segunda-feira, 27 de outubro de 2008

:: Buddy Guy ::

BUDDY GUY,
Stone Crazy!

por ADALTO ALVES

Eu fiquei alucinado quando ouvi Stone Crazy!, do Buddy Guy, pela primeira vez. Não lembro quando foi, juro. Parece engraçado. Esses choques na medula costumam ser marcantes, a ponto de determinar um ritual de passagem, do tipo eu nunca mais fui o mesmo ou algo parecido. Talvez eu tenha ficado tão atordoado que detalhes insignificantes, como data, horário, país, planeta ou a cotação do dólar tenham sido esquecidos de uma vez por todas.

Mas, se eu não me lembro quando foi que ouvi Stone Crazy! pela primeira vez, uma coisa é certa: eu nunca mais deixei de ouvi-lo. Ouço exatamente agora, enquanto escrevo, procurando, quem sabe, pela circunstância excepcional, recuperar aquela primeira impressão. Não é fácil, tanta água passou debaixo da ponte de lá para cá, tantas transformações ocorreram no mundo, na minha cidade, na minha cabeça, que eu não pareço mais o mesmo. Às vezes, nem sequer me reconheço. Mas a emoção de ouvir Stone Crazy!, se também sofreu mudanças, nunca deixou de ser forte o bastante para me aproximar de Buddy Guy.

Ele é o único sujeito no mundo que eu chamo de ídolo. O que não é pouco. Eu tinha um pôster do Elvis Presley no meu quarto quando era criança, e o primeiro disco da minha vida foi um compacto duplo de Elvis (com "Heartbreak Hotel", "Hound Dog", "Love Me Tender" e "Jailhouse Rock"), que veio encartado no primeiro número da revista Rock Espetacular, que me apresentou, aos 8 anos de idade, no Rio Grande do Sul, as caras e bocas de Bill Haley, Little Richard, The Beatles, Bob Dylan e que tais. A semente estava plantada. E por mais que, com o passar do tempo, eu tenha aprendido a admirar tanta gente boa e, neste caso, citar nomes seria odioso, Buddy Guy tornou-se para mim, a partir de Stone Crazy!, um fenômeno de proporções inquestionáveis. Não importa o que ele faça num disco, qualquer disco, eu estarei lá para aplaudi-lo.

Mas não se preocupem comigo. Eu gosto da música do Buddy Guy. Não sou o tipo do cara que monta fã-clube, faz página virtual para divulgar as curiosidades do artista, guarda álbum com fotos, caça autógrafos (e já estive perto o suficiente), compra bugigangas com a identificação do malandro ou não sabe falar de outra coisa.

Eu não sei se o Buddy Guy é casado, onde mora, quantos filhos tem, se vai ao dentista duas vezes por ano ou em que loja compra suas roupas. Nem quero saber. O que me interessa de verdade é que, aos 60 e tantos anos, ele gravou uma pancada na moleira magistral, chamada Sweet Tea. Mas eu quero falar de Stone Crazy!, que, se não salvou a minha vida a noite passada, me deu vontade de continuar vivo. Se o blues, comumente associado com a tristeza, tem o poder de me deixar feliz, é porque há mistérios na existência que não podem ser resumidos em fórmulas prontas (e gastas). Aprendam isso com o titio, crianças.





Eu cheguei ao Buddy Guy por vias tortas. Culpa do Eric Clapton. Chique, não é? Estava numa fase em que o gargalo do pós-punk, com suas especiarias góticas e apetrechos de brechó acumulados na penteadeira glitter, me dava o impulso de gritar: manera, Frufru, manera. A viadagem daquele tempo não caía muito bem nos ouvidos de quem tinha sido criado na escola do hard rock. Muito menos uma certa pose melancólica, deprimida e suicida, que gerou equívocos monumentais. Aquilo era muito chato. Eu também não tinha rebolado a pança nas pistas das discotecas, de modo que me faltava, como falta, apesar dos esforços em contrário, a sensibilidade adequada para entrar em sintonia com aquelas canções regidas por sintetizadores. Hoje pode soar ridículo, mas, na virada dos anos 70 para os 80, havia uma trincheira que separava os bad boys do heavy metal daqueles rascunhos de metrossexuais que borravam a cara de maquiagem e usavam penteados estrambóticos.

