A L A R D E
por Eduardo Carli
Estou convicto de que uma das funções primordiais da cultura independente (ou da chamada "contra-cultura) é "destoar o coro dos contentes", para citar o célebre verso de Torquato Neto. Temos urgência de artistas que "façam água e ameacem afundar a nau dos bem-adaptados ao século da velocidade, da euforia
prêt-à-porter, do exibicionismo e do consumo generalizado", para usar as palavras de Maria Rita Kehl. É um pouco o que faz a banda paulista Alarde, na ativa desde 2006, e que é capaz de articular a angústia e a revolta, o desconforto e a fúria, a incomunicabilidade e a catarse, numa música que merece aquele adjetivo ao mesmo tempo estranho e bombástico: idiossincrática.
Nascida em São José dos Campos/SP, a banda depois migrou para a maior metrópole da América Latina lá pelo meio da década, onde lançou em 2008, via
Pisces, seu intenso e tenso debut
8-80 (gravado no
Norcal com co-produção de
Brendan Duffey). Certas similaridades são notáveis com a lírica dominante em bandas como o
Violins e o
Ludovic, mas o som do Alarde tem uma cara própria e que não é tão fácil de rotular.
Eu diria que me soa como um Gang Of Four misturado com o primeiro Joy Division, ou com um pós-hardcore que cruzasse o Fugazi com acentos grunge, ou ainda uma banda de classic rock influenciada por pitadas de
free-jazz e arte performática. Mas o melhor mesmo é não levar a sério as descrições idiotas de jornalistas (até porque escrever sobre música é como dançar sobre arquitetura...), e conferir por si mesmo: no fim deste post, o álbum de estréia dos caras está disponível na íntegra, com autorização da banda, para que vocês peguem e
disseminem à vontade. Sem mais delongas, passamos para o papo que batemos com o vocalista e guitarrista Luiz (completam a trupe o batera Rodrigo, o guita Goiano e o baixista Gabriel).
D: Começando pelo tema clássico das "influências": que artistas vocês citariam, não somente musicais, que serviram como inspiração ou modelo pra arte do Alarde? Quais bandas, filmes, escritores, poetas, artistas plásticos entraram no "caldo de influências" de vocês?
Luiz: A gente nasce em um caldeirão de influências e informação. Com o passar dos anos, cabe a nós decidir ou aceitar o quê e o quanto absorver desse caldo. E principalmente estar atento como tudo se conecta de alguma forma e como isso interfere na sua atitude e personalidade.
Na música posso citar os clássicos Jimi Hendrix, Led Zeppelin, Beatles, Doors, Stooges, Miles Davis, Pink Floyd, Frank Zappa, entre outros cujos discos são nossa eterna trilha sonora. Dos anos 80 e 90, vêm Sonic Youth, Pixies e o grunge subseqüente, Jon Spencer Blues Explosion, PJ Harvey, Portishead, John Frusciante... Na música brasileira os Mutantes, a Tropicália, Raul Seixas, o rock nacional dos anos 80 e até o samba de raiz e o rap podem entrar nesse caldeirão que influencia nossa música.
Numa esfera artística mais ampla, posso citar os filmes
The Doors e
The Wall como influência direta, pra seguir o caminho da música, principalmente pela época em que os assisti. O trabalho da artista performática
Marina Abramovic também sempre me atraiu pelo desafio e pelas possibilidades ilimitadas. E por fim, toda a filosofia, questionamentos existenciais e as bobagens da condição humana no livro
Bhagavad Gita.
D: "Fugir é fácil, viver é que é difícil". Apesar de toda a angústia que impregna o álbum de vocês (e que em momentos me lembra de Cobain ou Ian Curtis), o Alarde não me parece uma banda "mórbida", mas sim afirmativa-da-vida, apesar de tudo. A tentação do suicídio e da auto-destruição são retratados, e também as bebedeiras que nos deixam "embriagados e na lama", mas no fim das contas o que parece prevalecer é este espírito de "vamos-encarar-o-tranco". Em que medida o próprio fato de possuir uma banda, e se expressar através ela, é um "auxílio vital" para não deixar-se dominar pelo que "puxa pra baixo"?
Luiz: A música é tudo.
A catarse, no sentido amplo da palavra, de libertação daquilo que o corrompe e oprime, é o sentimento constante que envolve todo o processo pela busca. É o único sentido. É urgente. E justamente pelo fato de estarmos hoje aqui, a mensagem teria que ser esta. Eu sou o sobrevivente de mim mesmo e a música é a principal responsável por me manter vivo e com tesão de querer dialogar com as pessoas as idéias que surgem. Do contrário, não valeria a pena gastar a saliva. Somente a música me põe no rumo certo que as coisas aparecem pra mim. Estar atento e receptivo às influências do mundo e como você se comporta diante delas é o que me alimenta. Eu acredito na antena que somos, capazes de absorver e reprocessar aquilo que vem e a gente devolve pro mundo. Pois, na verdade, a gente não faz nada, não temos a mínima consciência de que até o livre-arbítrio está corrompido desde a essência e que a nossa vontade não existe, ou não faz diferença, pois muda conforme o clima lá fora.
