JUVENTUDE E VIOLÊNCIA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO
Artigo de Luiz Eduardo Soares
(Antropólogo e cientista político; professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro; co-autor de “Elite da Tropa”. Compartilhar no Facebook.)
Está em curso no Brasil um verdadeiro genocídio. A violência tem se tornado um flagelo para toda a sociedade, difundindo o sofrimento, generalizando o medo e produzindo danos profundos na economia. Entretanto, os efeitos mais graves de nossa barbárie cotidiana não se distribuem aleatoriamente. Como tudo no Brasil, também a vitimização letal se distribui de forma desigual: são sobretudo os jovens pobres e negros, do sexo masculino, entre 15 e 24 anos, que têm pago com a vida o preço de nossa insensatez coletiva.
O problema alcançou um ponto tão grave que já há um déficit de jovens do sexo masculino na estrutura demográfica brasileira. Um déficit que só se verifica nas sociedades que estão em guerra. Portanto, apesar de não estarmos em guerra, experimentamos as consequências típicas de uma guerra. Nesse caso, uma guerra fratricida e autofágica, na qual meninos sem perspectiva e sem esperança, recrutados pelo tráfico de armas e drogas (e por outras dinâmicas criminais), matam seus irmãos, condenando-se, também eles, a uma provável morte violente e precoce, no círculo vicioso da tragédia.
Cerca de 45 mil brasileiros são assassinados por ano no Brasil. Em algumas regiões das grandes cidades, marcadas pelo drama da desestruturação familiar, do desemprego, da degradação da auto-estima, da falta de acesso à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer, os números chegam a patamares ainda mais alarmantes. Por outro lado, enquanto o crime se organiza e penetra as instituições públicas, as polícias tem sido, com frequência inaceitável, ineficientes - e, muitas vezes, desrespeitosas dos direitos humanos e das leis que lhes cabe defender. Os milhares de policiais honestos, competentes e dedicados, que arriscam diariamente suas vidas, têm trabalhado em condições técnicas e organizacionais precárias e não têm recebido o reconhecimento que merecem.
Várias são as matrizes da criminalidade e suas manifestações variam conforme as regiões do país e os estados. O Brasil é tão diverso que nenhuma generalização se sustenta. Sua multiplicidade também o torna refratário a soluções uniformes. A sociedade brasileira, por sua complexidade, não admite simplificações nem camisas-de-força. Em São Paulo, a maioria dos homicídios dolosos encerra conflitos interpessoais, cujo desfecho seria menos grave caso não houvesse tamanha disponibilidade de armas de fogo. No Espírito Santo e no Nordeste, o assassinato a soldo ainda prevalece, alimentando a indústria da morte, cujo negócio envolve pistoleiros profissionais, que agem individualmente ou em “grupos de extermínio”, dos quais, com frequência, participam policiais. Na medida em que prospera o “crime organizado”, os mercadores da morte tendem a ser cooptados pelas redes clandestinas que penetram as instituições públicas, vinculando-se a interesses políticos e econômicos específicos, aos quais nunca é alheia a lavagem de dinheiro, principal mediação das dinâmicas que viabilizam e reproduzem a corrupção e as mais diversas práticas ilícitas verdadeiramente lucrativas.
É indispensável destacar a gravidade da violência doméstica e da violência de gênero, contra as mulheres, assim como de crimes como o racismo e a homofobia. São menos conhecidos, publicamente, porque menos delatados e oficialmente registrados, mas intensamente vividos, na privacidade, ou em situações públicas que as formalidades institucionais mantêm à sombra da lei, sob o manto da negligência (quase cúmplice).
Um jovem pobre e negro caminhando pelas ruas de uma grande cidade brasileira é um ser socialmente invisível. A invisibilidade decorre principalmente do preconceito ou da indiferença. Uma das formas mais eficientes de tornar alguém invisível é projetar sobre ele ou ela um estigma, um preconceito. Quando o fazemos, anulamos a pessoa e só vemos o reflexo de nossa própria intolerância. Tudo aquilo que distingue a pessoa, tornando-a um indivíduo, tudo o que nela é singular desaparece. O estigma dissolve a identidade do outro e a substitui pelo retrato estereotipado e a classificação que lhe impomos.
Quem está ali na esquina não é o Pedro, o Roberto ou a Maria, com suas respectivas idades e histórias de vida, seus defeitos e qualidades, suas emoções e medos, suas ambições e desejos. Quem está ali é o “moleque perigoso” ou a “guria perdida”, cujo comportamento passa a ser previsível. Lançar sobre uma pessoa um estigma corresponde a acusá-la simplesmente pelo fato de ela existir. Prever seu comportamento estimula e justifica a adoção de atitudes preventivas. Como aquilo que se prevê é ameaçador, a defesa antecipada será a agressão ou a fuga, também hostil. Quer dizer, o preconceito arma o medo que dispara a violência, preventivamente.
O preconceito provoca invisibilidade na medida em que projeta sobre a pessoa um estigma que a anula, a esmaga e a substitui por uma imagem caricata, que nada tem a ver com ela, mas expressa bem as limitações internas de quem projeta o preconceito. Por isso seria possível dizer que o preconceito fala mais de quem o enuncia ou projeta do que de quem o sofre, ainda que, por vezes, sofrê-lo deixe marcas. O processo lembra, em parte, histórias de terror nas quais o vampiro se apodera do corpo de sua vítima e absorve sua identidade, depois de sorver sua vida.”