Eu nunca fui de achar o maior barato as guitarras distorcidas, acompanhadas por berros ensurdecedores e marteladas na bateria, ainda mais quando radicalizadas em feições trash, death, black e o diabo a quatro, mas entre as duas escolhas eu me posicionava entre os adeptos dos dedinhos em riste imitando chifrinhos, ai, ai. Que remédio? Não vou entrar na onda de comentar todo aquele período. Esse testo é movido mais pela paixão da lembrança do que pela razão da análise. Mas foi essa confluência básica, que colocava o rock numa encruzilhada (e a gente não imaginava o que viria pela frente), que me levou a procurar alternativas.

Foi quando encontrei, numa resenha do André Mauro, e aqui faço justiça ao meu guru na crítica de rock (um cara nunca citado, que alimentou a minha cabeça um bom par de anos e me fez pensar, definitivamente, em ser jornalista), uma fala atribuída ao Eric Clapton. Ele, Clapton, dizia que, no começo de carreira, ficava curioso para conhecer aqueles nomes que apareciam nos agradecimentos das contracapas dos discos de rock que chegavam dos Estados Unidos.

Nomes esquisitos como Muddy Waters, Willie Dixon, Howlin' Wolf (para mencionar uma trindade umbilical). E se o Clapton, que eu tinha em alta conta, ficou curioso, eu também fiquei (valeu, André Mauro). Resolvi, àquela altura do campeonato, embolado no meio de campo, correr atrás dos bluesmen. Seria uma forma agradável de gastar meu rico dinheirinho. Já que eu ainda não tinha muita coragem e paciência para mergulhar nas águas turvas do jazz, ficaria pelo menos na pré-história do rock.

Sábia decisão. Depois de atolar os pés nas margens barrentas do rio Mississipi, acabei atolado até o pescoço. Fiquei anos seguidos ouvindo preferencialmente blues de todas as vertentes, inclusive o brasileiro (ou aquele feito no Brasil). Até cheguei, em Goiânia, a manter um programa do gênero numa FM. Foi num disco do Muddy Waters, o fabuloso The Folk Singer, de 1963 (o ano em que eu nasci), "oh, my home is in the delta", que dei de cara com o Buddy Guy, então um moleque magricela, espremido entre o monstro sagrado Waters e o corpanzil de guarda-roupa, equivalente ao baixo acústico, de Willie Dixon, bem na capa. Não dei muita bola para aquele desconhecido. Mas logo na primeira faixa aquele moleque desgraçado aprontou uma comigo que eu nunca esqueci. Me arrepio só de pensar. A 1minuto e 3 segundos, ele começou a modular uma sequência aguda que foi me tirando o fôlego, sob as frases de Waters.


Aquilo foi numa tensão crescente. E eu no barco, boquiaberto. A 1 minuto e 34 s, ele arremata o acorde com uma tirada genial, simples, certeira, inacreditável em sua beleza. Pronto, bastou. Na hora, eu pensei: esse cara é um dos melhores guitarristas que eu conheço no mundo. Por conta de 30 segundos soberbos, espetaculares, que me tiraram do sério. Aos quais eu sempre volto, por Waters, por Dixon, por Buddy Guy, por mim.

O nome de Buddy Guy ficou gravado na memória. Mas ele não desfrutava, como desfruta hoje, da merecida atenção dos brasileiros, como um autêntico embaixador do blues, ao lado de B.B. King. Tarefa iniciada, salvo engano, em 1985, no 150 Night Club, em São Paulo. O esmo bar de um hotel cujo nome escapa pela contramão da lembrança, que também recebeu, suprema dádiva, a iluminada Alberta Hunter.

