“Everything that lives
Lives not alone nor for itself.”
WILLIAM BLAKE
Manoel de Barros gostava de dizer que a poesia deve servir como um "esticador de horizonte". William Blake queria que sua arte nos fizesse "romper a concha do prosaico", nos levando a enxergar as coisas com "as portas da percepção purificadas". E toda filosofia, diz-se desde a Grécia mais remota, é "filha do espanto" - e da angústia, eu adicionaria. A arte e a filosofia que mais me agradam agem sobre a consciência de modo a deixá-la boquiaberta. Wonderstruck.
Banalidade que sabem todos que já embarcaram numa viagem nas asas do THC ou do LSD: a consciência é expansível. Os horizontes humanos são esticáveis. É o que ocorre com a leitura de um bom poeta, que nos abra os olhos para aquilo a que antes éramos cegos; a audição de uma boa sinfonia, que nos escancara os ouvidos para aquilo que antes éramos surdos; a contemplação de alguma paisagem ou pessoa ou prodígio impressionante que nos deixe boquiabertos, aumentados em nossa vitalidade e em nossa capacidade de atenção [awareness], vencendo a triste tirania do tédio e da indiferença.
Ouçamos o que diz Nietzsche sobre o assunto: “A consciência é o último estágio, o mais tardio, daquilo que é orgânico; é, por conseguinte, também o que há de menos acabado e de menos forte. [...] Considera-se [erroneamente] a consciência como uma grandeza constante! Nega-se seu crescimento, sua intermitência! [...] Julgando já possuir o consciente, os homens pouco se esforçam por adquiri-lo – e hoje ainda não é diferente!” (A Gaia Ciência, #11) É preciso, pois, considerar a Consciência como um campo a ser conquistado, e não algo cuja conquista já se “possua”. A “expansão de consciência” que se pode, com muito custo, conquistar através da leitura de Baudelaire ou da audição de Wagner, é-nos fornecida com uma força e uma vivacidade acachapantes por algumas gotículas de LSD diluídas num cubículo de açúcar.
O que chamamos de "consciência" individual, longe de ser algo de estável, é uma pirralha irrequieta como aquele fluxo, dentro do qual está contida, que Heráclito pensava constituir o próprio rosto mutante do cosmos. Everything flows... Nunca se pisa duas vezes nem no mesmo rio, nem no mesmo segundo. O tempo, irreversível e imparável, flui adiante, arrastando-nos com ele feito folhas caídas na correnteza.
Nós, em nossa sina de transitoriedade, provisoriamente viventes em meio ao arrastão cósmico, acompanhamos o carrossel dos dias às vezes sem nem notarmos esta verdade que nos sussurra o vento ("the answer, my friend, is blowing in the wind..."): estamos - pasmem! - rodopiando feito um pião pelo salão de danças do cosmos, viventes conscientes "in a green ball which floats through the heavens" (pra usar uma expressão de Ralph Waldo Emerson em seu ensaio "Nature").
Sabe aquela história de que só usamos uns 10% do nosso cérebro? Que digam os neurologistas se é fato ou não; só sei que me parece muito plausível. Minha opinião é a de que estamos realmente longe de sabermos utilizar todo o potencial que trazemos, cada um de nós, dentro de nossos crânios. A consciência está longe de estar pronta: consciência é uma "coisa" passível de ser progressivamente ganha. Ora, impactar-nos de modo a que usemos mais os miolos, expandindo nossos horizontes, parece-me uma das funções essenciais da arte e da filosofia (minhas musas...): elas devem servir a re-espantar-nos, enxotando-nos de nosso torpor, despertando-nos das letargias. A missão da canção, do poema e da substância psicodélica: avivar e expandir consciência.
A infância, chamada pelos ingênuos de "idade da inocência", é também a idade - essa parte da história os adultos não gostam muito de mencionar... - em que se instalam em nós os cabrestos. Os freios. Os ditames. Os ideais sublimes. As noções religiosas. As regrinhas de etiqueta. As sugestões dietéticas. Enfim: o cérebro mirim, desde cedo, recebe um influxo cultural tremendo. Uma força externa, social, cultural, molda-o para os mais diversos fins, dos mais bem-intencionados aos mais sórdidos. A criaturinha é domesticada, "moralizada" com punições e recompensas, forçada a seguir certas vias pré-determinadas por gerações já mortas, às vezes incluída sem consulta em uma comunidade religiosa, um time de futebol, um preconceito político.
Logo vai-se a inocência e embarca-se na triste loucura de ser um homem normal: assalariado, cheio de sonhos de consumo, confortavelmente entorpecido, zumbi da rede Globo, resignado aos infortúnios, temente a Deus, esperançoso de bens de outro mundo, fidelíssimo a quase tudo que o funil cultural lhe impingiu. "Quem não se move não sente as correntes que lhe prendem", diz a Rosa Luxemburgo (se não me engano...). Com a consciência parece ser o mesmo: quem não se esforça por expandi-la, quem não tenta romper as couraças e esticar os próprios horizontes, acaba nem sentindo seu cabresto. E aí... é a festa dos tiranos!