A alegria e o prazer são parte do processo também e vem e vão como tudo na vida... Pode se emanar o fogo de esperança no meio da miséria ou uma alma ferida vai sofrer até na praia... Os bons sentimentos estão ai, porém as circunstâncias podem não ser tão favoráveis.
A angústia, solidão, felicidade, insegurança, fracasso são formas diferentes de falar de amor sem falar nele, pois tudo está contido nele. Da interminável busca.
D: Stress, pressa, arritmia, raiva, presídio, patrão, um-meio-de-arranjar-um-troco... É só somar aí trânsito e poluição e tem-se uma boa lista das "desgraças da metrópole" (rs). O quanto a vida em São Paulo marca a lírica de vocês? A cidade pode ser "culpabilizada" por todos os sofrimentos que parecem estar sendo "purgados" no som de vocês?
Luiz: A vida em São Paulo é a relação constante de amor e ódio, altos e baixos, de fato o "oito ou oitenta". Quem não é daqui, na verdade, não se acostuma nunca por completo. É preciso estar sempre no controle senão a cidade te engole. Você anda na rua e está suscetível aos fantasmas que a alimentam. Os contrastes, a indiferença e a imensidão do problema de se sobreviver em uma metrópole. Esse mesmo amargo que repele também atrai pelo choque diário de realidade e pelas possibilidades que se oferecem.
Porém, mesmo assim, não classifico a vida na cidade grande como “culpada” pelos sentimentos contidos nas músicas, sinto uma parceria entre o caos da multidão e o que vive em cada pessoa que dela faz parte. Entendo que o papel da metrópole na arte é o de canalizar as mazelas que nela habitam. E quando você tem contato com isso, é sofrido. Assim, tudo depende de como você se afeta. Quando você vê, já está no olho do furacão. É muito mais seguro cada um viver com sua máscara, pois se você experimentar o caos e gostar, o caminho é longo pra voltar. É mais fácil fingir que não é com você.
D: Um dos livros mais interessantes que li neste ano é "O Tempo e O Cão", da psicanalista Maria Rita Kehl, onde ela faz uma análise da epidemia de depressão que assola o mundo, inclusive nos países mais ricos e industrializados. Noto que o Alarde, em várias canções, tematiza isso: em "Ritalina", por exemplo, em que os comprimidos anti-depressivos já não funcionam mais... Dá pra arriscar alguma reflexão sobre a relação entre depressão e o modo-de-vida na metrópole? Que tipo de "tretas" na vida pessoal ou social vocês diriam que acabam causando depressão, niilismo, ímpetos auto-destrutivos etc.?
Luiz: As fobias, síndromes de pânico e outras doenças relacionadas à depressão não se restringem apenas à vida na metrópole ou a certo grupo de pessoas de classe A ou B, essa “epidemia” do mundo moderno é fruto da forma como vivemos, da forma fria e superficial como nos relacionamos, da competição, da inversão de valores. Pois o homem sempre conviveu com suas dificuldades e peculiaridades, mas de tempos pra cá a pressão pra se afirmar como pessoa bem sucedida e feliz gera um ciclo vicioso ao qual você acaba sucumbindo se não estiver absolutamente no controle e sabendo lidar com os obstáculos que a vida impõe. Essas fraquezas, a insegurança, a sensação de não conseguir ver um passo à frente, e ter que ser desonesto consigo pra sobreviver nesse meio, acumula uma quantidade de fantasmas que quando você cai na real, a coisa já desandou há muito tempo...
Assim, vêm as muletas pra você suportar o baque de conviver com isso, como os remédios, as drogas, o consumismo, a ostentação... E a bola de neve vai aumentando e a pessoa anestesiada nem percebe o quão fundo é o buraco. E vai se auto-sabotando, os relacionamentos são auto-destrutivos, as feridas respingam em quem está por perto. Alguns vivem a vida toda assim, dopados de hipocrisia, anestesiados. Outros caem feio e a subida de volta é dolorosa e as vezes não dá mais tempo pra voltar. Todos estão suscetíveis. Ou você é forte e se mantém no controle ou você se engana e vai se consumindo até onde der. A queda é livre.
D: Sabemos que é uma utopia quase irrealizável conseguir viver de música neste país quando se faz um som que não é feito para agradar ao mercado e que não faz concessões ao comercialismo. Como o Alarde lida com este embate entre a expressão artística e a inserção no mercado? Como ganham seu troco?
