, Johnny Marr, que havia entrado na banda aos 19 anos, sofria de estafa, e Ken Firedman era uma figura nefasta que rondava o estúdio e interrompia as jams para conversar em separado com a dupla de compositores da banda sobre dinheiro. Apesar de tudo, segundo o relato de quem esteve lá, os Smiths poucas vezes pareceram tão felizes e à vontade na vida.

Poderão surgir bandas melhores que os Smiths, letristas mais espetaculares que Morrissey, compositores mais geniais que Johnny Marr. Mas nunca mais haverá um disco como "Strangeways, Here We Come". Ele não é só um símbolo da música pop como produto de primeira necessidade. É, também, um antídoto contra a mediocridade. Sempre que ouço uma versão lamentável de alguma canção que eu gosto, ou quando inventam um hype sobre uma banda ruim, ou quando alguma farsa se apresenta como artista, ou quando vejo surradas jogadas de marketing que "chocam" a opinião pública, eu o coloco no toca-discos. Se um disco como aquele existe, não há razão para perder a fé na música pop.


DOWNLOAD (35 MB, 11 músicas, 128kps):
http://www.mediafire.com/?jhvmbjpaqpo

Um comentário:

 ­adan ­arruda. disse...

ah! este é meu disco preferido deles!