LUCY IN THE SKY WITH DIAMONDS
A
transformação operada no cérebro pela ação desta poderosa
substância é dificilmente descritível em termos puramente
“neutros” e “científicos”: o LSD tem o notável poder de
despertar em cientistas uns “ímpetos místicos” e “arroubos
poéticos” que não se esperaria de homens tão devotados à razão.
Albert Hoffman, cientista suíço que sintetizou a substância ("minha criança maravilha que se tornou criança problema..."),
quando tenta descrever a experiência subjetiva de tomar LSD e andar
de bicicleta pelos prados da Suíça, descreve-a como algo muito
semelhante à experiências místicas vividas na infância, o que é referendado por Aldous
Huxley, que, depois de experimentar com a mescalina (substância extraída
de um cacto mexicano chamado peiote), relata
que ficou a observar as coloridas flores que tinha diante de si “como
Adão as deve ter visto no Jardim do Éden”.
A realidade que se “desvela” com o LSD é descrita, no filme The Beyond Within (O Além Interior), como “un-censored reality” ou “naked truth” (“realidade sem censura” e “verdade nua”). O LSD convida-nos a uma visão de mundo em que estar diante da “Verdade Nua-e-Crua” não é uma experiência sórdida, deprimente e aterradora (ou não necessariamente: há as bad trips...); mas que pode ser uma experiência de êxtase, de profunda “iluminação”, de beatitude terrena. Uma criança que experimentou o LSD relata inclusive, e com uma sinceridade de que não dá pra duvidar, que a substância possibilita uma “experiência religiosa mais forte do que ler a Bíblia 6 vezes ou se transformar em Papa”.
Mas não se trata de uma droga que infantilize, no
sentido de retornar o indivíduo a um padrão de comportamento mais
“instintivo”, “animalesco”, arcaico. O álcool é uma droga
muito mais infantilizante, que
parece despertar comportamento imaturos e insensatos em
bebuns bastante mamados. O LSD, em contraste, é uma droga para
“usuários maduros” e desejosos de maturação – e uma
substância que têm, conforme muitos relatos, um efeito a um só
tempo rejuvenescedor e
amadurescente.
É
que amadurecer não é necessariamente distanciar-se o máximo
possível da criança: talvez uma parte importantíssima do
amadurecer consista em reencontrar muito daquela virgindade de
olhar e daquele espanto total diante do mundo que tínhamos
em nossos primeiros anos. Os
olhos arregalados de uma criança diante da Lua ou das estrelas, sem
saber entendê-las, nem de onde vieram, nem quem as grudou no
firmamento, nem porque emanam luz e porque nunca nos falam - isso não
é algo digno de ser morto em nossa vida adulta!
Nietzsche, por exemplo, não se contenta em somente de ser um leão que ruge, muito
adulto e viril, contra o camelo que antes carregava pesos no lombro,
resignado, retraído e oprimido sob o fardo por outros transmitido,
sob o peso das autoridades passadas, dos preconceitos venerados e das
crenças sacralizadas.
Zaratustra
faz a criança ser o
ideal do leão. Não basta rugir, destruir e depois
ficar “pastando”, leoninamente, sobre os escombros. Não basta
viver só de oposição, de querela, ofendendo o inimigo, polemizando
com o rival. Não basta espezinhar o camelo. Não basta só dizer não e não e não. E a criança é
o símbolo do ser que diz sim. Com o olho. Com a consciência. Com todo o seu ser. Diante do espetáculo cósmico inteiro, pede bis.
A
criança é a criatividade ainda na fonte, é ainda o frescor pleno
de potencialidades de uma mente que ainda não foi “estragada”
por doutrinas, ortodoxias, catequisações. A criança é um novo
começo. Zaratustra, pois, é esse poeta-dançarino, mais sátiro
do que santo, que nos convida a voltar a olhar o mundo com os
olhos espantados e cheios de curiosidade de uma criança, cujo
arregalamento das pupilas nos deixa comovidos perante o espetáculo
de um espanto.
Uma
criança que se espanta nos redesperta para o mistério. E os que
dormem para o mistério estarão de fato com as consciências vivas?
Há vivacidade de
consciência fora do mistério?
A convicção ortodoxa de “possuir a verdade”, de “já saber
tudo”, não é justamente isso que obstaculiza
e trava a consciência
em seu processo de expansão?
Terence
McKenna, me parece, forneceu a melhor das metáforas para explicar
esse “potencial dos psicodélicos”. Segundo McKenna, o
que essas substâncias como o THC, o LSD e o DMT realizam em nosso
cérebro consiste em “limpar” o nosso sistema operacional: para
usar a metáfora informática que ele usa, significa
desinstalar o Windows, ou seja, o “sistema operacional”
mais comum, mais “normal”, mais comercial, por um sistema
operacional espetacularmente novo. Neste novo “modo de operação”,
os condicionamentos sociais perdem sua força, como se perdessem sua
força de adesão ao nosso “eu” (não à toa muitos usuários e
psiquiatras descrevem o processo como uma espécie de “dissolução
do eu”, o que para alguns é uma “near-death experience”).