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“Como seria entrar num restaurante, numa noite fria, e levar consigo, dentro de você, a imagem do menino de rua, com frio e fome, desamparado? Aquele mesmo com o qual você topou na porta do restaurante. Como portar uma imagem que contrasta tão duramente com o aconchego que lhe dá prazer? Como extrair prazer da refeição se os meninos estiverem presentes em sua memória, em sua consciência, em sua imaginação? Você perderia o apetite. Como trazer para casa a imagem desoladora do menino ao relento? A pregnância emocional e o magnetismo moral dessa imagem invadiriam o sono e o matariam. Como compatibilizar essa presença perturbadora, constante, dentro de você, com seus pequenos prazeres cotidianos? Como divertir-se, amar, celebrar a vida, usufruir as amizades? Seria inviável.
Para nos proporcionar a indispensável paz interior, para nos apaziguar o espírito e devolver o mínimo indispensável de equilíbrio psíquico, nossa mente nos submerge em uma amnésia seletiva, cauterizando os canais da percepção, sempre seletivamente. A alienação, este alheamento de que falamos, é o preço a pagar pela modesta cota de felicidade que nos cabe. Eu sei que é ruim, é desagradável e ainda por cima soa cínico: como a felicidade de alguém pode sustentar-se em meio à desgraça; pior ainda: na cegueira seletiva proporcionada por essa caprichosa negação? Mas é isso mesmo que acontece… Se nos repugna esse filtro, essa forçada naturalização do inaceitável, essa resignação ao intolerável, muito bem, procuremos participar do esforço coletivo de mudança.
Se houver mudança, ela terá de atingir as condições sociais e econômicas que produzem o abandono das crianças e dos adolescentes; ela terá de alcançar e cortar fundo o mundo da educação. Essas seriam mudanças possíveis e eficazes. Não digo que sejam politicamente viáveis hoje, porque custariam caro e afetariam a lógica econômica dominante, que privilegia o mercado e o capital, celebrando o lucro. Talvez não haja ainda força política acumulada e suficientemente estruturada para enfrentar os grandes interesses, nacionais e multinacionais, vocalizados pela mídia. De todo modo, a mudança exigiria um imenso mutirão educativo e protetor dos menores de 18 anos, pelo menos. Essa galera que, retoricamente, políticos e mídia intitulam “o futuro do país”, mas que continua por aí, arrastando os pés, e só pisa o salão nobre da agenda pública quando se discute a redução da idade de imputabilidade penal.”
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“Ninguém cria sozinho ou escolhe para si uma identidade como se tirasse uma camisa do varal. Não se porta ou carrega uma identidade, como se faria com uma carteira, um vestido ou um terno. A identidade só existe no espelho, e esse espelho é o olhar dos outros, é o reconhecimento dos outros. É a generosidade do olhar do outro que nos devolve nossa própria imagem ungida de valor, envolvida pela aura da significação humana, da qual a única prova é o reconhecimento alheio. Nós nada somos e valemos nada se não contamos com o olhar alheio acolhedor, se não somos vistos, se o olhar do outro não nos recolhe e salva da invisibilidade…
Por força da projeção de preconceitos ou por conta da indiferença, perambulam invisíveis pelas grandes cidades brasileiras muitos jovens pobres, especialmente os negros - sobre os quais se acumulam, além dos estigmas associados à pobreza, os que derivam do racismo. Um dia, um traficante dá a um desses meninos uma arma. Quando um desses meninos nos parar na esquina, apontando-nos esta arma, estará provocando em cada um de nós um sentimento - o sentimento do medo, que é negativo, mas é um sentimento. Ao fazê-lo, saltará da sombra em que desaparecera e se tornará visível. A arma será o passaporte para a visibilidade.
Quando nos ameaça na esquina, pela primeira vez, o menino não aponta para nós sua arma do alto de sua arrogância onipotente e cruel, mas do fundo de sua impotência mais desesperada. O menino lança a nós um grito de socorro, um pedido de reconhecimento e valorização. Surge diante de nós da treva em que o metemos, desembaraçando-se aos trancos e barrancos do manto simbólico que o ocultava. O sujeito que não era visto impõe-se a nós. Exige que o tratemos como um sujeito. Recupera visibilidade, recompõe-se como sujeito, se reafirma e reconstrói. Põe-se em marcha um movimento de formação de si, de autocriação.
Quando seria necessário reforçar a auto-estima dos jovens transgressores no processo de recuperação e mudança, as instituições jurídico-políticas os encaminham na direção contrária: punem, humilham e dizem a eles: “Vocês são o lixo da humanidade!” É isso que lhes é dito quando são enviados às instituições “socioeducativas”, que não merecem o nome que têm - o nome mais parece uma ironia. Sendo lixo, sabendo-se lixo, pensando que é este o juízo que a sociedade faz sobre eles, o que se pode esperar? As instituições públicas lançam ao fogo do inferno carcerário-punitivo os grupos e indivíduos mais vulneráveis - mais vulneráveis dos pontos de vista social, econômico, cultural e psicológico.
Esmagando a auto-estima do adolescente que errou, a sociedade lava as mãos, mais ou menos consciente de que está armando uma bomba-relógio contra si mesma, contudo feliz, estupidamente feliz por celebrar e consagrar seus preconceitos. O preço dessa consagração autocomplacente é a violência.”
SOARES, L.E. Em: “Juventude e Sociedade - Trabalhado, Educação, Cultura e Participação”. Org: Regina Novaes e Paulo Vannuchi. Ed. Perseu Abramo. Imagem: Cidade de Deus, de Fernando Meirelles. O debate está aberto! Compartilhem e comentem à vontade!
Ônibus 174, de José Padilha
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