"Há que se virar pelo avesso, então, as perguntas que ocuparam os analistas: como é possível que as massas saiam assim às ruas num país de quase pleno emprego, como o Brasil, que está longe das obscenas taxas de desemprego da Espanha? Como é possível que isso aconteça num país em que não há ressentimento ante uma tirania, como foi o caso no Egito da Primavera Árabe? Como isso é possível, perguntavam-se, num país em que recentemente 30 milhões de pessoas ascenderam à classe media e um pacto de classes bem-sucedido, o lulismo, ancorado na figura de um notável estadista, parecia ter domesticado todo conflito? Essas perguntas acerca de como é possível que isso esteja acontecendo cumpriram o papel de mascarar o fato de que a pergunta que importa de verdade é a oposta, ou seja: como é possível que isso não tenha ocorrido antes? Como é possível que isso não tenha acontecido durante duas décadas? Muito especialmente, como é possível que isso não tenha ocorrido na última década, a do lulismo?
O pacto lulista se ancora na incorporação de uma ampla parcela dos mais pobres ao consumo - ao consumo, não à cidadania, ou em boa parte dos casos à cidadania entendida como consumo - sem que nenhum privilégio dos mais ricos seja tocado. Isso se torna possível, claro, somente num contexto em que o bolo esteja continuamente crescendo, o que ocorreu na década passada graças ao boom das commodities que o Brasil exporta em grande quantidade. Muitas das políticas de ascensão social do lulismo foram instrumentos de uma proletarização de formas de vida e de convivência com a floresta ou com o semi-árido, por exemplo, que tanto o neoliberalismo de Fernando Henrique como o desenvolvimentismo petista não podiam senão ver como pré-capitalistas ou pré-modernos, predestinados a morrer, em suma. No caso da Amazônia, essa troca (a passagem de um modo de vida com certa conversa com o entorno selvático a outro modo de vida no qual esse entorno serve como matéria-prima e substrato sacrificial de uma modernização movida a hidrelétricas, pecuária extensiva e soja) se produz intensamente durante os anos Lula e chega neste momento, não é exagerado propô-lo, ao seu esgotamento como pacto." - Idelber Avelar
Um novo Junho vem aí e nada mais oportuno do que relembrar as jornadas de Junho do ano passado - um mês histórico para os movimentos sociais e mobilizações populares no Brasil. Confira a série de 4 artigos de Idelber Avelar - um trabalho jornalístico primoroso - sobre “O Mistério de Junho”:
I: Os protestos de 2013 e a Amazônia
II: Os protestos de 2013 e o legado da ditadura
III: Os protestos de 2013 e a quebra do pacto lulista
IV: Os protestos de 2013 e a crise de representatividade
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