:: MORPHINE, Cure For Pain (1993)
Meu Rito de Iniciação no Jazz
(uma resenha gonzo)
- por Eduardo Carli de Moraes -
Meu Rito de Iniciação no Jazz
(uma resenha gonzo)
- por Eduardo Carli de Moraes -
Julho de 1999. Uma pequena banda americana de status cult subia ao palco na Itália ainda desconhecendo a armadilha que o futuro próximo lhe reservava. A incomum formação (batera, sax e baixão-slide de duas cordas) despejava sobre o público seu costumeiro jorro de música madrugadeira quando um dos membros do grupo foi atingido por um relâmpago cósmico daqueles de previsão sempre impossível. Por uma daquelas tragédias repentinas que despencam sobre cabeças humanas sem aviso prévio, Mark Sandman, 47, vocalista, baixista e letrista do Morphine, foi nocauteado por um ataque cardíaco. Saiu do palco em Roma e foi direto pro necrotério. Coisas da vida.
Devido àquela mania humana incurável de esperar que um certo sujeito morra para só então descobrir que ele prestava, foi somente após a morte de Sandman que a heróica Trama resolveu realizar os esforços necessários para presentear o defunto com um tratamento digno de seu legado. Todos os álbuns do Morphine caíram juntos nas prateleiras brasileiras: além dos 4 álbuns de estúdio (Good, Cure For Pain, Yes e Like Swimming), foram lançados também o póstumo The Night e o ao vivo Bootleg Detroit, possibilitando ao público brasileiro um conhecimento aprofundado da obra do finado trio. A dupla restante - Dana Colley e Bill Conway - juntou-se com uma nova vocalista e fundou nova banda, o Twinemen, que lançou seu álbum de estréia em 2003.
Meu primeiro contato com o Morphine se deu com esse Cure For Pain (1993, o segundo), um daqueles espécimes comprados totalmente "no escuro". Na época dessa compra (mazomeno 2000) eu estava ainda contaminado por certos preconceitos contra o jazz, produto das inevitáveis ortodoxias de um adolescente que não conseguia aprovar ninguém a não ser Papai Rock como monarca único na nação dos gêneros musicais. Jazz, sacumé, era música de velho, trilha sonora para asilos, uma desgraceira aborrecida onde não havia nada senão aquelas malditas cornetas assopradas em musiquinhas sonolentas... Jazz era palavrão. Foi somente pelo bem do meu Conhecimento Musical e da Expansão de Horizontes que decidi: vou comprar um disco de jazz. E fui de Morphine.
Minha expectativa de encontrar um grupo tranquilão e sonolento, provável escolha preferencial para curar insônias, foi rapidamente desvanecida quando a galopante linha de baixo de "Buena", a primeira faixa, estremeceu o ar. O vocalzão grave de Sandman, à la Nick Cave, entrou declamando uma letra sobre um demônio feminino, e o sax, de início discreto e envergonhado, se encorpou depois num solo de arrepiar... Bateu aquela surpresa: ENTÃO ISSO AÍ É QUE É JAZZ!? Cure For Pain, mesmo não sendo exatamente um disco de jazz, adquiriu pra mim um significado gigantesco como um ampliador de horizontes: serviu como uma ponte conduzindo meus interesses para além do indie, do punk, do grunge, do metau - do Rock em geral, enfim - e creio que possa realizar muitas benfeitorias semelhantes para quem ainda não passou por seu rito de iniciação no mundo do jazz. Sem o Morphine, eu provavelmente teria continuado por muito tempo a achar que Miles Davis, John Coltrane, Ornette Coleman e Donald Byrd, atuais prediletos da casa ouvidos em alta rotação, eram uns chatões que não mereciam atenção - sem nunca ter ouvido deles uma nota sequer.
Claro que pouca coisa no Morphine fase Cure For Pain e Yes, além da presença marcante do saxofone como instrumento protagonista, tem a ver com jazz, na acepção clássica da palavra. Essa música é puro rock and roll torporizado pelo excesso de whisky, construída com os arroubos de um inspirado saxofone que não teme fazer barulho e amparada por uma vigorosa seção rítmica minimalista. Músicas como "Sheila", "Thursday" e "Buena" são dotadas de um andamento rock and roller bem distanciado do costumeiro lenga-lenga do jazz tradicional. Viagens mais experimentais podem ser ouvidas, por exemplo, em "In Spite Of Me", uma baladinha baixa-fidelidade cantada aos sussurros sobre um dedilhado ágil no violão e no mandolin, ou nas duas faixas instrumentais, silenciosas e atmosféricas. E onde mais dá pra encontrar uma banda com suficiente moral pra plugar um sax num pedal wah-wah (!) e fazê-lo soar tão deliciosamente como no solo de "All Wrong"?
Mas o mais legal mesmo na música do Morphine é que ela nos afunda num universo todo particular. Assombrado por entidades femininas sensuais e tentadoras (muito provavelmente imaginárias, meras musas poéticas), Cure For Pain nos transporta para um ambiente sombrio de filme noir e que cheira a adultério, nicotina e crimes carnais... Um mundo de refúgios alcóolicos para noites invernais, devassidões inundadas com complexos de culpa, jogos de bilhar em salões decadentes, desmaios de porre em noitadas solitárias, serenatas sombrias que se estendem em bares suburbanos até a closing time, ascensões drogadas a outras dimensões... "Tenho uma cabeça com asas. A única coisa que mantêm minha cabeça conectada ao chão é um pequeno fio esquelético", diz "Head With Wings". Muito na música do Morphine sugere uma efêmera alegria que explode na noite fechada da mente devido à atuação de substâncias químicas. "Um dia ainda vão inventar uma cura para a dor / Esse é o dia em que vou jogar todas as minhas drogas fora", canta Sandman na belíssima faixa-título.