Luiz: Não fazer concessões ao comercialismo, à nova moda do momento, vai desde a escolha ou não de uma nota, do timbre batido, dos clichês do rock e principalmente pela honestidade do dialogo entre a música e você. Eu acredito que somos a música que ouvimos e que passamos pra frente à nossa maneira. Não se trata de inovar no rock, apenas ser um pouco mais verdadeiro...
Assim como na vida, as escolhas que você faz definem a velocidade com que seu trabalho ganha visibilidade e reconhecimento no mercado independente. O cachê razoável é escasso e imprevisto, a concorrência enorme é diretamente proporcional ao tamanho da falta de critério para as oportunidades. Mas é o preço que se paga.
Atualmente, a única razão para nos manter em São Paulo é pela certeza abstrata de que este é o lugar pra gente produzir e viabilizar nossa música, caso contrário o custo/benefício não vale a pena. Enquanto isso não acontece na velocidade e do jeito que precisa, a gente vai tentando um meio de arranjar um troco com trabalhos temporários, informais, qualquer coisa que adie a necessidade de se mudar. Dois integrantes ainda cursam faculdade.
Alarde, Live in Goiânia (Grito! Rock @ Circo Lahetô)
D: No show no Grito! Goiânia, rolou uma sensacional "jam" de 10 minutos (registrada pelas lentes do Depredando) com a presença de um saxofonista. Quem é o cara e como vocês o conheceram? Há algum tipo de influência de free-jazz ou jazz-hardcore (John Zorn e coisas deste naipe) no som de vocês?
Luiz: Foi sensacional ter rolado o registro desta jam com a participação de dois grandes músicos e amigos, Rodolfo Sproesser no teclado e Evaldo Tocantins no saxofone. Evaldo, que já tocou com Tim Maia e outros grandes nomes da música brasileira, deve estar quebrando tudo na Europa atualmente. Nos conhecemos na lisergia no cerrado... Esse lance do improviso é algo que a gente curte explorar e que se encaixa em algumas músicas. O Goiano na guitarra deu várias direções nessa onda e entre os climas a coisa flui naturalmente. É influência Frank Zappa, Miles Davis, Hovercraft...
D: Como você avalia a importância dos festivais independentes para uma banda como o Alarde e outras de caráter semelhante? Como foi a experiência de tocar no Grito! Rock de Goiânia? Que outros estados e capitais já puderam visitar? E a "cena" do estado de SP, em matéria de lugares para tocar e "união" (ou falta dela) entre as bandas?
Luiz: Vejo os festivais independentes como uma possibilidade sensacional de poder circular a produção musical do Brasil, que não tem o apoio de grande mídia, produtores e gravadoras. Participar do
Grito Rock Goiânia foi um lance bem legal pra gente: poder divulgar nossa música na chamada capital do rock independente atual, onde temos vários amigos que já conheciam nosso som e realmente ir formando aos poucos um público que acompanha nosso trabalho. Estamos no aguardo de mais convites e oportunidades que tornem viável a nossa participação, em outras capitais do Brasil, nesses festivais independentes.
O circuito para shows no estado de São Paulo é vasto, porém pode ser muito limitado também por não pagar um cachê decente, por falta de divulgação e falta de projetos que privilegiem músicas autorais. Por outro lado, existem várias casas de show por todo o estado com muito boa estrutura de som e público, descentralizando da capital, que já se tornou saturada. Isto, pois na cidade que abriga gente do país todo, todo mundo quer tocar e ter seu espaço ao mesmo tempo. A coisa demora mais e pra uma banda se diferenciar de verdade do enorme caldo tem que ser de fato diferenciada. Ou ter aquele amigo na revista que dê uma força...
Algumas dessas bandas que realmente têm um som autêntico e bem gravado são o pessoal com quem a gente divide o palco algumas vezes, como o
Capim Maluco,
Orgânica,
Seamus,
Hierofante Púrpura,
Quarto Negro,
Detetives, e outras cujos trabalhos merecem atenção.
D: Cite 5 discos prediletos que você levaria para a mítica ilha deserta.
Caetano Veloso – Araçá Azul
Pink Floyd – Dark Side of the Moon
Jimi Hendrix – Axis: Bold as Love
Portishead – Portishead
Miles Davis – On the Corner
D: Faça uma lista de coisas, no Brasil ou no mundo, que te deixam indignado.
A soberba de quem vive em São Paulo e acha que está em Londres.
O espírito Jacu do bairrismo Brasil adentro.
A essência corrupta do Brasileiro, a “malandragem” desvirtuada, a desonestidade.
A falta de vergonha na cara de Jabazeiros, Propineiros e “Artistas Estelionatários” em geral.
O preço da cerveja.
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