Quando Buddy Guy lá esteve pela primeira vez, com o chapa inseparável Junior Wells, eu morava em Tucuruí, no Pará. Trabalhava numa estação climatológica do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), que ficava ao lado da estação repetidora de televisão da verdadeira cidade, construída no meio do nada, para abrigar os trabalhadores das diversas empresas envolvidas na construção do que chamávamos de a maior hidrelétrica do Brasil. Longe demais das capitais.

Não sei por quê, uma bela noite, eu me infiltrava clandestinamente na estação repetidora, com a cumplicidade do amigo de plantão, para ver, creio que na Bandeirantes, imagens do show do Buddy Guy no 150 Night Club. Não lembro por quê, no equipamento privilegiado da estação, nós tínhamos acesso a algo que seria vedado ao comum dos mortais. Mas lembro que, mandando bala numas cervejinhas, eu vi Buddy Guy em ação pela primeira vez. Cara, foi outro choque. O figura não se limitou em ficar no palco. Desceu, soltou a voz no meio da platéia de almofadinhas, biritou nos drinques das mesas, colocou a guitarra no colo de uma mulher e, de sacanagem, fez o intrumento gemer. Sempre sorrindo. Feito maior para meus olhos esbugalhados: começou a solar feito um louco, atravessou o ambiente e entrou no banheiro. As câmeras atrás dele, Buddy Guy foi tocar guitarra para algum maluco chapado. Então descobri que Buddy Guy era meu ídolo.

Quatro anos depois, eu trabalhava como locutor de uma loja de departamento em Goiânia. (Quando fui fazer o teste, e disse que gostava de rock'n'roll, o filho-da-puta do gerente perguntou o nome do disco novo do Pink Floyd e eu não sabia, porque não era mais Pink Floyd, era o combo caça-níqueis do David Gilmour, sem Roger Waters. Como meu teste ficou marcado para mais tarde, eu decorei a porcaria do nome da porcaria do disco, que tinha aquele monte de camas espalhado numa praia, e anunciei, já no microfone, como oferta na discoteca. Consegui o emprego.) Fiquei sabendo então que Buddy Guy seria uma das atrações do primeiro festival internacional de blues de Ribeirão Preto. Pirei.

Cheguei no gerente geral e disse que iria a esse festival de qualquer maneira. Se ele não me desse licença, eu pediria demissão (era solteiro, morava com os pais, e ainda podia me dar ao luxo de ser irresponsável). Para minha imensa surpresa, ele não somente me liberou, como conseguiu ingressos para os cinco dias de shows, de graça, e um barraco para eu dormir, porque ele tinha um imrão, vereador, em Ribeirão Preto. Isso é que é sorte. Gente finíssima, o seu Marçal. Um abraço para ele e minha eterna gratidão (se ainda for vivo e chegar a ler isso).

Eu não apenas vibrei com o show do Buddy Guy (que, em certo momento, trocou toda a sua banda por músicos que o assistiam nos bastidores, saindo de cena, e deu uma tremenda força para o Flávio Guimarães, gaitista do Blues Etílicos, que abriu o festival, chamando-o ao palco), como tive o prazer de ver Junior Wells e Albert Collins, hojé falecidos, Magic Slim e Etta James. André Cristovam, posudo, miou em falso. Nunca mais voltei a um show do Buddy Guy no Brasil, e olha que, vira e mexe, ele aparece. Mas tenho seus discos, às pencas, de muitas fases e descobertas. E o vídeo do The Real Deal, ao vivo, lá no boteco que ele tem em Chicago, o Legends, com o branquelo do G. E. Smith.

Buddy Guy, para mim, é o autêntico responsável pela transição do blues tradicional para o blues moderno. Ele adotou tecnologias sem medo, potencializou o som de sua guitarra, que tem voz própria, identificável à distância, apurou o vocal de shouter e tem uma performance dinâmica e explosiva, sem perder um só segundo a linguagem primordial do blues. Como influência confessa de Jimi Hendrix, ele tem trânsito livre com o pessoal do rock. Depois de gravar com B. B. King e voltar a Robert Johnson, Clapton jura que vai gravar com ele. Passadas as mortes recentes de John Lee Hooker, Stevie Ray Vaughan e Junior Wells, Buddy Guy, com B. B. King, Otis Rush, John Mayall e uns poucos, apresenta-se como um dos últimos bastiões de uma época e de uma linhagem nobre. O blues não vai morrer, penso eu, embora muitos o vejam num beco sem saída. Mas certamente ficará mais pobre com a partida de Buddy Guy.