O
novo olhar que o LSD ou o DMT nos permitem lançar sobre a
realidade circundante consiste exatamente numa ressurreição da
novidade. Olhamos para as coisas como se elas fossem novas, em
contraste com o tédio e a indiferença com que
costumamos lidar com tudo aquilo que chamamos de “banal”,
“trivial” e cotidiano. Aquilo que só os maiores dos poetas
conseguem realizar em nossas consciências quando os lemos, quando
sentimos o impacto de suas imagens, estas substâncias realizam, mas
com um potencial amplificado. Elas escancaram as portas da percepção dando um chute químico nos ferrolhos e nas couraças e nos escudos. Tudo nos aparece como se fosse
recém-nascido, e nós mesmos nascidos agora para a experiência misteriosa de estar vivo. O presente enfim impera, repleto de cor e de luz, de
brisa e de encanto.
Em
The Beyond Within, uma moça sob efeito de LSD, segurando uma
laranja entre suas mãos, a observa com uma atenção extremamente
anormal em relação à atenção que o comum dos mortais normalmente
dedica a essa “babaquice sem graça” que é uma fruta. A moça,
profundamente fascinada pela cor da laranja, relata, em meio a
seu encantamento, uma experiência lapidar: “antes eu jamais havia
realmente visto a cor; antes eu vivia num mundo monocromático...”
TERENCE MCKENNA: A CULTURA É NOSSO SISTEMA OPERACIONAL
O
LSD e o THC, é plausível supor e lícito especular, talvez conduzam
seus usuários a um certo estado de consciência em que torna-se mais
difícil para eles a obediência e a subserviência. Suponham que
houvesse uma substância que, nos antípodas da Droga da Obediência
imaginada por Pedro Bandeira, fosse uma espécie de... agente
da desobediência. Terence
McKenna, em uma de suas metáforas mais impressionantes e memoráveis,
compara a Cultura a um sistema operacional que estaria instalado em
nossos cérebros de modo análogo ao Windows ou Linux que roda em
nossos PCs. O hardware que é o cérebro humano, portanto, têm a
potencialidade para ser utilizado de mil maneiras, mas acaba sendo
“formado” e deformado por programações culturais,
condicionamentos de behaviour,
tempestades de
anúncios e propagandas, ciclones e tsunamis de convites a comprar, a
um ponto tal que sua mente outrora virgem transformou-se num imenso
cabide onde outros depositaram seus mofados casacos, ternos e
japonas.
Segundo
McKenna, estas substâncias ditas “psicodélicas”, que também
são conhecidas hoje por “enteógenos”, aí incluídos o ácido
lisérgico, a mescalina, o DMT etc., teriam a capacidade de realizar
no “cérebro” uma “limpeza de sistema operacional”, limpando
os nossos olhos das cataratas culturais em nós implantadas. Essas
drogas teriam um efeito “descondicionador”, por assim dizer: tudo
aquilo que autoridades exteriores a nós ordenaram
que decorássemos,
tudo aquilo que
obrigaram-nos a papaguear, todos os evangelhos dogmáticos que nos
foram impostos por
potências exteriores, muitas vezes tirânicas em seu absolutismo,
recebe um golpe profundo destas substâncias alteradoras da
percepção. A consciência, se consegue se “expandir”, é
justamente por este alargamento
dos horizontes humanos que
se dá quando quebramos as jaulas de nosso cárcere cultural.
Conhecer outras culturas é tão instrutivo, tão urgente,
tão crucial e necessário! Pois só assim cessamos de absolutizar
nossos próprios costumes, cessamos de adorar apenas nosso próprio
país, como fizeram, por décadas e séculos, os papagaios de
patriotadas... Há na “psicodelia” um elemento de universalismo
que, me parece,
consiste na sensação que estas drogas são capazes de despertar de
que o sujeito é cidadão
do mundo, hospedeiro
da natureza, habitante da galáxia, parte do cosmos.
”Parece que a hipótese de trabalho mais satisfatória sobre a mente humana tem que seguir, até certo ponto, o modelo bergsoniano, no qual o cérebro, com seu eu normal associado, age como um mecanismo utilitário para limitar e selecionar o enorme mundo de consciência possível e para canalizar experiências em canais biologicamente lucrativos. Doenças, mescalina, choque emocional, experiência estética e iluminação mística, todos têm o poder, cada um de um modo diferente e em graus variáveis, de inibir as funções do eu normal e sua atividade comum do cérebro, permitindo assim que o ‘outro mundo’ invada a consciência. [...] Pode-se dizer que um homem consiste num Velho Mundo de consciência pessoal e, do outro lado de um oceano divisor, numa série de Novos Mundos. Esses Novos Mundos de um subconsciente nunca podem ser colonizados, raramente são perfeitamente explorados, e em muitos casos ainda esperam o descobrimento.” - Aldous Huxley
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