Não é à toa que ele chamou sua banda de Morfina: essa música é extremamente recomendada às veias de todos, lícita e socialmente aprovada, como um entorpecente musical que abre espaço para altos vôos mentais aliviantes. Morphine. Injete e ascenda.
Devido àquela mania humana incurável de esperar que um certo sujeito morra para só então descobrir que ele prestava, foi somente após a morte de Sandman que a heróica Trama resolveu realizar os esforços necessários para presentear o defunto com um tratamento digno de seu legado. Todos os álbuns do Morphine caíram juntos nas prateleiras brasileiras: além dos 4 álbuns de estúdio (Good, Cure For Pain, Yes e Like Swimming), foram lançados também o póstumo The Night e o ao vivo Bootleg Detroit, possibilitando ao público brasileiro um conhecimento aprofundado da obra do finado trio. A dupla restante - Dana Colley e Bill Conway - juntou-se com uma nova vocalista e fundou nova banda, o Twinemen, que lançou seu álbum de estréia em 2003.
Meu primeiro contato com o Morphine se deu com esse Cure For Pain (1993, o segundo), um daqueles espécimes comprados totalmente "no escuro". Na época dessa compra (mazomeno 2000) eu estava ainda contaminado por certos preconceitos contra o jazz, produto das inevitáveis ortodoxias de um adolescente que não conseguia aprovar ninguém a não ser Papai Rock como monarca único na nação dos gêneros musicais. Jazz, sacumé, era música de velho, trilha sonora para asilos, uma desgraceira aborrecida onde não havia nada senão aquelas malditas cornetas assopradas em musiquinhas sonolentas... Jazz era palavrão. Foi somente pelo bem do meu Conhecimento Musical e da Expansão de Horizontes que decidi: vou comprar um disco de jazz. E fui de Morphine.
Minha expectativa de encontrar um grupo tranquilão e sonolento, provável escolha preferencial para curar insônias, foi rapidamente desvanecida quando a galopante linha de baixo de "Buena", a primeira faixa, estremeceu o ar. O vocalzão grave de Sandman, à la Nick Cave, entrou declamando uma letra sobre um demônio feminino, e o sax, de início discreto e envergonhado, se encorpou depois num solo de arrepiar... Bateu aquela surpresa: ENTÃO ISSO AÍ É QUE É JAZZ!? Cure For Pain, mesmo não sendo exatamente um disco de jazz, adquiriu pra mim um significado gigantesco como um ampliador de horizontes: serviu como uma ponte conduzindo meus interesses para além do indie, do punk, do grunge, do metau - do Rock em geral, enfim - e creio que possa realizar muitas benfeitorias semelhantes para quem ainda não passou por seu rito de iniciação no mundo do jazz. Sem o Morphine, eu provavelmente teria continuado por muito tempo a achar que Miles Davis, John Coltrane, Ornette Coleman e Donald Byrd, atuais prediletos da casa ouvidos em alta rotação, eram uns chatões que não mereciam atenção - sem nunca ter ouvido deles uma nota sequer.
Claro que pouca coisa no Morphine fase Cure For Pain e Yes, além da presença marcante do saxofone como instrumento protagonista, tem a ver com jazz, na acepção clássica da palavra. Essa música é puro rock and roll torporizado pelo excesso de whisky, construída com os arroubos de um inspirado saxofone que não teme fazer barulho e amparada por uma vigorosa seção rítmica minimalista. Músicas como "Sheila", "Thursday" e "Buena" são dotadas de um andamento rock and roller bem distanciado do costumeiro lenga-lenga do jazz tradicional. Viagens mais experimentais podem ser ouvidas, por exemplo, em "In Spite Of Me", uma baladinha baixa-fidelidade cantada aos sussurros sobre um dedilhado ágil no violão e no mandolin, ou nas duas faixas instrumentais, silenciosas e atmosféricas. E onde mais dá pra encontrar uma banda com suficiente moral pra plugar um sax num pedal wah-wah (!) e fazê-lo soar tão deliciosamente como no solo de "All Wrong"?
Mas o mais legal mesmo na música do Morphine é que ela nos afunda num universo todo particular. Assombrado por entidades femininas sensuais e tentadoras (muito provavelmente imaginárias, meras musas poéticas), Cure For Pain nos transporta para um ambiente sombrio de filme noir e que cheira a adultério, nicotina e crimes carnais... Um mundo de refúgios alcóolicos para noites invernais, devassidões inundadas com complexos de culpa, jogos de bilhar em salões decadentes, desmaios de porre em noitadas solitárias, serenatas sombrias que se estendem em bares suburbanos até a closing time, ascensões drogadas a outras dimensões... "Tenho uma cabeça com asas. A única coisa que mantêm minha cabeça conectada ao chão é um pequeno fio esquelético", diz "Head With Wings". Muito na música do Morphine sugere uma efêmera alegria que explode na noite fechada da mente devido à atuação de substâncias químicas. "Um dia ainda vão inventar uma cura para a dor / Esse é o dia em que vou jogar todas as minhas drogas fora", canta Sandman na belíssima faixa-título.
Não é à toa que ele chamou sua banda de Morfina: essa música é extremamente recomendada às veias de todos, lícita e socialmente aprovada, como um entorpecente musical que abre espaço para altos vôos mentais aliviantes. Morphine. Injete e ascenda.
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6 comentários:
Ohh! <3
pra sempre um dos meus discos preferidos! ótimo blog
leiturasmusicais.blogspot.com
texto crasse
morphine é a prova de que se pode fazer um rock soturno sem o uso de guitarras com efeitos típicos...
isso nao e um disco e uma obra de arte quero lavar minha alma!
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