O que me leva a ressaltar a importância de Stone Crazy!, ainda hoje o meu disco preferido de Buddy Guy, lançado em 1981 pela célebre Alligator Records. "I Smell a Rat", de 9 minutos e meio, pega o ouvinte pelo pescoço. Começa com um urro de Buddy Guy e um imediato solo desenfreado de uma guitarra possessa e desequilibrada. Quando Buddy Guy começa a cantar, é a guitarra do irmão, Phil Guy, que segura o dedilhado e toda a base em todo o disco, para ele alçar vôo tranqüilo.

É bom lembrar que a banda enxuta se sustenta em J. W. Williams (baixo) e Ray Allison (bateria). A produção é de Didier Tricard. São 6 faixas, distribuídas ao longo de pouco mais de 40 minutos, como nos tempos originais do LP. Tudo fruto de uma urgência selvagem e de uma aspereza inqualificáveis. "Are You Losing Your Mind?", pergunta ele na 2a faixa. A resposta é sim, se você continuar espancando a guitarra desse jeito. Buddy Guy solta uivos enquanto sola, exatamente como no palco, onde a posição do microfone não é marca fundamental para mantê-lo parado. A voz atinge graus elevados de convicção absoluta. E pouco importa se você sabe inglês, porra. Eu falo de algo que transcende o bom senso, as boas maneiras e os belos padrões exigidos pelo mercado na hora de fazer sucesso e encantar as multidões (com playbacks, fogos de artifício, coreografias exaustivamente ensaiadas, jogo de luzes e troca de figurinos).

O que temos em Stone Crazy! é um músico extraordinário e um cantor arrebatado pelo blues, incapaz de conter o jorro da adrenalina. Se ele não consegue, por que eu deveria? Experimente você. A menor faixa do disco, "She's Out There Somewhere", dura 4 minutos e 26 segundos. parece que dou muita importância ao cronômetro. Não é verdade. Eu só quero dizer que esse tempo todo é gasto em descargas de alta voltagem, sem nenhuma excrescência. "Outskirts Of Town", que mais se aproxima da idéia pré-concebida que a maioria tem de um blues, por ser lenta e chorosa, transborda urbanidade cosmopolita e desesperada.

Stone Crazy! oscila, em suas características, do silêncio ao barulho enfezado. "When I Left Home" vai do gemido ao grito sem escalas intermediárias. Buddy Guy persegue extremos como não o vi perseguir em outros títulos com tamanhas entrega, sem se poupar. Há passagens em que Stone Crazy! se assemelha a um ensaio da banda, com Allison pontuando as lafas e enfatizando as explosões. Termina com Buddy Guy, num lamento onomatopaico ou péico ou o raio que o parta. Shit! Se eu estou triste, Stone Crazy! levanta meu astral, e se estou alegre, o disco mejoga ainda mais para cima. E dizem, os pobres coitados, que o blues é deprê. Ora, vão ouvir The Cure e me deixem em paz. Buddy Guy é o máximo!

TRACKLIST:

1 - I Smell a Rat (9:13)
2 - Are You Losing Your Mind? (6:37)
3 - You've Been Gone Too Long (5:41)
4 - She's Out There Somewhere (4:33)
5 - Outskirts of Town (8:09)
6 - When I Left Home (8:20)

DOWNLOAD (40 MB):
http://www.mediafire.com/?dwl1n2utkmm

(texto extraído do livro Noite Passada Um Disco Salvou Minha Vida, ed. Geração Editorial, organização de Alexandre Petillo, DIGITADO ARDOROSAMENTE pela Equipe Depredando de Benfeitorias Sônicas. Alguma datilógrafa gostosa quer vir trabalhar pra gente? Pagamos em breja!)

Um comentário:

garageducançu disse...

THE kink of blues....
muito bom o poste........